Sou jornalista, mas, entre as décadas de 1980 e 1990, tive uma videolocadora no bairro do Paraíso, na cidade de São Paulo. Abri o negócio no embalo das grandes redes que faziam sucesso na cidade, como a 2001 e a Vídeo Norte. A verdade é que eu não tinha nenhuma noção de administração, e por isso não ganhei dinheiro, mas me diverti.
Eu assistia aos filmes que os distribuidores mandavam e comprava os que eu achava que os clientes (ou “sócios”, registrados em uma ficha de papel-cartão) gostariam de assistir. Foi assim, por exemplo, que eu descobri Matador, do Almodóvar, antes de o cineasta fazer sucesso mundial com Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos.
Ninguém precisava de um conselheiro para se interessar por Ghost – Do Outro Lado da Vida, A Família Addams, Dança com Lobos e outros blockbusters, mas eu sentia que fazia a diferença ao ajudar na descoberta de fitas como Depois de Horas (um Scorsese pouco divulgado) e Um Homem com Duas Vidas, do belga Jaco van Dormael
Em algum momento o negócio foi para o espaço e, em 1992, me tornei “crítico de cinema” (prefiro ser chamado de especialista, pois sei bem separar o joio do trigo). Enquanto o VHS, o DVD e o Blu-ray foram saindo de cena, também mudei: passei por jornal, revistas e hoje exerço as funções nas redes sociais. Se o balcão não é diferente, a missão é essencialmente a mesma: indicar aquilo que pode agradar a quem fica um tempão perdido no catálogo dos streamings, como antes ficavam tantos nos corredores cheios de opções da locadora. A convite da piauí, fiz uma garimpagem de filmes e séries em diferentes plataformas.
FILMES
A Multidão (Índia) – Netflix > Muito distante dos filmes de Bollywood (a poderosa e popular indústria cinematográfica da Índia), esse filme foi todo rodado em belo preto e branco e enfoca um momento real do primeiro lockdown da pandemia do coronavírus: migrantes que trabalhavam nas metrópoles não conseguiram regressar para seus vilarejos devido a barreiras colocadas nas estradas. O caos se instala numa rodovia rural e pessoas presas no congestionamento ameaçam a ordem imposta por seguranças despreparados.
Irmãos por Acidente (Colômbia) – Netflix > Um dos mais surpreendentes documentários de 2024 veio da Colômbia e traz uma história bastante incomum. Em 2014, um rapaz de Bogotá descobriu, por uma colega de trabalho, que teria um sósia. Por coincidência, ele tinha um irmão gêmeo, mas, mesmo assim, decidiu ir atrás do moço que se parecia com ele. Foi aí que um caso raríssimo veio à tona, tanto que rompeu as fronteiras e serviu até para estudo de cientistas. É um filme um tanto burocrático na forma, mas espantoso no conteúdo.
Athena (França) > Netflix > Três homens de origem árabe se colocam em lados opostos após a morte do irmão caçula: o militar se junta aos pacifistas muçulmanos, o traficante chefia o cartel no conjunto habitacional Athena (nome fictício) e um outro lidera um grupo de rebeldes. Eis um dos mais explosivos registros de uma Paris segregacionista e, cada vez mais, intolerante ao islamismo. O diretor e roteirista Romain Gavras repete o pai (o lendário cineasta Costa-Gavras) na feitura de um cinema como instrumento político e de reflexões sociais. A realização também é fabulosa, com planos-sequência de tirar o fôlego e edição extremamente dinâmica.
Mixed By Erry (Itália) – Netflix > Uma história inspirada em fato é o que você vai conferir nessa deliciosa comédia italiana. Com ótima recriação de época e tempero nostálgico, a trama trata da explosão das fitas K7 e da pirataria da indústria fonográfica em Nápoles. O foco recai sobre três irmãos que se unem para abrir uma loja com produtos ilegais, já que um deles sabe fazer coletâneas musicais que todos os jovens adoram. Humor e drama, portanto, se unem num filme sem contraindicações e embalado por sucessos de Jackson Five, Frankie Goes to Hollywood e Eurythmics.
Yalda – Uma Noite de Perdão (Irã) – Reserva Imovision e Telecine > A pluralidade do cinema iraniano tem aqui uma história muito atual, que discute a pena de morte, a diferença de classes sociais e os limites do sensacionalismo na tevê. Yalda é o nome de uma comemoração que ocorre no Irã no solstício de inverno e é justamente nesse dia que o programa A Alegria do Perdão vai decidir o futuro de uma jovem. A moça matou o marido e foi condenada à morte, mas pode continuar viva caso a filha da vítima a perdoe. O filme tem 90 minutos (o tempo do programa) e a realização só reforça o talento do diretor Massoud Bakhshi, que está apenas no seu segundo longa-metragem.
