A venezuelana Yidri Carolina Torrealba Castilla viajou três dias de ônibus da cidade El Tigre, no Norte da Venezuela, até Boa Vista, em Roraima. Era janeiro de 2018 e ela estava grávida de sete meses. Esperava o segundo filho, o segundo menino. O mais velho tinha 11 anos. Formada em gestão ambiental, ela trabalhava na área de recursos humanos em uma empresa em seu país, mas foi perdendo renda. Acabou pedindo demissão e deixou a Venezuela em busca de melhores condições de vida. Uma amiga que vivia no Brasil acenou com a promessa de um emprego mais estável em Roraima. A família chegou a Boa Vista com uma quantia suficiente para se manter por dois meses.
Com o parto se aproximando, Yidri foi ao posto de saúde em busca de atendimento. Fez o acompanhamento dos dois meses restantes de gestação e foi direcionada à maternidade, onde realizou os exames necessários e conseguiu ter o parto normal. Sem trabalho e com um recém-nascido, precisou entregar a casa que havia alugado. A família passou dois dias dormindo na rodoviária. Yidri buscou apoio em um centro comunitário e foi recebida pela equipe da Operação Acolhida (OPA), que os direcionou para um abrigo estadual que oferece barracas de lona emborrachada para acomodar as famílias. “Por conta do material das barracas, eu não queria ficar lá com meu bebê. Eu saía do abrigo às seis da manhã para a rua e voltava às sete da noite. O sol daqui é muito quente, e o material das casas, a lona, esquentava demais, era ruim para a saúde da criança.”
A venezuelana fez um curso de empreendedorismo oferecido pela ONU Mulheres. Com materiais doados, abriu uma pequena empresa de coffee break e serve lanches em eventos. As famílias venezuelanas se juntaram, compraram um terreno em conjunto em uma região afastada do Centro de Boa Vista e hoje vivem em moradias improvisadas. Yidri, de 33 anos, mora com o marido e os três filhos, de 15, 5 e 2 anos. Apesar das dificuldades, não quer voltar para a Venezuela. “Hoje as mulheres estão recebendo mais apoio, tem mais oportunidade, curso de português… Quando eu cheguei foi muito difícil, só tinha esse curso na universidade e era muito longe.”
A mãe venezuelana é um dos rostos da crise migratória que perdura há anos em Roraima. De 2018 a 2022, o número de imigrantes de todas as nacionalidades que chegaram ao Brasil duplicou – subiu de 121.774 para 243.675, segundo dados do Sismigra (Sistema de Registro Nacional Migratório), da Polícia Federal. Em Roraima, o crescimento foi de 176%. Os venezuelanos são a maior parte contingente de recém-chegados: 145 mil no país, quase 60% do total (o segundo grupo mais numeroso é o de bolivianos, com 15 mil pessoas). Em Roraima, os venezuelanos são 96,7% dos imigrantes. Em geral, eles chegam pela fronteira terrestre, especialmente pela cidade de Pacaraima. Em março de 2023, o Brasil bateu pelo terceiro mês seguido o recorde de entrada de venezuelanos: 17.471 pessoas. Só em Pacaraima, a estimativa é de 750 venezuelanos chegando diariamente, calculam organizações que atuam no setor, como Plataforma de Coordenação Interagencial para Refugiados e Migrantes da Venezuela (R4V) e o Observatório das Migrações Internacionais (Obmigra).
Fugir da fome e da crise política que tomou o país vizinho nos últimos anos é o principal motivo para buscar abrigo no Brasil. E mulheres são parte significativa desse grupo de imigrantes – metade, em média, tanto dos venezuelanos que chegam ao Brasil como dos que escolhem Roraima para viver. Os dados do Sismigra mostram que, de 2018 a 2022, o número de mulheres venezuelanas em Roraima cresceu 183%.
Uma pesquisa da Fiocruz aponta ainda que as venezuelanas procuram o Brasil em busca de assistência médica. Cerca de 8% delas vêm grávidas de seu país, mostram os dados da pesquisa Saúde Sexual e Reprodutiva de Mulheres e Adolescentes Migrantes Venezuelanas no Brasil, realizada entre 2020 e 2023, coordenada pela Fundação Oswaldo Cruz e a Universidade Federal do Maranhão (UFMA). A pesquisa investigou a condição de saúde das mulheres e adolescentes venezuelanas em Pacaraima e Boa Vista, no estado de Roraima, em Manaus (AM), e São Luís (MA). Entrevistou 172 mulheres com idade entre 15 a 49 anos e 74 gestores, além de profissionais de saúde e agentes de instituições governamentais e não governamentais.
O estudo apontou que muitas dessas mulheres vêm de seu país com baixa adesão a métodos contraceptivos e sem acompanhamento pré-natal. De acordo com o levantamento, apenas 53% das venezuelanas que têm vida sexual ativa relataram o uso de algum método contraceptivo; entre as brasileiras, o percentual é de 80%. Tanto em Boa Vista como na fronteira em Pacaraima, o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), organismo da ONU responsável por questões internacionais, desenvolve projetos de saúde para melhorar a qualidade de atendimento das venezuelanas e diminuir mortes de grávidas por causas evitáveis.
