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    Elvira Vigna (1947-2017). Sua morte pegou o mundo literário de surpresa. Diagnosticada em 2012 com carcinoma micropapilar invasivo, ela manteve a doença oculta do público. FOTO: KARIME XAVIER_FOLHAPRESS

obituário

Muito a dizer

Morre em São Paulo a escritora Elvira Vigna, expoente de uma estética literária única

Mateus Baldi | 10 jul 2017_19h05
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Depois é impulsionar o corpo para fora
e a vida, estes anos entre uma e outra
vista de morro iluminado, acaba.
Elvira Vigna

 

“Apago.

Sabendo que nunca apaga.”

Assim termina Como Se Estivéssemos Em Palimpsesto de Putas. Lançado em 2016 pela Companhia das Letras, é o último romance de Elvira Vigna, falecida nesta segunda-feira, aos 69 anos.

Jornalista com passagens por O Globo e Folha de S.Paulo, Elvira Vigna era também editora e artista visual. Formada em Literatura Francesa pela Universidade de Nancy, era mestre em Comunicação pela UFRJ. Fundou as editoras Bonde e Uva Limão, esta última em parceria com o marido e os filhos. Sempre ligada à literatura infantil, Elvira ilustrou dezenas de livros, chegando a vencer o prêmio Jabuti. Nascida em 1947, a carioca publicou em 1988 seu primeiro romance adulto, Sete Anos e Um Dia, pela José Olympio.

Contudo, foi na Companhia das Letras, com O Assassinato de Bebê Martê, em 1997, que Elvira iniciou uma trajetória meteórica rumo ao topo da literatura nacional. Dotada de um senso de humor afiado, sua escrita era capaz de, na mesma linha, confortar e ativar sentimentos perturbadores. As palavras saíam como se projetadas de um telégrafo sideral, fazendo até o mais crítico dos leitores duvidar daquela capacidade de concatenar gestos impetuosos em frases tão curtas e ao mesmo tempo tão bonitas.

Sua morte pegou o mundo literário de surpresa. Diagnosticada em 2012 com carcinoma micropapilar invasivo, Elvira Vigna manteve a doença oculta do público. Segundo nota divulgada em seu site, ela “não quis que sua doença viesse a público por saber que, caso isso acontecesse, ela passaria automaticamente a ser excluída das atividades profissionais que dependessem de convite”.

Desde então, publicou 7 livros – quatro no Brasil e os outros em Portugal, Itália e Suécia –, 9 artigos acadêmicos e 4 traduções. No mesmo período, venceu quatro grandes prêmios de prestígio – APCA, ABL, Oceanos e Cidade de Belo Horizonte. De acordo com a nota, há três inéditos sob responsabilidade do autor Eric Novello.

 

Editor do Suplemento Pernambuco, Schneider Carpeggiani participou de vários eventos com a autora. Sua memória mais marcante data de 2016, quando organizou a Semana do Livro de Pernambuco.

– Elvira deu uma verdadeira aula de ficção quando lembrou uma história de quando era criança. Ela estava brincando do lado de fora do prédio com uma amiga e então cada uma entrou em seu respectivo edifício. Elvira viu um sofá cair do prédio da amiga e pensou, Não vou dizer que caiu um sofá do prédio dela. Quando chegou em casa, descobriu que havia sido uma noiva. Essa é uma definição forte da literatura da Elvira. A gente nunca sabe se voou um sofá ou uma noiva.  

Bastante participativa no Twitter, Elvira Vigna não se furtava a dialogar com todos que lhe respondiam. O tradutor Sergio Flaksman costumava falar com ela por lá, além do e-mail. Se conheceram em 2011, durante a entrega dos prêmios anuais da Academia Brasileira de Letras.

– A Elvira compareceu tão de leve que quase não aparecia, uma presença discretíssima e nada festiva, contrastando comigo e com o historiador Carlos Guilherme Mota, agraciado com o prêmio Machado de Assis.

Mas se era discreta, em alguns momentos ela se permitia experimentar alguns instantes de festa. Pouco antes de se mudar para São Paulo, foi ao Trapiche Gamboa, uma casa de shows de samba, com o escritor carioca Marcelo Moutinho.