Donbass (Alemanha, Ucrânia, França, Holanda, Romênia e Polônia) – Reserva Imovision > Mais conhecido como documentarista, o ucraniano Sergei Loznitsa faz aqui um estupendo registro ficcional, de ares realistas, mas com uma pegada surrealista, de acontecimentos que ocorreram entre 2014 e 2015, quando a Rússia invadiu a região de Donbass, no Leste da Ucrânia. São vários esquetes em planos-sequência (feitos num único take), que mostram a caótica situação no país, tomado por tanques de guerra e pela corrupção. O tom fica entre o dramático, como os ucranianos escondidos num bunker, e o humor mordaz, a exemplo de um casamento entre explosões.
Cow (Inglaterra) – Mubi > Você já deve ter visto alguns documentários sobre animais, mas jamais como esse registro intimista da diretora inglesa Andrea Arnold. A intenção da cineasta é mostrar o cotidiano de uma vaca sob o prisma de… uma vaca (!). Para isso, a realizadora escolheu Luma, nascida e criada numa fazenda do interior inglês que serve como leiteira e reprodutora. Não há entrevistas e os fazendeiros só aparecem de relance. A extenuante vida de Luma é captada com uma câmera muito próxima de seu olhar, ora indiferente, ora incrédulo. A beleza do documentário está em ver a conformidade no animal, cujo destino deixará qualquer espectador incomodado.
Great Freedom (Áustria e Alemanha) – Mubi > O vencedor do Oscar de melhor filme internacional, em 2022, foi o japonês Drive My Car, mas esse candidato da Áustria merecia, ao menos, estar entre os cinco finalistas. O roteiro é muito engenhoso ao misturar três épocas distintas sem perder o fio narrativo. Na trama, um homem judeu sobreviveu num campo de concentração e é preso, nos anos 1950, por ter um relacionamento gay. O mesmo personagem voltará à prisão em 1968 porque a homossexualidade era considerada crime na Alemanha Ocidental. Além de um rico panorama das décadas, o filme tem um protagonista interpretado com intensidade pelo alemão Franz Rogowski, que cabe num estudo psicológico – o do homem que, aprisionado em sua sexualidade, só encontra sua liberdade entre as grades.
As Melhores Famílias (Peru e Colômbia) – Amazon Prime > O Brasil até que tenta fazer comédias populares, mas elas quase sempre acabam na vulgaridade ou em piadas anêmicas. Com roteiro afiadíssimo e ótimas atuações, esse registro (tragi)cômico vindo do Peru é uma boa surpresa. Tudo se passa durante a comemoração de 65 anos de uma ricaça de Lima e, para apimentar a festa, uma inesperada revelação vem à tona. Os personagens são compostos, entre outros, por uma vovó maconheira, uma filha de esquerda e um idoso desmemoriado, mas, mesmo se amparando em estereótipos, a crônica social diverte com humor rasgado.
Concorrência Oficial (Espanha) – Disney+ > Mariano Cohn e Gastón Duprat são a nata do atual audiovisual argentino e criadores do filme Cidadão Ilustre e das séries Meu Querido Zelador e O Faz Nada. Competencia Oficial (título original) ficou inédito nos cinemas brasileiros e seu lançamento no streaming passou em brancas nuvens, durante a pandemia. Mas é um dos trabalhos mais irreverentes e irônicos da dupla, sobretudo por fazer uma debochada sátira dos bastidores do cinema. Penélope Cruz interpreta uma cineasta de métodos pouco ortodoxos que é contratada por um bilionário para transpor um livro para a tela. E ela escala dois atores de gênios e comportamentos opostos, papéis do argentino Oscar Martínez e do espanhol Antonio Banderas.
A Mulher do Lado (França) – Telecine e Mubi > Em seu penúltimo filme, de 1981, François Truffaut reuniu o ator Gérard Depardieu, o maior nome do cinema francês à época, e a atriz Fanny Ardant, com quem era casado, para realizar um de seus melhores (e menos comentados) filmes. A história, simples, porém arrebatadora, é sobre um homem e uma mulher que foram amantes e voltam a se reencontrar quando passam a ser vizinhos. O Telecine ainda tem outras obras de Truffaut, como Jules e Jim – Uma Mulher para Dois (1962), Um Só Pecado (1964), Beijos Proibidos (1968), Domicílio Conjugal (1970) e O Último Metrô (1980).
Os Desajustados (EUA) – Amazon Prime > Em 1960, o grande diretor John Huston reuniu um trio formidável para estrelar a adaptação de um texto de Arthur Miller para o cinema. O filme acabou se tornando um clássico. Foi o último trabalho de Clark Gable, que morreu dias após as filmagens, e também de Marilyn Monroe, que morreu em 1962. A estrela está visivelmente esgotada (tanto que precisou ser internada), mas é seu trabalho mais denso e dramático, interpretando uma recém-divorciada deprimida que se envolve com um homem de meia-idade (Gable). Montgomery Clift, outro grande astro da época, faz o papel de um peão sem dinheiro.
SÉRIES
Schmigadoon! (AppleTV+) > Teve apenas duas temporadas (2021 e 2023) essa série que é um deleite para quem gosta de musicais. A piada já começa pelo título: Schmigadoon! homenageia Brigadoon (A Lenda dos Beijos Perdidos, no Brasil), famoso musical estrelado por Gene Kelly e Cyd Charisse, em 1954. Na trama, um casal de médicos se perde numa trilha em meio à natureza e vai parar num vilarejo que parou no tempo e onde os moradores vivem como se estivessem num musical de época da Broadway. As referências da primeira temporada vão de Funny Girl a West Side Story. A segunda, mais “dark”, é inspirada em montagens das décadas de 1960 e 1970, como Cabaret, Hair e Chicago. Em ambas, a sátira funciona muito bem e vai divertir o espectador cinéfilo.
