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    ILUSTRAÇÃO DE PAULA CARDOSO

questões estilísticas

Multa que só não dói em bolso-faca

Em São Paulo, punições a taxistas que não usam calça social aumentam 60% este ano; dos tribunais aos estádios, códigos de vestimenta persistem pelo país

Vitor Hugo Brandalise | 06 maio 2019_17h05
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Até pouco tempo atrás, as únicas noções de costura que taxistas de São Paulo precisavam saber eram as que se usa no trânsito. Não mais. Desde que a prefeitura baixou um código rígido de vestimenta para a categoria, eles tiveram de incorporar conceitos mais restritos a boutiques e ateliês. Para conduzir um táxi na capital paulista, os motoristas homens são obrigados a usar sapatos ou sapatênis, camisa social lisa e sem estampas e calças sociais. Não pode tênis, nem camisa polo. Se quiserem vestir calças jeans, eles têm de seguir uma exigência bem específica: as peças devem ter “bolsos-faca”, um tipo de corte lateral reto de cuja existência nem desconfiavam. Hoje, todo taxista conhece a expressão, sob risco de a facada ser outra. Dirigir com traje irregular dá multa e apreensão do alvará do táxi – e a fiscalização ao que se veste por trás dos taxímetros nunca foi tão rigorosa quanto neste ano.

As regras de vestimenta existem desde janeiro de 2016, criadas pela administração de Fernando Haddad, do PT. Mas nos últimos meses o número de autuações disparou: de janeiro a abril deste ano, 301 taxistas foram multados na cidade por usar roupas inadequadas, uma média de 75 punições por mês. Em 2018, a média mensal foi de 47 multas por esse motivo (559 taxistas punidos no ano todo) – ou seja, um aumento de quase 60%. A multa é de 40 reais e dobra em caso de reincidência. De 2016 para cá, 2 077 multas foram aplicadas a taxistas por uso inadequado de trajes – 10% do total de autuações à categoria no período. Para as taxistas mulheres, a regra de vestuário é menos específica: fala apenas em “traje compatível” com o dos homens e cita o uso de tailleur.

Taxista há catorze anos, José Jadiel Rodrigues foi um dos flagrados pelos fiscais do Departamento de Transportes Públicos (DTP), dirigindo com roupa diferente da exigida. Numa manhã de fevereiro, o motorista de 50 anos acordou gripado e, antes de estacionar em seu ponto de táxi no bairro de Pinheiros, na Zona Oeste de São Paulo, parou numa farmácia para comprar um xarope. Ao tomar o remédio, Jadiel deixou cair um pouco na camisa social azul. Ele esfregou com água quente numa lanchonete perto dali, mas não limpou totalmente o borrão marrom.

De volta ao seu ponto, o taxista deparou-se com um dos 107 fiscais do DTP. “Nós mesmos chamamos o fiscal, porque havia motoristas de aplicativos esperando corridas bem perto do ponto, o que não é permitido”, contou Jadiel. O olhar do fiscal, porém, mirou outro tipo de infração – e a abordagem ao taxista acabou virando piada no ponto. “O fiscal viu a mancha de Melagrião na camisa e me chamou de ‘mulambento’. Mandou eu voltar para casa e trocar de roupa, que daquele jeito não dava para trabalhar.” Jadiel buscou no dicionário o significado do xingamento (queria fazer uma denúncia formal) e se entristeceu ao ver que era “esfarrapado”. “Comprei seis camisas sociais para me adequar, e o cara me ofende? Os fiscais deveriam ser melhor preparados. Pegamos uns passageiros estressados, que querem descontar na gente, e não respondemos no mesmo tom. Da mesma forma, eles deveriam nos tratar com mais educação”, disse o taxista, no intervalo entre uma e outra corrida.

Rodrigues deixou a ofensa para lá, mas afirma que a mancha de Melagrião foi um divisor de águas em seu ponto de táxi: depois disso, a fiscalização aumentou. Passadas algumas semanas, ele foi pego atrás do volante de seu Voyage usando uma camisa polo cinza, em vez de camisa social de botão, como prevê a norma. “O mesmo fiscal que me chamou de mulambento veio correndo até mim. Nem reclamei, porque sabia que estava errado. Não quis piorar, pois acho que estou marcado.” Além da multa de 40 reais, ele teve de ir até a central do DTP, no bairro do Pari, na Zona Norte, para reaver o alvará de taxista, retido após a autuação. Nesse mesmo dia da multa, disse Rodrigues, os dois pneus traseiros de seu carro estavam carecas. “Mas isso eles não vistoriaram. Veja as prioridades.”

