Chovia forte na manhã da sexta-feira, 18 de fevereiro, mas ninguém arredou pé da fila que se formou debaixo da figueira-benjamim fincada na área verde da Fundação Oswaldo Cruz, em Manguinhos, Zona Norte do Rio. Debaixo da mesma árvore havia um ônibus azul e branco com a inscrição Justiça Itinerante e, diante dele, cadeiras e mesinhas de metal onde seriam realizadas audiências judiciais. Na fila estavam pessoas que esperavam havia muito por aquele dia. Gabrian Jordano, de 23 anos, musicista, veio de ônibus de São Paulo na véspera com a namorada; Jac Ribeiro, de 47 anos, docente da UFF (Universidade Federal Fluminense), saiu de seu apartamento no Centro do Rio com uma amiga; Álex Sousa, de 20, estudante de letras em Manaus, pegou um avião na capital amazonense para estar ali. Tudo para ter direito a uma nova certidão de nascimento. Jordano, Ribeiro e Sousa queriam um documento que dissesse por escrito o que já sabem: não se veem nem como homens nem como mulheres, mas sim como pessoas do gênero não binário.
Para obter o novo documento, Jordano, Ribeiro e Sousa inscreveram-se para participar do mutirão realizado pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro em parceria com a Justiça Itinerante do Tribunal de Justiça do Estado e a Fiocruz. O objetivo do projeto é facilitar a vida de pessoas trans interessadas em fazer o que legalmente se chama de requalificação civil, alterando o nome e/ou o gênero nos documentos. A mudança serve para ajudar pessoas que, biologicamente, nasceram homens, mas se veem como mulheres trans; ou que, biologicamente, nasceram mulheres, mas se veem como homens trans. E pessoas que não se identificam com apenas um dos dois gêneros tradicionais, ou mesmo não se identificam com nenhum – nem se veem como homens nem como mulheres, que é o que define alguém não binário. “Desde criança eu sabia que não queria ser menino. Depois me vi como menino gay. E depois vi que eu não era também nada daquilo, nem era mulher. Fiz a crítica do binarismo de gênero e ali me encontrei”, diz Sousa, que prefere ser tratada pelo pronome feminino ela.
Mudar do masculino para o feminino, ou vice-versa, se tornou em tese mais simples desde 2018, quando o provimento 73, emitido pelo Conselho Nacional de Justiça, autorizou que a alteração de nome e gênero seja feita apenas nos cartórios, sem necessidade da realização de cirurgia de redesignação sexual nem de autorização judicial. Como a certidão de nascimento não tem o campo “gênero”, a mudança é feita no campo “sexo”. Mas as dificuldades burocráticas persistem, e serviços especializados são procurados por quem deseja fazer a mudança. Desde 2018 até 25 de fevereiro deste ano, os cartórios brasileiros registraram 6.423 casos de mudança, segundo dados da Arpen (Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais). Para alguém se identificar como sendo do gênero não binário, porém, exige-se autorização judicial. A Arpen não tem dados sobre registros de pessoas não binárias.
Nesse cenário, o mutirão encabeçado pela Defensoria Pública ganha ainda mais relevância. Na prática, funciona assim: a Defensoria entra, em nome de cada interessado, com uma ação de requalificação civil, informando quais as mudanças desejadas, se apenas o nome ou se também o gênero. Na data marcada, o ônibus da Justiça Itinerante vai até a Fundação Oswaldo Cruz e, ali mesmo, debaixo da figueira-benjamim, acontecem as audiências. O juiz André Souza Brito, sozinho ou ao lado de outro colega, está à frente das sessões. Ele recebe a ação, chama a pessoa para uma conversa rápida, confirma o interesse na troca e, de uma canetada, autoriza a alteração. À piauí, foi sintético: “Entendo que o gênero é uma questão de autodeclaração. A pessoa é que tem que decidir, não eu.” Tanto a Defensoria quanto a Justiça têm adotado na ação e nos documentos que dela resultam a expressão pessoa não binárie – como forma de valorizar a chamada linguagem neutra, sem privilégio para palavras masculinas ou femininas.
No mutirão realizado no dia 26 de novembro, 96 pessoas compareceram. Dessas, 22 mudaram para o gênero feminino, 27 para o masculino, e 47 se tornaram não bináries.
No dia 18 de fevereiro, a sexta-feira da chuva, das 70 pessoas inscritas, 65 compareceram: 15 queriam alterar o gênero para masculino, 25 para feminino, e 25 desejavam se identificar como não bináries. “Antes disso, só tínhamos notícia de cinco casos em todo o país de pessoas que tinham conseguido se identificar nos documentos como não bináries. Por isso esse mutirão é inédito e pioneiro, pelo volume de novos registros e pela ação de vários órgãos em conjunto”, afirmou a defensora pública Mirela Assad, coordenadora do Nudiversis (Núcleo de Defesa dos Direitos Homoafetivos e Diversidade Sexual) da Defensoria Pública do Rio de Janeiro.
Uma mudança significativa no trabalho do Nudiversis é que, há alguns anos, para solicitar a mudança de gênero, o interessado ou interessada passava por acompanhamento e entrevistas, para avaliar se ela era mesmo uma pessoa trans. “Passamos a compreender que não cabe a nós essa decisão. A pessoa é que tem que dizer como se sente quanto à sua identidade de gênero”, afirma Assad. O primeiro resultado é o boom de registros de não bináries no Rio. A próxima ação está marcada para 6 de maio.