O chefe de escritório da UNFPA em Roraima, Igor Martini, conta que uma das prioridades no estado é atender essas mulheres desde a sua entrada pela fronteira até o seu atendimento na capital ou municípios. A organização atua na orientação sobre o SUS e a distribuição de métodos contraceptivos, além da realização de testes de gravidez, aplicação de vacinas e treinamento de equipes de saúde especializadas para atender essas mulheres. No entanto, a organização não consegue atender a demanda de mulheres que vivem no interior. Roraima tem apenas duas maternidades públicas, o hospital e maternidade Nossa Senhora de Nazaré, na capital, e a maternidade Thereza Monay Montessi, no município de Rorainópolis, sendo assim esses atendimentos e orientações ficam limitados. Segundo Rita Suely de Queiroz Bacuri, do Instituto Leônidas e Maria Deane (ILMD/ Fiocruz Amazônia), que atuou na coordenação da pesquisa de campo em Manaus e Boa Vista, a busca por serviços de saúde simples e especializados foi um dos principais motivos da migração de mulheres para o Brasil. “Em relação às grávidas que chegaram sem acompanhamento, a medida é a realização de mais consultas e exames que possam compensar o atraso e garantir um parto com redução de riscos para a criança e a mãe. Isso, certamente, exige sensibilidade e compromisso dos profissionais de saúde no atendimento dessas mulheres”, afirma.
A ideia original da venezuelana Vanessa Villegas Peñalver, de 43 anos, era migrar para os Estados Unidos, onde mora sua irmã. No entanto, com o filho diagnosticado com uma doença autoimune – púrpura trombocitopênica idiopática, conhecida como “doença púrpura”, que causa problemas de coagulação do sangue – resolveu vir ao Brasil. Em Boa Vista, procurou o hospital da criança Santo Antônio, onde o diagnóstico foi outro. Ele não tinha púrpura, apenas estava abaixo do peso. “Eu tinha dois empregos, mas ainda assim não conseguia dar uma alimentação adequada para ele. Sou uma mãe solteira, e no meu primeiro ano aqui me separei do pai do meu filho”, ela conta.
Vanessa foi diagnosticada com hipertensão e obesidade. Conseguiu atendimento no posto de saúde de seu bairro, mas, sem dinheiro, acabou interrompendo o tratamento. Sua mãe, Carmen America Peñalver de Villegas, de 60 anos, migrou com ela e também estava doente. “Ela fazia faxina e reclamava muito de dores nas costas e dificuldades para respirar, e o tempo todo o doutor do posto de saúde falava que era normal a dor, por causa do trabalho.” A alternativa foi pedir um encaminhamento para São Paulo, cidade onde mora a irmã de Vanessa. Lá, Carmen foi diagnosticada com câncer de colo de útero e uma pedra na vesícula em estágio avançado. Seu quadro se complicou e ela morreu em setembro de 2022.
Vanessa tem ainda outra dificuldade. Na Venezuela, trabalhava como professora de matemática. No Brasil, luta para ter seu diploma universitário validado e fazer um curso ou prova que lhe permita exercer a profissão aqui. Segundo a Fiocruz, apenas 4% das entrevistadas na pesquisa tinham trabalho formal e a maioria delas sobrevivia com renda familiar entre meio e um salário mínimo. Vanessa se mantinha graças a aulas particulares de matemática. Ela chegou a montar uma pequena escola na casa em que alugou, mas não conseguiu manter o trabalho. Hoje sobrevive com o dinheiro do Bolsa Família e da venda de artesanato, trabalho de seu atual marido. “Se eu tivesse escolha, eu não teria vindo para o Brasil. A gente não vem porque quer, vem porque não tem escolha.” E pede um pouco mais de humanidade com os imigrantes: “Saúde é um direito universal, é um direito de todos.”
Em nota, a Secretaria de Saúde de Roraima (Sesau) afirmou que a crescente busca por atendimentos por parte da população venezuelana tem gerado grande impacto na rotina de funcionamento da saúde pública. A situação se agrava desde 2019. No Hospital Materno Infantil Nossa Senhora de Nazareth, os atendimentos a pacientes oriundas da Venezuela representam 24,5% do total de partos realizados. Só este ano, de 1º de janeiro a 26 de abril, foram feitos 3.392 partos, sendo 808 (24%) de mulheres venezuelanas. Segundo a secretaria, nas unidades da rede estadual, cerca de 20% dos atendimentos são para imigrantes. O órgão afirma ainda que vem realizando ações para fortalecer o atendimento dos SUS, além de firmar parcerias com órgãos públicos e entidades da sociedade civil que atuam no acolhimento a imigrantes.