Os fiscais do DTP se concentram em lugares de alto fluxo de passageiros, como o Aeroporto de Congonhas e a Rodoviária do Tietê e, quando visitam pontos de táxi, chegam de surpresa e estacionam bruscamente as viaturas. É comum virem acompanhados de guardas civis armados. Era cedinho, por volta das 7 horas de uma segunda-feira de março, quando o taxista Marcos Segantin – colega de ponto de Rodrigues – notou um fiscal do DTP aproximar-se rapidamente da parada de táxi. Chegou bem perto e pediu que erguesse a camisa. “Ele queria ver se eu estava usando o cinto nas calças”, relembrou o taxista de 55 anos, nas ruas de São Paulo desde 2004. Cinto é outro item de vestuário obrigatório para taxistas na cidade. Naquele dia, Segantin tinha a indumentária em ordem, mas ainda assim levou um pito. “Ele disse que minha camisa estava surrada no peito. Estava mesmo! É onde o cinto de segurança pega, marca, fica raspando o dia inteiro. O tecido não aguenta”, explicou. “Mas não é por isso que precisa esculachar. O tom deles é desrespeitoso.”

Segantin já foi multado três vezes por dirigir usando trajes em desconformidade com as regras da prefeitura. O problema é sempre a camisa. “Amigo, a minha mulher tem problema de coluna, duas hérnias de disco e bico de papagaio nas costas. Ela passa a roupa bem devagarinho, quando consegue. E eu trabalho de doze a dezesseis horas por dia para receber a metade do que eu ganhava antes dos aplicativos”, disse. “Comprei várias mudas de roupa, mas, e se não deu tempo de lavar e passar? E de secar, já que de vez em quando chove, não é? Aí vou deixar de vir trabalhar?”

Em grupos de WhatsApp ou nas ruas, a roupa virou assunto recorrente entre taxistas. “No domingo agora um colega me viu num farol e gritou: ‘Se vai no aeroporto, olha a roupa!'”, contou Segantin, enquanto bebia, cuidadoso, um café no boteco da frente do ponto. “Sou a favor de normas, mas não dá para radicalizar. Está com a camisa suja, rasgada, aí multa. Do contrário, deveriam deixar passar.”

Taxista mais antigo do ponto, com quarenta anos de praça e “2 milhões e 890 mil quilômetros rodados”, Gilberto Nogueira, de 60 anos, recentemente decidiu encerrar o expediente mais cedo, por causa da tensão de dirigir usando um jeans sem os afamados bolsos-faca. “Era sexta-feira e decidi sair direto do trabalho para um fim de semana em Atibaia, sem passar em casa. Vim mais informal, de jeans, mas um fiscal bateu e notou o formato do bolso. Ele pediu para eu ir para casa, que dirigir daquele jeito não dava”, contou. “Aí avisei que encerraria o expediente ali e fui embora na metade do dia. Não gosto de dirigir fora do padrão, fico tenso.”

Uma praxe agora é recusar corridas a lugares de maior fiscalização. “Outro dia fui três vezes a Congonhas, e nas três me pararam para ver o carro e a roupa. Perdi um tempão, então parei de ir até lá”, disse o taxista Eliseu da Rocha, de 36 anos, que trabalha desde 2003 nos arredores do Centro de Convenções do Anhembi, na Zona Norte. “Comprei uma calça jeans top, na Oscar Freire, uma camiseta bonita, vai dizer que não posso usar? Concordo com a fiscalização e que precisa ter normas, mas dá para flexibilizar.”