Com a decisão judicial em mãos, a pessoa tem de ir ao cartório onde foi registrada e solicitar nova certidão de nascimento. Caso não tenha condições de comparecer pessoalmente, é possível requerer a solicitação judicialmente, por meio de carta precatória. O cartório faz então a retificação no livro de registros e expede outra certidão de nascimento, com o novo nome e, no campo “sexo”, a alteração de gênero. Emite também a chamada certidão de inteiro teor, historiando a mudança, para que a pessoa possa solicitar a alteração em todos os outros documentos, como carteira de identidade, CPF, título de eleitor, carteira de motorista, diplomas e toda a papelada acumulada ao longo da vida. Se tiver filhos, os documentos deles também precisarão ser modificados.
Depois de passar pelo mutirão da Defensoria, Ribeiro procurou o cartório e emocionou-se ao receber na segunda quinzena de março a nova certidão de nascimento, com o nome alterado e a identificação de gênero não binárie. Ribeiro acostumou-se a usar a linguagem neutra, sem identificação de gênero, para falar de si; em vez de ele ou ela, prefere elu e flexiona em “e” todos os substantivos e adjetivos. Historiadore e professore do curso de Arquivologia e Biblioteconomia da UFF, relembra que mesmo no ambiente universitário enfrentou preconceito em seus primeiros anos por causa da identidade de gênero. “Para quem vive estudando papel e documento, isso é uma grande conquista. Em termos de direitos, o documento é uma forma de inclusão social de pessoas que existem, mas têm a existência negada”, afirmou. Jordano também recebeu num cartório em São Paulo sua nova certidão de nascimento. Agora vai buscar os demais documentos.
Em Manaus, Álex Sousa está penando para conseguir a nova certidão. Obteve do cartório a explicação de que, apesar da decisão judicial, seria impossível fazer a mudança, pois o gênero não binário não existe no banco de dados do sistema de identificação. Recorreu à Defensoria Pública do Amazonas para tentar garantir o direito que lhe foi assegurado. “Sigo preocupada, principalmente pelo fato de esse ano ser ano de eleição. Meu objetivo é retificar a certidão, RG, CPF e título até antes do prazo máximo de regularização do título, dia 4 de maio. Com essa burocracia que estão criando corro o risco de não conseguir exercer meu voto. Sigo na batalha, tenho o amparo da Defensoria local, mas o lado de lá insiste em não contribuir na minha cidadania, e infelizmente atitudes severas em relação ao cartório devem ser iniciadas em breve. É uma batalha contra a transfobia institucional que tem o velho hábito de tratar nossos corpos como última prioridade.”
A vice-presidente de Política Social da Arpen-RJ, Priscilla Milhomem, disse que o sistema de identificação de sexo foi pensado dentro da lógica do binarismo, com as opções masculino e feminino. Existe ainda a opção sexo indeteminado – utilizado, por exemplo, para pessoas biologicamente reconhecidas como portadoras de características masculinas e femininas (intersexo, categoria que engloba, entre outras definições, o grupo que antigamente se chamava hermafrodita, nomenclatura que não é mais usada e é considerada politicamente incorreta). Segundo Milhomem, a opção “indeterminado” também é um recurso em certidões de óbito de cadáveres nos quais não foi possível identificar o sexo. É bem diferente, portanto, do que significa ser uma pessoa não binárie, para usar a terminologia que vem sendo adotada judicialmente. “Aqui no Rio, nós conseguimos criar o campo pessoa não binárie no banco de dados, e os cartórios estão fazendo sem problemas. O Tribunal de Justiça do Rio também está aceitando e fez a adaptação no layout para incluir esse campo e receber os dados dos cartórios. Entendo que os sistemas de cadastros, os outros bancos de dados, os emissores de carteiras de motorista, identidade, vão ter que se atualizar para conseguir processar esse dado e reconhecer esse direito. Sei que é uma inovação muito grande e terá que ser feita aos poucos.”
Graças à solicitação da Defensoria Pública, o Detran-RJ alterou o modelo de cadastro e criou o campo “não binárie” na identificação do sexo para a emissão da carteira de identidade. “O Detran se adaptou a essa nova realidade para incluir quem se identifica dessa forma. O documento acompanha a tendência da sociedade. Agora falta que os outros órgãos, principalmente federais, também aceitem essa modificação”, afirmou a defensora pública Fátima Saraiva.
Mesmo no Rio, apesar do apoio da Arpen-RJ e do TJ-RJ, houve dificuldades. A juíza Raquel Chrispino recebeu na Vara de Registros Públicos dúvidas de três cartórios sobre as alterações. Os registradores alegavam que seria difícil lançar a mudança em seu banco de dados e, mais ainda, afirmavam que ela não seria reconhecida pelo layout do Sirc (Sistema Nacional de Informações de Registro Civil), ligado ao INSS. Chrispino reiterou a decisão do juiz Souza Brito e determinou que a alteração fosse realizada: “Quanto à ausência de layout adequado para acolher o novo parâmetro previsto na decisão judicial, a conclusão que se impõe é a de que o direito da parte interessada não poderá ficar condicionado às limitações dos cadastros governamentais, quanto mais quando a evolução do fato social, ou de percepção do mesmo pelo mundo jurídico, é mais célere, sendo esta justamente uma das funções mais importantes da jurisprudência.” Traduzindo: altere-se o layout.
Procurado pela piauí, o INSS, gestor do Sirc, respondeu que a mudança para o gênero não binário é decisão recente e que ainda não há legislação que preveja essa classificação. Afirmou, porém, que o assunto seria levado ao Comitê Gestor do Sirc e que, posteriormente, seria iniciada “a adaptação do sistema com a indicação da opção não binário, especificamente”. Um sinal de que, quando mudam a sociedade e as pessoas, o direito, a linguagem, os bancos de dados e o jornalismo também precisam se transformar.