Andar pelos bairros da periferia do Rio de Janeiro e conversar com sua gente é uma boa maneira de se informar sobre a extensão da crise econômica que aflige o país e o estado do Rio em particular. Em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, fui apresentada a mulheres que haviam sido demitidas de indústrias de confecção e, sem perspectiva de emprego com carteira assinada, engrossaram o exército invisível das “costureiras de facção”. Posteriormente, constatei o mesmo fenômeno em outros municípios da região metropolitana e em bairros da Zona Norte do Rio.
Não, o desespero não levou as costureiras para a criminalidade. Para os cariocas, facção é sobretudo sinônimo dos comandos que controlam o narcotráfico, o roubo de carga e os presídios. Mas o termo tem também um significado menos conhecido: ele é usado para designar a teia invisível de intermediários (pessoas ou microempresas) da indústria da confecção. As facções contratam costureiras para finalizar as peças de roupas vistas em vitrines famosas e em lojas populares; nas academias de ginástica, nos uniformes de trabalhadores e de estudantes das escolas públicas. A costura é o trabalho menos valorizado na produção da roupa. Os economistas diriam que ela é a “commodity” da indústria da moda.
É fácil localizar proprietários de facções no estado do Rio. Muitos deles publicam anúncios na internet à procura de costureiras. Sem me identificar como jornalista, respondi a um anúncio para saber as condições de trabalho e a remuneração delas. A facção funciona no bairro Parada de Lucas, na Zona Norte do Rio, e trabalha exclusivamente na produção de bolsas para material de ginástica. O proprietário me informou que paga de 1 real a 2 reais por unidade produzida, dependendo da complexidade do produto, e que uma costureira ágil e experiente consegue produzir de 60 a 100 bolsas por dia. As interessadas, segundo ele, são submetidas a um teste de habilidade para serem admitidas na rede.
Para uma costureira alcançar a produção diária de cem bolsas imaginada por meu interlocutor e faturar 100 reais, precisaria finalizar uma bolsa a cada 7 minutos e 20 segundos durante 12 horas (considerando-se a costura das bolsas que pagam 1 real). Idas ao banheiro e interrupção para o almoço não estão incluídas no cálculo, o que me leva a concluir que as costureiras de facção têm uma jornada diária comparável à das mulheres durante a Revolução Industrial, no século XIX, quando trabalhavam de 14 a 16 horas por dia.
Ana Lúcia Rosa Araújo, de 44 anos, moradora de Duque de Caxias, trabalha para uma facção subcontratada por fornecedores de uniformes escolares do governo do estado e de prefeituras da Baixada Fluminense. Com o colapso financeiro do setor público, os pagamentos aos fornecedores foram atrasados e muitas escolas ficaram sem uniformes suficientes para distribuir aos alunos.
A pedido das mães, Araújo passou a vender parte da produção em casa. Para atrair a clientela, fixou um cartaz no portão com os dizeres: “Promoção – blusas escolar [sic] – governo do Estado.” Um outro cartaz informa os preços das blusas para os alunos das escolas municipais de Caxias: 10 reais, para crianças até 7 anos, e 15 reais, para as maiores. Além de uniformes, ela costura vestidos para outros intermediários. Ela também costura vestidos para outras facções.
A “facção” é o elo entre as costureiras e as confecções. A maioria das facções é registrada como MEI (Microempreendedores Individuais) e não tem sequer telefone fixo para contato. Segundo o presidente do Sindicato dos Alfaiates e Costureiras do Rio de Janeiro e Baixada Fluminense, José da Silva Matos, mais conhecido como José Baiano, o fenômeno não é novo, mas cresceu muito em razão da crise e da competição dos produtos chineses. As facções, segundo ele, têm origem nas “costureiras externas”, que depois que se aposentavam nas fábricas passavam a trabalhar para os antigos patrões como autônomas.
Baiano diz que não há como quantificar o número de costureiras subordinadas às facções, porque as relações são informais, sem qualquer tipo de contrato entre as partes. Elas recebem as peças já cortadas de acordo com o molde, e o material necessário para executar o trabalho. Não há piso salarial, nem remuneração de folgas. Como as mulheres são remuneradas por produção, a tendência delas é trabalhar até o limite da resistência, quando há demanda.
Segundo o sindicalista, pode haver milhares de costureiras na informalidade no estado do Rio. Quando ele assumiu a presidência do sindicato, em 2006, havia cerca de 15 mil costureiras com registro em carteira. O número já tinha caído para 10 mil em novembro do ano passado, quando o sindicato deixou de homologar as demissões, em razão das mudanças na legislação trabalhista, e perdeu o monitoramento da força de trabalho. “Não sabemos quantas foram demitidas desde então. Suspeito que a terceirização cresceu muito, porque há cada vez menos trabalhadores nas empresas, e a produção não diminui”, afirmou.
Ana Lúcia Araújo começou a trabalhar em confecção aos 14 anos, como jovem aprendiz, passou por várias empresas e foi demitida do último emprego, por causa da crise, após vinte anos de serviços. Ela mora em uma casa de fundos com o marido e a filha de 11 anos, que passou a estudar em escola pública porque a família não consegue mais arcar com a mensalidade de 190 reais da escola particular. Como a casa é muito pequena, a costureira instalou três máquinas industriais sob uma cobertura de zinco, ao lado da cozinha, onde ela e duas tias trabalham das 8 às 19 horas.
A facção lhe entrega semanalmente as peças e o material de costura, e lhe paga 1 real e 50 centavos por camisa finalizada. Ela produz até 500 camisas escolares infantis por semana o que lhe dá uma remuneração semanal de 750 reais. Mas, nem sempre tem trabalho. Até o ano passado, Araújo fazia vestidos por conta própria, que vendia a 30 reais a unidade na feira livre de Duque de Caxias, mas parou a produção porque a crise também reduziu o poder aquisitivo da população de baixa renda que compra roupas na feira. Apesar das dificuldades, a costureira se diz otimista: “Sou uma privilegiada. Tenho parentes e vizinhos que estão há mais de dois anos desempregados.”