Foi o que aconteceu em Curitiba, outra capital com regras de vestuário para taxistas. Em vigor desde outubro de 2016, as normas a princípio eram parecidas com as de São Paulo – traje majoritariamente social. No ano passado, após conversas com a categoria, a prefeitura curitibana passou a aceitar camisas polo. Em Porto Alegre, onde taxistas também precisam dirigir usando roupa social, há flexibilizações esporádicas: no verão, os motoristas podem usar bermudas. No Recife, onde ainda não há regras de trajes para taxistas, o sindicato da categoria apoia que sejam criadas, acreditando que resultará em “qualificação do serviço”.

Questionada sobre o volume de multas a taxistas por usar trajes inadequados nos últimos meses, a Prefeitura de São Paulo, sob a gestão do tucano Bruno Covas, discorda que seja maior do que em outros anos. “Somente com os dados de multas de todo o ano será possível fazer comparações das médias mensais”, escreveu, em nota, à reportagem.

Para dirigir nas ruas de São Paulo, motoristas de aplicativos também têm regras de vestuário. Aprovadas em 2017 na gestão de João Doria, as normas para eles são mais flexíveis: além do traje social, podem dirigir usando camisa polo e calças jeans de qualquer tipo (tenham ou não os bolsos-faca). “É bom que os motoristas se vistam bem, para mim é um sinal de respeito com a população. Se não restringir o uso de camisa de político ou de futebol, por exemplo, pode dar briga”, disse Paulo Henrique Neves, que foi taxista durante doze anos e hoje dirige seu Fiat Uno pelo Uber. “Mas eu sou contra exageros, como exigir roupa social. Acho que ainda vão criar um padrão para as categorias. Esses serviços pelo celular ainda são recentes, daqui a pouco as regras ficam iguais para aplicativos e táxis.”

Sobre a diferença nas normas para taxistas e os motoristas de carros via aplicativos, a Prefeitura de São Paulo afirmou que “as normas foram definidas a partir de diálogo” tanto com os taxistas quanto os motoristas de aplicativos e que, caso as categorias desejem, está “sempre disponível para avaliar melhorias nas regras”.

Para além dos pontos de táxi e das ruas de São Paulo, os códigos e padrões de vestimenta persistem em outros lugares da sociedade brasileira. Mesmo um esporte tão popular quanto o futebol, que de aristocrático já não tem nada, mantém exigências.

No estádio do Maracanã, por exemplo, torcedor nenhum pode entrar na tribuna de honra se estiver usando bermuda. É a mesma regra das três tribunas de honra do estádio do Morumbi, do São Paulo, e da tribuna presidencial da Arena do Grêmio, em Porto Alegre. Já no Itaquerão, o estádio do Corinthians, só há uma recomendação: que os torcedores não usem “vestimentas da cor verde” (do rival  Palmeiras), para não “gerar desconforto”, segundo nota da assessoria de imprensa do time. Na sede do clube, no bairro paulistano do Tatuapé, na Zona Leste, vale a mesma norma pouco civilizada: se um funcionário aparece com alguma peça de roupa verde, são grandes as chances de levar uma chamada. “Outro dia aconteceu um bate-boca na cantina porque um entregador de bebidas apareceu com um boné verde. Um sócio, da Gaviões da Fiel, quis tirar o chapéu da cabeça dele, e quase deu briga”, contou um funcionário, crítico ao padrão de conduta. “Se você está de verde, alguém ‘de bom coração’ se aproxima e diz baixinho para não vir mais. E fica achando que fez uma boa ação, não vê a intolerância por trás dessas regras.”

Enquanto isso, lugares tradicionalmente restritivos em relação às vestes aos poucos afrouxam as normas. No Jóquei Clube do Rio de Janeiro, até dois anos atrás só se podia entrar na tribuna social para assistir ao Grande Prêmio Brasil de Turfe (realizado sempre em junho), vestindo terno e gravata. Foi assim durante oito décadas, entre 1933 e 2017 – até que a regra caiu, numa tentativa de atrair mais frequentadores. Algumas proibições, contudo, seguem valendo e ainda hoje não se pode assistir a esse evento de bermuda, chinelos e regata. Já no Jóquei Clube de São Paulo, que há anos tenta sair de uma crise financeira, quase não há mais restrições nos trajes. Em um único domingo do ano, o do Grande Prêmio São Paulo (realizado no último domingo, 5 de maio), exige-se paletó e gravata para entrar. Nos outros dias do ano, para circular nas dependências do clube de turfe, a única proibição é o uso de regata e chinelos no restaurante considerado mais elegante, ao lado da arquibancada social. Mas bermuda, mesmo nessa área, já pode.