1971: O Ano em que a Música Mudou o Mundo (AppleTV+) > Sem prêmios nem muitas críticas, essa brilhante minissérie documental passou praticamente batida em 2021. Os oito episódios concentram-se apenas em um ano, o de 1971, quando foram lançadas algumas canções mais importantes da história, como Imagine (John Lennon), What’s Going On (Marvin Gaye), You’ve Got a Friend (Carole King), Walk on the Wild Side (Lou Reed) e Your Song (Elton John). Para ilustrar as entrevistas com produtores, cantores e músicos, há uma espetacular seleção de imagens de arquivo. O ano de 1971 foi marcado por protestos, rebeliões, crimes, Richard Nixon na presidência dos Estados Unidos – e a colagem de cenas vai desde a prisão da ativista Angela Davis até a morte de Jim Morrison, líder do The Doors.
Clark (Netflix) > Bill Skarsgård arrasou como o protagonista dessa minissérie sueca e, não à toa, conquistou um papel muito importante, o de conde Orlok, no novo Nosferatu, que chega em janeiro aos cinemas. O personagem é real. Clark Olofsson foi um dos criminosos mais procurados da história policial na Suécia e seu nome foi parar em estudos devido ao termo psicológico que ficou conhecido como Síndrome de Estocolmo, que é quando as vítimas desenvolvem empatia por seus sequestradores. A realização tem uma pegada pop: é colorida, com montagem acelerada e brincadeiras visuais de encher os olhos. Em vez de optar pela densidade e os dramas, o roteiro se apega à anarquia e ao deboche para mostrar como um bandido sedutor e mulherengo virou um anti-herói popular.
O Maestro e o Mar (Netflix) > A primeira série grega da Netflix é de uma beleza ímpar. Gravada na deslumbrante e pacata ilha de Paxos, a trama começa com a chegada de um professor que veio de Atenas para organizar um festival de música. Ele acaba se envolvendo nos dilemas afetivos de alguns moradores e tenta se desvencilhar dos assédios de uma aluna bem mais jovem que ele. As três temporadas tocam em temas como a violência doméstica, o tráfico de drogas e a homossexualidade reprimida, tendo um crime e uma investigação policial como pano de fundo.
Vosso Reino (Netflix) > Série argentina com duas temporadas (2021 e 2023), que termina de uma forma inacreditavelmente inesperada. Vamos torcer para ter continuação porque a trama é muito boa e ainda rende. O elenco, que reúne a nata do cinema argentino (Diego Peretti, Mercedes Morán, Joaquín Furriel e Chino Darín, filho de Ricardo), estrela uma história sobre os podres bastidores da política e das igrejas fundamentalistas evangélicas. Após a morte do candidato favorito à presidência, o vice assume seu lugar e dispara nas pesquisas. Ele é um pastor de ideias conservadoras, que esconde um segredo envolvendo um orfanato. O criador Marcelo Piñeyro, diretor de Kamchatka, foi um visionário ao abordar aqui a ascensão da extrema direita na Argentina, com a posse de Javier Milei, em dezembro de 2023.
Não Conte a Ninguém (Max) > A Netflix tem excelentes minisséries documentais de true crime, mas uma das melhores (e recentes) está disponível na Max (atual nome do HBO Max). Embora seja uma produção espanhola, a história tem personagens brasileiros. Em 2016, numa cidade perto de Madri, uma família foi assassinada. Os corpos do marido, da mulher e do casal de filhos pequenos estavam esquartejados em sacos de lixo numa casa alugada. O que se sucedeu é mais tenebroso do que qualquer filme de terror, sobretudo quando se descobre a identidade do principal suspeito. São cinco episódios, contendo gravações e entrevistas, inclusive em João Pessoa, cidade natal da família paraibana. A princípio, a dublagem em espanhol em cima da voz dos brasileiros vai parecer incômoda, mas o caso é tão estarrecedor e envolvente que isso se dilui.
It´s a Sin (Max) > Do filme Filadélfia à minissérie Angels in America, a Aids foi abordada de diversas formas, mas jamais teve uma profundidade tão grande quanto nessa minissérie inglesa. Quem vivenciou o drama de perto, entre as décadas de 1980 e 1990, vai notar a qualidade da recriação de época e do texto do galês Russell T. Davies, que escreveu o roteiro baseado em experiências pessoais. Isso contribui para dar autenticidade a um registro singular, que começa em 1981 e vai até 1991, mostrando a trajetória de três amigos gays de Londres, que têm reações distintas quando a doença começa a avançar no país – e no mundo. Joy Division, Soft Cell, Pet Shop Boys e R.E.M. são algumas das bandas que compõem a fervilhante trilha sonora de um painel de época tão encantador quanto triste.