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    Ilustração de Paula Cardoso

questões de saúde

Muito gasto, pouca vacina

Contribuinte já desembolsou 2,2 bilhões de reais em projetos de imunização contra Covid; britânica AstraZeneca está no topo do ranking das empresas que mais receberam recursos públicos no ano

Marta Salomon | 15 dez 2020_17h32
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Muito antes de ter um plano nacional de imunização contra a Covid-19, o governo Bolsonaro desembolsou mais de 2 bilhões de reais em projetos de vacina. Documentos do Tesouro Nacional registram um primeiro pagamento de 991 milhões de reais à farmacêutica AstraZeneca em 16 de setembro, quantia que levou o laboratório britânico ao topo do ranking de empresas que mais receberam verbas federais em 2020. Mais de um mês depois de o dinheiro deixar o caixa do governo, o presidente Jair Bolsonaro declarava que “toda e qualquer vacina está descartada”. Era mais um lance da ofensiva contra a vacina desenvolvida pela chinesa Sinovac Biotech, em parceria com o Instituto Butantan e com o apoio do governador de São Paulo, João Doria. 

Na data da declaração e de seu veto à compra da CoronaVac, Bolsonaro já havia assinado duas medidas provisórias para autorizar gastos extraordinários totais de 4,5 bilhões de reais em dois projetos de desenvolvimento e compra de vacinas. A primeira medida provisória, editada em 5 de agosto, é acompanhada por justificativa assinada pelo ministro da Economia, Paulo Guedes. O gasto extra de quase 2 bilhões de reais garantiria a compra de insumos da farmacêutica AstraZeneca para a produção de 100 milhões de doses da vacina desenvolvida em parceria com a Universidade de Oxford na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). 

A segunda medida provisória foi publicada pouco mais de um mês depois e autorizava gastos extra de mais 2,5 bilhões de reais. O valor era a contrapartida brasileira na Aliança Global de Vacinas Covid-19, uma iniciativa apoiada pela Organização Mundial da Saúde e conhecida como Covax Facility. A adesão do Brasil ao pool internacional deveria garantir a imunização de 1 a cada 10 brasileiros até o final de 2021 ou das “populações consideradas prioritárias”, como esse contingente é definido no documento assinado pelo ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, para justificar o gasto. Em 24 de setembro, quase um mês antes da declaração de Bolsonaro, o ministro escrevia: “Entende-se que apenas uma vacina eficaz será capaz de garantir a interrupção do avanço da doença e permitir uma retomada completa das atividades econômicas e evitar novos óbitos no país”. A essa altura, o número de mortos no Brasil já passava de 139 mil. Bolsonaro assinou as duas medidas provisórias, mas continuou pregando contra a vacinação obrigatória da população.

O primeiro pagamento da contribuição para a Aliança Global, de 831 milhões, registrado em 7 de outubro, colocou a iniciativa no segundo lugar entre os maiores favorecidos com recursos públicos em 2020, à frente de gastos militares e outras compras de medicamentos, itens que vêm dominando o ranking federal nos últimos anos. A Covax Facility só fica atrás da AstraZeneca nesse ranking. Segundo o Ministério da Saúde, a Aliança Global permitirá a opção de compra de outras nove vacinas em desenvolvimento no mundo. O ministério não incluiu a chinesa CoronaVac na lista. 

Na segunda-feira, 14, quando o Supremo Tribunal Federal cobrou do Ministério da Saúde um cronograma para a campanha de vacinação contra o coronavírus, o Tesouro Nacional já contabilizava o desembolso de 2,2 bilhões de um total previsto de pouco mais de 4,5 bilhões com a AstraZeneca e a Covax Facility. O Plano Nacional de Imunização entregue dias antes ao STF considerava o compromisso de entrega de 100,4 milhões de doses pela farmacêutica britânica e 42,5 milhões de doses pela Aliança Global. Contava ainda com mais 70 milhões de doses da vacina da farmacêutica Pfizer, resultado de suposto acordo, ainda em negociação. Essa última vacina já imuniza parte da população do Reino Unido e dos Estados Unidos. 

 

Detalhes do acordo da farmacêutica AstraZeneca com a Fiocruz são mantidos em sigilo. A parte do acordo a que a piauí teve acesso prevê o risco tecnológico envolvido no processo de desenvolvimento da vacina. O documento não prevê devolução do dinheiro já desembolsado caso as pesquisas não cheguem a uma vacina segura, hipótese em que o contrato seria rompido. O investimento bilionário é justificado em vários parágrafos do contrato diante da crise econômica agravada pelo distanciamento social, apontado no texto como responsável pelo aumento do desemprego e fechamento de empresas. 

Uma das cláusulas do contrato de encomenda tecnológica, assinado em 8 de setembro, prevê que a vacina produzida pelo Instituto Bio-Manguinhos será destinada ao mercado público brasileiro, “para atendimento das necessidades do SUS”. Mas não há um veto claro à futura venda da vacina produzida pela unidade da Fiocruz ao mercado privado. A Fundação prevê autonomia para a fabricação da vacina no Brasil a partir do segundo semestre do ano que vem. Até o final de 2021, concluída a fase de transferência de tecnologia, a Fiocruz teria capacidade de fabricar mais 110 milhões de doses, além das 100 milhões de doses iniciais, das quais fará o processamento final.  

A Fiocruz calcula em 3,16 dólares o custo da dose da vacina da AstraZeneca. O Instituto Butantan, que fechou contrato de transferência de tecnologia com a chinesa Sinovac Biotech, estima em 10 dólares o custo da dose a ser produzida no Brasil. Os detalhes do acordo paulista também são mantidos em sigilo pelo Butantan. O custo anunciado foi de 90 milhões de dólares, cerca de 460 milhões de reais, o equivalente à metade do primeiro pagamento feito à AstraZeneca. 

Nenhuma vacina ainda teve pedido de registro ou de uso emergencial protocolado na Agência de Vigilância Sanitária. A Anvisa informa que a vacina da AstraZeneca, em parceria com a Fiocruz, encontra-se na fase mais adiantada, embora os documentos das vacinas da Pfizer e da Sinovac tenham sido apresentados antes à agência. A Anvisa informa que analisa resultados parciais resumidos entregues pela AstraZeneca sobre a segurança da vacina. Segundo o Ministério da Saúde, as primeiras 15 milhões de doses da vacina começam a chegar ao Brasil em janeiro. Procurada, a AstraZeneca afirmou que mantém acordos com outros 159 países e capacidade de produzir 3 bilhões de doses da vacina. “A vacina AZD1222 é armazenada de 2 a 8 graus, facilitando o uso nos ambientes de saúde existentes, farmácias e em países de baixa renda”, diz a nota da farmacêutica.

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