Ao longo dos anos, órgãos do poder Judiciário protagonizaram discussões sobre como cidadãos e funcionários devem se apresentar em suas dependências. Há casos como o do lavrador que não pôde participar de uma audiência por usar chinelo de dedo, no Paraná; o da advogada impedida de prosseguir trabalhando por usar um vestido considerado indecoroso por um desembargador, em Goiás; o do advogado baiano barrado na porta de um tribunal em Salvador por usar o “eketé”, um chapéu típico do candomblé, num período do ano em que a veste é obrigatória a devotos da religião. Cada caso é tratado de maneira subjetiva, de acordo com a cabeça da autoridade responsável pelo órgão envolvido.

Não há uma regra geral para roupas que podem ou não ser usadas nas instituições de Justiça no país: tribunais têm autonomia para regulamentar como quiserem. Ao longo de três anos, Hélcio Aguiar, auditor da Receita Estadual em Goiás e professor de direito em faculdades como a Lions (Goiânia) e a Fibra (Anápolis), pesquisou normas de vestuário para sua dissertação de mestrado. Depois de analisar 51 tribunais de Justiça em todas as unidades federativas, ele concluiu que 66% deles (34 órgãos) têm regras “cerceadoras” das vestes de cidadãos que tentam acessar o sistema Judiciário.

“Uma das conclusões da pesquisa é que limitar o acesso em função das vestes é inconstitucional. A Constituição garante acesso à Justiça a qualquer cidadão brasileiro e isso, claro, inclui poder entrar em suas dependências”, disse Aguiar em entrevista por telefone à piauí. “Os maiores prejudicados são os mais pobres, que buscam, por exemplo, o acesso ao direito de defesa, por meio das defensorias públicas. Muitas vezes elas ficam dentro dos fóruns. Se o cidadão não tem roupa para entrar no fórum, vai ser excluído de um sistema que deveria ser de acesso universal.”

Em 2016, o levantamento de Aguiar chegou ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que reconheceu a determinação constitucional de acesso à Justiça e recomendou aos tribunais para considerarem “aspectos da cultura local e especificidades regionais” ao definir regras de vestuário para a entrada em fóruns e outras instituições do Judiciário. “Ainda assim, considero uma iniciativa tímida do CNJ, porque é só uma recomendação, e não a declaração de que não é competência dos tribunais limitar o acesso à Justiça”, disse Aguiar. “A redação do acórdão do CNJ é um “apelo ao bom senso, mas minha pesquisa mostra cientificamente que isso não existe: o excesso de poder nas mãos dos magistrados responsáveis pelas unidades resulta, na maior parte das vezes, em restrição do acesso, e não franquia.”

Para o pesquisador, o máximo a ser exigido de um cidadão para que entre em instituições da Justiça deveria ser um traje acessível em todo o território nacional: calça jeans, camiseta, calçado fechado ou chinelo de dedo. “Essa é uma roupa digna em qualquer lugar do planeta, e faz parte do dia a dia da população brasileira. O Judiciário é o poder que mais responde às demandas da sociedade, e o que mais avança. É preciso avançar aqui também, e minimizar os resquícios do que é uma cultura excludente”, disse.

Segundo o professor do Instituto de Psicologia da USP José Moura Gonçalves Filho, que investiga o uso de uniformes no ambiente de trabalho desde a década de 90, na maioria das vezes, regras rígidas de vestuário servem para demarcar posições, geralmente de funcionários subalternos. “Elas empobrecem e achatam as relações sociais. As pessoas deixam de ter características próprias e viram apenas uma função profissional. Outras dimensões sociais, como a conversa, por exemplo, se perdem”, disse Gonçalves Filho, um dos principais estudiosos do conceito de humilhação social – sofrimento causado pelo rebaixamento político e psicológico experimentado por cidadãos pobres no país. O professor faz a ressalva de que profissionais como bombeiros, médicos e policiais precisam de uma demarcação mais clara de suas funções, também por meio das vestes. “Nesses casos, vidas podem depender da identificação imediata do que eles fazem.”

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