Com valor na casa dos 1 mil reais pelo tratamento de um mês, 80% do valor de um salário mínimo, o Ozempic se tornou o iPhone da indústria farmacêutica: é, ao mesmo tempo, caro e vendido em larga escala. Criado para combater o diabetes tipo 2, o remédio tem como efeito colateral a sensação de saciedade – causando, então, a perda de peso. Graças às vendas da medicação lançada em 2017, a dinamarquesa Novo Nordisk se tornou a empresa europeia com maior valor de mercado, na casa dos 460 bilhões de dólares. Só no terceiro trimestre deste ano, a farmacêutica registrou lucro líquido de 1,3 bilhão de dólares.
No Brasil, o Ozempic não precisa de prescrição médica para ser adquirido. Isso faz com que algumas farmácias de São Paulo e Rio de Janeiro façam lista de espera para atender os clientes interessados, tamanha a procura. O laboratório já chegou a relatar à Anvisa atrasos na reposição do estoque.
Para um estrato ainda superior no topo da pirâmide, porém, o Ozempic está perdendo espaço para outro medicamento emagrecedor, com formulação diferente e preço, até o momento, muitas vezes maior: o Mounjaro.
Fabricado pela indústria farmacêutica americana Eli Lilly, o Mounjaro tornou-se a opção para quem tem entre 25 e 40 mil reais para gastar por um tratamento de seis meses – ou na casa de 10 mil reais para apenas um mês. “A procura tem aumentado muito”, confirma Fagner Magalhães, diretor comercial da importadora Acesso Medicamentos, sediada em São Paulo.
A Anvisa proíbe as importadoras de manter estoque de drogas ainda não autorizadas no Brasil, por isso é feito um pedido de cada vez. Em setembro passado, a comercialização do Mounjaro foi aprovada no país, mas ainda não há data para que o medicamento chegue às farmácias. Ele está agora em fase de análise de precificação – a tendência é que os valores sejam bem menores que os praticados na importação. Nos Estados Unidos, Ozempic e Mounjaro custam entre 900 e 1300 dólares – na prática, com descontos de plano de saúde, esse valor cai para 300 e 215 dólares.
O Ozempic faz parte da linha de medicamentos que têm como princípio ativo a semaglutida, o chamado hormônio GLP-1, produzido no intestino e responsável por levar ao sistema nervoso central a sensação de saciedade. Os principais efeitos colaterais da medicação são enjoos e prisão de ventre. O Mounjaro tem um recurso extra: além de agir na produção do GLP-1, ele tem como princípio a tirzepatida, que produz de forma sintética o hormônio GIP, responsável pela liberação de insulina. Com isso, diminui o apetite por açúcar.
São medicamentos para quem sofre de diabetes, indicados também para pessoas com obesidade (com índice de massa corporal superior a 30) ou com alguma comorbidade aliada ao sobrepeso (índice 27 ou maior). “Estamos vivendo uma revolução no tratamento de obesidade”, diz o endocrinologista e nutrólogo Lucas Costa, cujo consultório no Rio de Janeiro é frequentado pelos atores Marcos Pitombo e Bruna Griphao. “Mas é inegável que tem gente que usa esses medicamentos porque quer perder apenas 5 kg, e isso não é recomendável sob o risco de o efeito colateral ser mais severo.” Costa ressalta que o uso indiscriminado do Ozempic no Brasil se dá em parte porque, ao contrário dos Estados Unidos, aqui o medicamento pode ser adquirido sem receita médica. Basta ter poder aquisitivo para comprar.
“Essas drogas são revolucionárias e conseguem mudar o tratamento de diabetes e de obesidade. Mas, como qualquer remédio, podem ter efeitos colaterais, e seu uso desenfreado pode fazer com que pessoas que precisam de fato corram o risco de ficar sem elas”, diz Fábio Moura, endocrinologista e secretário executivo adjunto da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia. No caso do Mounjaro, os efeitos colaterais podem incluir prisão de ventre, azia e agravamento do refluxo.
Existe um debate quanto à necessidade de prescrição médica para esse tipo de medicamento, medida que a entidade apoia – mesmo que eles sejam mais seguros que as opções antigas para perda de gordura. Antes do Ozempic, as drogas utilizadas para tratar a obesidade atuavam no sistema nervoso central, entre elas as anfetaminas. “Elas alteram o humor e podem causar dependência química, fora os riscos de infarto e arritmia”, explica Moura.
Bem-recebidas por profissionais de saúde, as drogas da nova geração têm ressalvas de naturezas diversas. “Para começar, não substituem o exercício físico, capaz de combater a depressão, melhorar o sono e reduzir doenças cardíacas”, explica o educador físico e empresário Rodrigo Sangion. “Para quem não é obeso, o efeito dessas drogas pode ser muito ruim: elas diminuem a força física, aumentam a fadiga muscular e colaboram para o risco de lesão.” Sangion lembra algo que nos Estados Unidos se popularizou pela expressão “Ozempic Face”, quando a face murcha pelo uso excessivo da droga sem nenhum acompanhamento médico. “Eu usei Ozempic uma única vez e foi péssimo: tive refluxo por cinco dias e ausência de disposição”, diz ele.
Enquanto uma mesma caneta do Ozempic permite dosagens diferentes, cada unidade do Mounjaro tem uma fração específica para ser usada de uma vez, semanalmente: de 2,5 mg a 15 mg. Uma caixa de Mounjaro vem com quatro canetas. A Anvisa permite que o paciente importe o suficiente para o tratamento de seis meses, ou seja, 24 canetas armazenadas em seis caixas.
