Mulata é uma palavra muito ruim. Nada nela se salva. Vem da ideia de mula, no sentido de animal híbrido, indicando a mestiçagem da pessoa. Como imagem, traz a visão erotizada, simplista e coisificada da mulher negra, como objeto de desejo e perdição. Qual não foi a minha surpresa, quando, advogada de uma empresa, fui conhecer meu novo chefe, e ele, que apelidava absolutamente todo mundo, me dedicou esse apelido. Ainda em choque, mas tentando manter a compostura, perguntei a razão pela qual eu teria um apelido. Com um sorriso impróprio para ambientes profissionais, disse: “Você deve sambar pra caramba.”
Naquele momento, eu já não era mais eu. Eu era a imagem esvaziada de uma mulher negra com todos os estereótipos possíveis. E tenho dificuldade ainda hoje, quando penso nesse dia, de saber o que gerou mais satisfação no meu chefe: me dar um apelido desses ou ver o meu desconforto e inabilidade em sair daquela situação. No final, consegui convencê-lo a não me chamar por apelido. Em troca, recebi hostilidade em todas as nossas interações, que foram bem mais numerosas do que eu gostaria, já que ele era meu chefe imediato.
Conto essa história como privilegiada, afinal, meu nome de batismo foi respeitado. Mas precisei ver o incômodo de meus colegas de trabalho, os sorrisos sem graça, a inadequação de quem se vê preso e impotente diante de uma situação dessas. A necessidade nos dá força para aguentar as mais diferentes formas de violência. Alguns dos apelidos eram, de fato, bem piores que o meu.
Apesar dessa história ter se passado em 2013, hoje ainda vemos uma sociedade com dificuldade de entender os limites do elogio. Alguns ouvirão sua própria voz nesse trecho do texto dizendo “o mundo tá ficando chato”. Mas a verdade é que, aparentemente, o óbvio deve ser explicado e, principalmente, ensinado.
Porque eu tenho certeza de que muitas mulheres, ao lerem esse relato, se lembrarão de alguma situação. Recordarão a dedicação para fazerem uma apresentação e, em troca, receberem elogios: “Você ficou ótima nesse vestido!” Muitas pessoas negras já se viram obrigadas a aceitarem apelidos, por entender que é mais fácil ceder do que lutar contra. Mas a pergunta que fica é: quando o trabalho se tornou tão difícil? Cadê o “trabalho dignifica o homem”? Que dignidade há em ser reduzida a um estereótipo simplório, uma única imagem de mulher, de negro, de indivíduo?
O trabalho não é favor, assistência social, muito menos privilégio. A dificuldade em se conceituar a ideia de trabalho decorre justamente da sua condição de essencial à própria existência humana: trabalho como modelador de identidades, de valores, de culturas, como integrador social.
Diante das eleições que se avizinham, a crise de empregos sem dúvida será colocada como principal questão da maioria das pautas. Mas a pergunta que não pode faltar é: de que trabalho estamos falando? A pergunta parece boba, mas não é. O discurso da criação de empregos a todo custo tem gerado a falácia da atualização da legislação trabalhista, precarização e informalidade. Voltamos a ver crescer os números do trabalho infantil. São famílias cujos adultos não conseguem sustentar a si e aos seus. É a miséria chegando ao trabalhador, apesar das pesadas jornadas e condições precárias. É a pobreza no trabalho.
Se pensarmos que isso tem acontecido com o homem branco, modelo da norma e estrutura social, o que dizer da situação da mulher negra? Na base da pirâmide, a mulher negra sofre as intersecções de raça, gênero e, muitas vezes, de classe, com um padrão social que a coloca como chefe de uma família monoparental. Além dessas dificuldades, e talvez por causa delas, recebem em média 43,5% do salário dos homens brancos[1]. Além desse padrão remuneratório inferior, são vítimas de assédios sexuais e agressões decorrentes da raça. Até o cabelo da mulher negra se torna questão no ambiente de trabalho, principalmente quando se choca com o dress code da empresa.
Essa crise nos alcança a partir do momento em que o trabalho e o trabalhador são desumanizados e transformados em variáveis no cálculo econômico. Se em 1919 a Organização Internacional do Trabalho proclamou em sua Constituição a não mercadorização do trabalho, o século XXI nos alcança com o que parece ser o completo esquecimento desse princípio: terceirizações, cooperativas fraudulentas, trabalhos intermitentes e pejotização tornam o trabalhador em objeto de contratos, não sujeito. E objetos não têm dignidade a ser respeitada, podendo ser alvo das mais variadas violências.
Além da questão econômica, representada muito bem pela inflação e pela crise dos salários, devemos exigir ainda mais dos postos de trabalho ofertados aos brasileiros. Em um país racista, machista e preconceituoso, é preciso garantir um ambiente de trabalho salubre, inclusive psicologicamente. Não podemos naturalizar a banalização das violações à dignidade dos/das trabalhadores/as.
E vocês talvez se perguntem: mas o que as eleições têm a ver com apelidos no ambiente de trabalho? Muita coisa, eu respondo. Temos hoje, em muitos aspectos, uma sociedade pautada pela violência das relações. Cada dia nos deparamos com atos hediondos, agravados pelo uso do álcool, de armas ou do racismo, machismo e transfobia. Parece não haver limites para a maldade humana, quer se fale de um estupro na sala de cirurgia, quer da improvisação de uma câmara de gás para matar preto pobre.
O erro, no entanto, está em pensar que são atos isolados, eventos aleatórios. Os preconceitos que geram esses atos, a mentalidade do “nós” contra “eles”, tem se impregnado no nosso modo de praticar as relações sociais, com autoritarismo e intolerância. Não é à toa que a ideia da escritora bell hooks do amor como prática se apresenta como tão inovadora e forte. Parece que só sabemos amar aqueles que se assemelham a nossos reflexos no espelho. Além de pensar em quem votar, é fundamental refletir sobre a superação de uma racionalidade que retira das relações sociais a empatia, o afeto e a solidariedade.
E se é de revolução que precisamos, que venha do giro de chave da tônica de nossas relações. É sim na simplicidade da mudança da forma de reagir à violência instaurada em todos os planos que podemos reconstruir a irreverência e alegria de ser brasileiro. Em um país que ainda discute termos como racismo recreativo e elogios assediadores nas relações de trabalho ou mesmo o estupro corretivo, a mudança de rumo é tão necessária quanto urgente.
[1] Estatística de gênero: Indicadores sociais das mulheres no Brasil, 2°edição. IBGE. Tabela n. 13, acessada em https://www.ibge.gov.br/estatisticas/multidominio/genero/20163-estatisticas-de-genero-indicadores-sociais-das-mulheres-no-brasil.html?=&t=resultados