Estive no 25º Festival Internacional de Cinema e Vídeo Ambiental (Fica), em meados de junho, para apresentar duas sessões de Antonio Candido, anotações finais, documentário que dirigi, no qual a iminência da morte é um tema central. Para meu espanto, ele foi incluído na mostra “Filmes para Adiar o Fim do Mundo”, e o narrador, Matheus Nachtergaele, participou comigo do debate na sala quase lotada do Cine Teatro São Joaquim, no centro histórico da Cidade de Goiás (GO).
Debate durante o 25º Festival Internacional de Cinema e Vídeo Ambiental (Fica) — Foto: Yan Rissatti
Quem também esteve no Fica foi o diretor de A Invenção do Outro (2022), Bruno Jorge, que eu não conhecia pessoalmente e tive o prazer de encontrar. O indigenista Bruno Pereira, chefe da expedição que o documentário acompanha durante 32 dias, foi assassinado, junto com o jornalista britânico Dom Phillips, cinco meses antes da estreia no Festival de Brasília, onde A Invenção do Outro recebeu o prêmio de Melhor Filme de Longa Metragem.
O cineasta Bruno Jorge — Foto: Reprodução
Fui à Cidade de Goiás, mais conhecida como Goiás Velho, e voltei ao Rio de Janeiro, em 36 horas. Dias depois, comecei a ler Baumgartner, sobre o qual o autor, Paul Auster, chegou a dizer: “Sinto que minha saúde está tão precária que isto pode ser a última coisa que escrevo.” Premonição certeira, comprovada no final de abril passado quando ele morreu aos 77 anos.
No livro, o septuagenário personagem-título, Seymour “Sy” Tecumseh Baumgartner, está escrevendo Mysteries of the Wheel (Mistérios da Roda, em tradução literal), no qual reflete sobre mágoas e perdas, como a do pai e a da mãe, mas principalmente a de Anna Blume, paixão de sua vida, vítima da “feroz onda monstruosa que quebrou suas costas e a matou…”.
A certa altura do quarto capítulo, Baumgartner descreve a viagem que fez, em 21 de setembro de 2017, a Ivano-Frankivsk, cidade onde ele revela que nasceu seu avô materno. É um texto curto e “confuso”, escreve Auster, cujo título é Os lobos de Stanislau e vem reproduzido em seguida no livro:
Um evento precisa ser verdadeiro para ser aceito como verdadeiro ou a crença na verdade de um evento já o torna verdadeiro, mesmo que o que supostamente aconteceu não tenha acontecido? E se, apesar dos seus esforços para descobrir se o evento ocorreu ou não, você chegar a um impasse, resultante da incerteza, e não puder ter certeza se a história que alguém lhe contou no terraço de um café na cidade de Ivano-Frankivsk, no Oeste da Ucrânia [antiga Stanislau], provém de um evento histórico pouco conhecido, mas verificável ou foi uma lenda ou ostentação ou um boato infundado transmitido de pai para filho? Mais ainda direto ao ponto: se a história acaba sendo surpreendente e tão poderosa que você fica de queixo caído e você sente que ela mudou, melhorou ou aprofundou sua compreensão do mundo, faz diferença se a história é verdadeira ou não? […]
Esta e as demais traduções a seguir, feitas do ebook, são de minha lavra. A edição da Companhia das Letras, com tradução de Jorio Dauster, está anunciada para agosto.
O relato de Baumgartner prossegue por várias páginas até o final do capítulo. Ele sabia há décadas que
após a invasão alemã no verão de 1941, 10 mil judeus tinham sido reunidos e fuzilados no cemitério judaico naquele outono, e em dezembro os judeus restantes foram levados para um gueto, de onde mais 10 mil foram enviados para o campo de extermínio de Belzec, na Polônia, e então, um por um e cinco por cinco e vinte por vinte, ao longo de 1942 e 1943, os alemães conduziram à força os judeus sobreviventes de Stanislau para as florestas ao redor da cidade e atiraram neles até que não restassem mais judeus – dezenas de milhares de pessoas assassinadas com uma bala atrás da cabeça e depois enterradas nas valas comuns que tinham sido cavadas antes de serem mortos pelos que foram assassinados.