Pela Acesso Medicamentos, uma caixa com quatro canetas custa 10 mil reais. As seis caixas saem por 24 600 reais. Para fazer a importação, o paciente precisa ter uma prescrição médica, enviar uma foto do RG e fazer o depósito ou Pix. O remédio chega entre vinte e trinta dias após o pagamento. O transporte tem de ser feito em uma caixa refrigerada, com temperatura entre 2°C e 8°C. Assim como o Ozempic, o Mounjaro também fica armazenado dentro da geladeira da casa de seu usuário.
Dona da RQuaino Consultoria, sediada no Rio de Janeiro e especializada em auxiliar pacientes com a importação de medicação, Renata Quaino diz que a demanda pelo medicamento vem crescendo desde o início de 2023. Nos Estados Unidos, chegou em maio de 2022. “Tenho sido procurada sobretudo por pacientes com obesidade”, conta Quaino, que usa o perfil no Instagram da empresa para se comunicar com clientes. Sua empresa cobra 40 mil reais pelas seis caixas de Mounjaro, incluídas aí a taxa de importação, a de transporte e a termobox na temperatura certa. Tanto a Acesso Medicamentos quanto a RQuaino entregam o remédio para pacientes de todo o Brasil.
O Mounjaro, porém, também tem se espalhado pelo mercado paralelo. No Telegram, o remédio é oferecido em grupos estrangeiros com entrega para o mundo todo. Não é preciso prescrição nem enviar qualquer documentação – basta fazer o depósito. O grupo chamado “MOUNJARO (tirzepatide) WHOLESALE” conta com 32,1 mil inscritos. O administrador, que só se comunica em inglês, pede aos compradores que enviem a foto do produto assim que o receberem. Esse mesmo pedido é feito em grupos de Telegram que comercializam opioides, uma forma de provar ao potencial consumidor que o grupo de fato entrega o que oferece.
Custam mais barato, mas há dois grandes problemas. O primeiro é que grupos no Telegram são repletos de fraudes, como falsificação de medicamentos, o que é um grande risco para a saúde do comprador. O outro é que o comprador acaba participando de uma farsa: o fornecedor não solicita o pedido médico, mas avisa que, dentro da caixa com a droga, vai uma receita em nome do cliente para evitar eventuais problemas alfandegários.
Mesmo no mercado da importação formal, a internet tem sido o ambiente de negócios. Magalhães, da Acesso, conta ter investido nos últimos meses em anúncios no Instagram, Google e LinkedIn em busca de novos consumidores, o que fez com que a sua demanda pela importação tenha atingido o pico de vinte clientes por mês.
Procurada pela piauí, a Meta, dona do Instagram, diz proibir a venda dessas drogas em sua rede social. “Usamos uma combinação de denúncias da nossa comunidade, tecnologia e revisão humana para aplicar nossas políticas.” O LinkedIn afirma que suas “políticas de publicidade não permitem que as empresas direcionem anúncios de medicamentos controlados ou de farmácias online para usuários no Brasil.” Já o Google afirma que tem “políticas rígidas de publicidade que proíbem qualquer anúncio de medicamentos” que não esteja “de acordo com as normas e regulamentações locais”. A importação do remédio é legal no Brasil.
Remédios como Ozempic e Mounjaro têm desencadeado mudanças no comportamento de consumo da população. John Furner, CEO da rede de supermercados Walmart, disse em entrevista à Bloomberg News que seus consumidores que usam Ozempic e similares estão comprando menos comida, e isso pode ter um impacto no faturamento da empresa. Uma pesquisa feita pelo banco de investimento americano Jefferies mostrou que 70% dos usuários do medicamento consomem menos comida. “Eu senti a diferença no consumo de bebida”, explica Janaína Torres Rueda, chef da Casa do Porco e do Bar da Dona Onça e eleita a melhor chef da América Latina pelo prêmio Latin America’s 50 Best Restaurants. “O remédio parece dar azia e as pessoas ficam sem vontade de beber. Pensando nisso, o meu próximo menu da Casa do Porco vai ter opções com infusões de chás e cafés, sem álcool, para agradar esse público.”
São transformações, é claro, por enquanto percebidas entre os mais ricos. Esses medicamentos dão sinais de que podem ampliar o abismo social no combate à obesidade que afeta mais os mais pobres em muitos grupos populacionais. Uma pesquisa feita em 2022 pela Fundação Getulio Vargas, que analisa dados mundiais, mostra que economias com renda per capita muito acima da média mundial, como Luxemburgo, Singapura e Suíça, têm menos de 13% da população em condições de obesidade. De acordo com a Pesquisa Nacional de Saúde do Ministério da Saúde, no Brasil um em cada quatro adultos era obeso em 2019.
O Sistema Único de Saúde oferece dois tipos de atendimento para pessoas obesas: o acompanhamento nutricional, que tem limitações conforme o poder aquisitivo e as condições práticas para privilegiar alimentos in natura, e a cirurgia bariátrica, cuja fila de espera pode durar mais de ano. De acordo com a Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e Metabólica, foram realizados 74 738 procedimentos no Brasil em 2022 – sendo 65 256 através de planos de saúde. O tratamento medicamentoso gratuito ainda não existe. “A bariátrica é um reset, um recomeço. Não um fim em si. Quem faz essa cirurgia, precisa tomar remédio para a manutenção do peso e, então, o SUS não fornece nada”, diz Moura.
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