– Era meu aniversário. Em dado momento, ela veio me dizer que não saía para algo assim fazia algum tempo, e do quanto estava feliz de estar naquela roda de samba, vendo as pessoas cantando, dançando. Sabe a generosidade de ficar feliz com a alegria dos outros? Era isso.

A grande força exibida por Elvira Vigna em seus romances, praticamente fundadores de uma nova estética literária, era também direcionada aos comentários a respeito de seus pares. O curitibano Luís Henrique Pellanda diz que Elvira lhe escreveu sem ao menos conhecê-lo.

– Ela lia tudo que nós publicávamos. Gostou do meu primeiro livro, me escreveu para falar o que tinha achado. Tomei um susto. Do segundo não gostou muito. Achou vários defeitos. Conversamos pessoalmente sobre esses defeitos, que ela lia e classificava a partir de uma leitura que chamava de “não cooperativa”, sob um viés feminista. De qualquer forma, concordando ou discordando do que ela dizia, fui aos poucos entendendo o que faltava nos meus textos. Não conseguia mais escrever sem pensar nos apontamentos dela, que faziam cada vez mais sentido.

Ricardo Lísias conta que Elvira foi uma das primeiras pessoas do meio literário a ler Cobertor de Estrelas, seu primeiro romance.

– Trocamos e-mails por vários anos. Fizemos vários eventos juntos. A Elvira era brutalmente honesta. Uma vez a gente estava esperando para um evento, uma daquelas salinhas com café, e surgiu um escritor. O sujeito cumprimentou e disse que tinha enviado um livro. Elvira simplesmente disse, Não agradeci porque não gostei do livro. Ela era bem direta, falava tudo que pensava sem vacilar, e toda vez que achava que tinha havido um comentário machista, intervinha.

O feminismo de Elvira Vigna foi exaltado por Noemi Jaffe. Escritora e crítica literária, a paulistana destacou a grande aura paradoxal que tanto encantava os que conheciam a amiga.

– Ela era muito amável pessoalmente, uma pessoa tímida e até frágil, embora tão forte política e esteticamente. Não se rendia a nenhum poder e não fazia concessões literárias.

 

As concessões às quais Noemi Jaffe se refere são as narrativas sempre fora da curva. Retomando o que disse o editor pernambucano Schneider Carpeggiani, Elvira jogava com a dubiedade, sempre deixando o leitor assumir uma falsa condução. O crime, estética brutal da natureza do ser humano enjaulado na metrópole, funcionava como leitmotiv em suas obras, mas não só – para Elvira Vigna não bastava apenas a mera existência de um assassinato ou coisa que o valha. Se é possível fazer alguma comparação, nesse aspecto era quase como Ian McEwan. No início da carreira, justamente pelo abuso de crueldade, foi chamado de Ian Macabro pela imprensa. Elvira não chegou a tanto, mas incomodava. E o uso das perversões de diversos tipos nas relações humanas eram apenas um trampolim para que aquela estrutura aparentemente frágil se revelasse uma rocha contra o telhado envidraçado dos leitores.

Por diversas vezes fui pego confrontando meus próprios demônios naquelas páginas. A personagem boazinha do começo podia ser terrível ao final da história, e vice-versa. Elvira sacava o que era a humanidade. No começo de 2016, twittou que tinha alguns exemplares da edição italiana de Nada a Dizer. Queria enviar a alguém. Pedi. Elvira entrou em contato. Trocamos alguns e-mails enquanto os Correios não vinham. Elvira leu um conto meu e demoliu o final – Mas adorei a linguagem, podia ter ficado sem o final punchline. Boa sorte com teu livro.

Nunca me esqueço de quando Niente da Dire chegou e olhei a dedicatória, na porta de casa, e comecei a gargalhar.

– Para o Mateus treinar palavrão em italiano!!

Embaixo, a assinatura quase minimalista.

Como Se Estivéssemos Em Palimpsesto de Putas, seu último livro, venceu o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte e é franco favorito para as premiações desse ano de 2017.

A sensação é que hoje, dia 10 de julho, o mundo literário perdeu não só mais um de seus pares, mas também todo um projeto literário, uma arquitetura consolidada que dificilmente será encaixada em algum gênero específico.  

Elvira vai.

Sabendo que nunca parte.

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