“OGeisel não foi eleito, eu fui.” Assim que o general Hamilton Mourão disse isso, cresceu na plateia uma ovação que terminou com dezenas de pessoas de pé no auditório B do Harvard Science Center, em Boston, em entusiasmada reverência ao vice-presidente da República. Era o último ato da Brazil Conference, reunião de acadêmicos, formadores de opinião, políticos e autoridades de variados calibres para discutir os problemas brasileiros. A reunião ocorre todo ano em solo americano, promovida pelos estudantes da Universidade de Harvard e do Massachussetts Institute of Technology. Mourão respondia a uma pergunta sobre a diferença entre os generais de Bolsonaro e os da ditadura – e os aplausos, aparentemente, deram-se pela compreensão geral de que a declaração denotava apreço pela democracia. Em quase uma hora de sessão, as palmas se repetiram sempre que Mourão dizia algo contrário ao que costumam pregar as alas mais xiitas do bolsonarismo – e, por vezes, o próprio presidente.
“Se não tivermos um trabalho consistente na área social, não vamos resolver nunca o problema da criminalidade.” Aplausos. “A punição [aos criminosos] só é válida quando ela educa.” Mais aplausos. “Não fossem as privatizações feitas por Fernando Henrique Cardoso, não estaríamos aqui hoje.” Novos e muitos aplausos, de uma plateia em que estavam, entre muitos, o próprio FHC, o presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, e o multibilionário Jorge Paulo Lemann, um dos patrocinadores do evento (com quem, aliás, Mourão teve um encontro privado). Algumas declarações já não caíram tão bem – como ter expressado dúvidas sobre o caráter permanente do aquecimento global. Ao final, porém, o vice de Bolsonaro conquistou a audiência. O que pode parecer inusitado, dado seu histórico de declarações polêmicas durante a campanha. Mas já não é mais surpreendente.
Quem assistiu à fala de Mourão na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, a Fiesp, dez dias antes, percebeu muito pouca diferença entre um discurso e outro. Várias frases foram simplesmente transpostas, e o sentido geral de ambos foi o mesmo – a defesa do governo Bolsonaro, com ênfase nas pautas liberais. Alguns trechos são adaptados para a audiência, como no repúdio ao ódio nas redes sociais, mas pouco além disso. Até a citação final ao presidente americano Franklin Roosevelt (do partido Democrata, oposição a Donald Trump), permaneceu: “Que vivamos sob a liberdade de expressão, a liberdade de religião, a liberdade de não sermos forçados a fazer aquilo que não queremos e principalmente a liberdade de não termos medo.” Em São Paulo, também, houve muitos aplausos e de pé. E se agradeceu ao general pela “disposição para o diálogo”.
A relação com a imprensa é um capítulo à parte. Mourão virou o “político-gente-fina”. Nas viagens ou em Brasília, dá tantas entrevistas coletivas que, por vezes, os jornalistas têm de recorrer à criatividade para não repetir as mesmas perguntas da vez anterior (o que nem sempre é possível). E é tão amável que já ganhou do reportariado o apelido de “Mozão”.
Com todos esses contrastes, não surpreende que as alas radicais do bolsonarismo digam que Mourão está conspirando contra o presidente. Na última sexta-feira, Carlos Bolsonaro postou no instagram de sua cachorra, @pitukabolsonaro, a seguinte declaração do marqueteiro americano Steve Bannon, publicada pela Folha de S.Paulo: “Mourão deveria renunciar e ir para a oposição.” Sobre a notícia, em letras estilizadas, o filho do presidente escreveu: “Acreditem! Dessa vez a Foice (como ele se refere à Folha) tem razão!”
Mourão diz que não é nada disso. Em Boston, assim como já tinha feito em São Paulo, ele defendeu Bolsonaro. Afirmou que o chefe é muito criticado e mal compreendido. E disse que, “de coração”, está totalmente alinhado com o presidente. O post já não está mais no ar.
Num contexto em que Bolsonaro dispensa a oposição para tumultuar, ele mesmo, o próprio governo, a questão que se coloca não é se Mourão é ou não um conspirador. Está mais para saber se, a esta altura, os radicais bolsonaristas podem hostilizar, isolar ou mesmo prescindir do vice-presidente. Com seus últimos movimentos, Mourão vem assumindo um papel de avalista. Assim como o mercado financeiro se agarra a Paulo Guedes para as questões macroeconômicas, cada vez mais será ao vice que o establishment recorrerá quando precisar de alguma garantia anti-solavancos. Num cenário de queda de popularidade, o vice, mais do que inevitável, pelo cargo que ocupa, vai se tornando necessário. Mesmo não gostando, os radicais pelo jeito não têm alternativa a não ser engolir Mourão.
A repórter Malu Gaspar viajou a convite da organização da Brazil Conference.