A paisagem de Ivani-Frankivsk, na Ucrânia — Foto: Reprodução
Durante a breve visita de Baumgartner a Ivano-Frankivsk, um poeta, supostamente versado na história local, conta a ele que
quando o exército soviético capturou a cidade em julho de 1944, […] não só ela já havia sido evacuada pelos alemães, mas a metade restante da população também havia desaparecido […] o que significava que os soviéticos haviam conquistado uma cidade vazia, um domínio do nada. A população humana tinha-se dispersado aos quatro ventos e, em vez de pessoas, a cidade estava agora habitada por lobos, centenas de lobos, centenas e centenas de lobos.
Como o poeta sabia disso? Teria sido o pai dele quem contou que fora recrutado, em 1944, para integrar uma unidade do exército encarregada de exterminar os lobos. “Não tenho a menor dúvida de que o poeta acreditava estar me contando a verdade”, afirma Baumgartner:
Os lobos eram reais para ele, e por causa da convicção calma de sua voz enquanto contava a história, eu mesmo os aceitei como reais […] e quando saí de Ivano-Frankivsk no final daquela tarde estava convencido de que, durante um curto período depois de os russos terem tomado o controle de Stanislau dos alemães, os lobos haviam governado a cidade.
Nos meses seguintes, Baumgartner procura investigar a questão mais a fundo, mas não encontra nada sobre os lobos de Stanislau. O que aparece é uma filmagem curta das tropas soviéticas ocupando a cidade em 27 de julho de 1944 – “não é preciso dizer que sequer um único lobo aparece no filme”, Baumgartner comenta, antes de perguntar no final do quarto capítulo “em que acreditar quando não há certeza se um suposto fato é verdadeiro ou não”. Para ele,
Na falta de qualquer informação que pudesse confirmar ou negar a história que ele me contou, optei por acreditar no poeta. E quer eles estivessem lá ou não, eu escolhi acreditar nos lobos.
De madrugada, ao ler essas páginas, pensei logo nas duas colunas passadas, de 5 e 19 de junho, e na felicidade que esse trecho de Baumgartner proporcionaria a Werner Herzog, caso ele viesse a lê-lo, mesmo sem admitir que a livre imaginação do escritor não é igual à do cineasta e que, apesar de se achar um contador de histórias, ele considera alguns de seus filmes como sendo documentários.
Dias após o encerramento do Fica, Bruno Jorge comentou comigo no WhatsApp as duas colunas publicadas em junho que põem em questão a postura de Herzog. A seguir vai a versão definitiva dessas mensagens revistas por Bruno Jorge:
Ao falar de “verdade extática”, Herzog acaba se protegendo de certos impasses. Quando traça uma linha invisível entre ficção e documentário, se permite inclusive utilizar da ética de um para o outro, são fundamentos da convivência diferentes. Os procedimentos questionáveis mencionados, se fossem aplicados a filmes de compromisso ficcional de largada, seriam pouco ou nada questionáveis. No caso do “Cada um por si e Deus contra todos”, que é uma frase incrível, o que me chama a atenção é a noção de autoria aí. Pela simplicidade – um trocadilho quase imediato de um ditado popular –, parece mais uma ideia que estava no ar, que dificilmente não havia sido dita ou pensada antes, alguém a “teve” e pôde reproduzi-la. Como a maioria das ideias e princípios, diga-se de passagem. O indígena – se considerarmos uma espécie de cosmovisão em comum –, no momento de dar o “bote” no outro, não embarca exatamente nessa concepção moral de tirar algo que não é dele, mas muito mais nesse algo que não pertence a ninguém, e por isso é de toda uma natureza da qual ele também faz parte. A assimilação é uma espécie de base epistemológica de nossa cultura mestiça e barroca. Essa capacidade de lidar com o múltiplo e variado – etnias x linguagens – vem em parte também dessa prática que é a força ameríndia na nossa produção (Tupi or not Tupi?). Dá pra dizer que, pirateando Macunaíma na época, Herzog reproduziu bem o nosso Modernismo…
Taí, além de Baumgartner, outro defensor inesperado de Herzog.