Em meio ao sol forte e a alguns ipês que ladeiam um muro de concreto, os visitantes passam pela primeira guarita e encontram dois oficiais em sentinela. Atravessa-se um corredor, tem-se os documentos checados e a bolsa escaneada antes de um oficial fardado aparecer para guiar o visitante até a sala escolhida. O ambiente é vetusto, mas dos alto-falantes emana Você É Linda, de Caetano Veloso. No caminho entre a guarita e o estacionamento, o cardápio passa por Forever Young – na voz rascante de Rod Stewart – Aonde Quer que Eu Vá – dos Paralamas do Sucesso – e Sacrifice – de Elton John. Estamos nos estúdios da rádio Verde Oliva FM, a 7ª mais ouvida do Distrito Federal, criada em 2002 e localizada dentro do Quartel General do Exército, em Brasília.
Três décadas depois do fim da ditadura militar no Brasil, cada braço das Forças Armadas – Marinha, Exército e Aeronáutica – tem seu próprio canal de rádio. Depois da Verde Oliva FM (que há quinze anos usa o slogan “sinal verde para a boa música”) vieram, em 2009, a Força Aérea FM (“rompendo a barreira do som”) e, dois anos depois, a Marinha FM (“navegando nas ondas do rádio”). Todas têm estúdio em Brasília, de onde sai a programação para o resto do país. Com transmissão analógica, as duas primeiras navegam nas frequências 98,7 e 91,1 na capital do país.
Propalando seu caráter “exclusivamente educativo”, as emissoras limitam-se a divulgar ações institucionais, como alistamento e concursos públicos, e comunitárias, como campanhas de vacinação, e algumas notícias na voz de locutores contidos. Entre anúncios oficialescos, os ouvintes escutam uma seleção musical eclética: rock, pop, jazz, blues, bossa nova, eletrônica, erudita – incluindo Anitta e Despacito.
Em tempos em que manifestantes invadem as ruas e até mesmo deputados no plenário da Câmara clamam por um governo de generais, a playlist das rádios fardadas é inabalável: às 8 horas toca o Hino Nacional e a programação segue de forma eclética ao longo do dia, ignorando o cenário político. Aos que as sintonizam esperando por gritos de guerra, o dial responde com Gilberto Gil.
A Verde Oliva fica no térreo de um dos blocos do QG do Exército. Três militares com uniformes camuflados estão a postos para a entrevista. Eles estão acostumados com perguntas inconvenientes dos visitantes. O que acham da candidatura de Bolsonaro? Entreolham-se com certo desconforto enquanto Dire Straits está no ar com Your Latest Trick. O que pensam da volta das Forças Armadas ao poder? Fiel à cartilha, o oficial mais novo – que não pode se identificar – tem a resposta pronta: o artigo 142 da Constituição estabelece que Exército, Aeronáutica e Marinha “destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.
“Não temos pretensão de ser uma rádio de notícias, mas de oferecer uma seleção agradável aos ouvidos”, disse o sargento catarinense Cristiano Alves da Silva, 36 anos, 16 de Exército, responsável pela programação da Verde Oliva, que tem 17 funcionários, sendo 5 deles civis. O público também só quer saber de música, segundo a corporação. “Nossos ouvintes não falam de política, não usam a rádio como plataforma”, esclarece o sargento.
O produtor goiano Emerson Kronieques da Silva, 39 anos, um dos civis da equipe, chegou em Brasília dois meses antes de a rádio ir ao ar. Ele conta que nunca sofreu bullying por trabalhar em uma rádio das Forças Armadas: “É o contrário. Os colegas me pedem vaga aqui. Sou valorizado como profissional e não existe instabilidade quando a direção da emissora é trocada.”
A jornalista mineira Raquel de Souza Alves chegou na capital federal em outubro de 2014. A primeira sensação foi a de estranhamento. “A cidade não tem morro, não tem calçada.” Criada em Barbacena, a tenente de 33 anos estudou jornalismo em Belo Horizonte, onde morou dos 17 aos 30 anos, e fez pós-graduação em rádio e tevê. Com dificuldade de entrar no mercado local, resolveu estudar para concurso. Pensou na Copasa, a Companhia de Saneamento de Minas Gerais, mas ouviu falar do exame da Força Aérea Brasileira. Só havia três vagas. Passou.
“Eu nunca tinha sido chefe e peguei logo um veículo de comunicação da FAB”, disse. O susto inicial revelou-se um desafio dos bons. Menos de três anos depois, Alves abraça a rádio: é locutora, repórter, faz entradas ao vivo, cria vinhetas, cuida da grade de programação, batiza os programas. Ponte Aérea, 14 Bis, Jet Lag, Voo Noturno, Top FAB. “Já fizemos especiais em homenagem a David Bowie, Prince, Amy Winehouse”, comenta. Até o pavor de avião – “quando passei, pensei: meu Deus, vou ter que voar toda semana” – foi vencido. “O conhecimento fez com que eu perdesse o medo, fui conhecendo as aeronaves, os detalhes técnicos, os planos de voo”, conta a tenente, que hoje tem um aviãozinho de pelúcia branco, modelo T-25 Universal, na sala de casa em Brasília.
Mas ainda prefere percorrer o trecho Brasília-Belo Horizonte-Brasília no chamado Expresso Pão de Queijo, ônibus de turismo carregado de mineiros que trabalham na capital federal, e que voltam a Minas nos fins de semana.
O jornalismo das rádios FM das Forças Armadas é alimentado por agências de notícias ou pela própria comunicação social da corporação. Eventualmente, a equipe produz reportagens especiais, como ocorreu em março, quando Raquel de Souza Alves foi a Tabatinga, no Amazonas, para relatar o combate ao tráfico na região da fronteira. Já a grade musical vem de um software que oferta milhares de opções. E há anúncios: seguro de carro, plano de saúde e financiamento da casa própria e de eletroeletrônicos, e reclames institucionais. “Tenho muito orgulho de fazer parte dos canais de comunicação da Força Aérea Brasileira”, diz o apresentador Luciano Huck em uma saudação transmitida na emissora da corporação – o ex-piloto Emerson Fittipaldi também deu seu alô.
Depois das mensagens, Carinhoso, de Pixinguinha, é seguida de Secret, de Madonna. “Elas não têm discernimento, não sabem fazer um bloco musical”, disse o programador artístico e locutor Edson Rabelo, 25 de rádio, comunicador da Supra FM, uma emissora popular de Brasília. “Rádio tem de ter um segmento musical, você não pode tocar Chitãozinho e Xororó e Caetano Veloso. Assim você confunde a cabeça do ouvinte.”
O público parece não se incomodar com a miscelânea. Manda e-mail, elogia, pede música e até foto do pessoal do estúdio, como fez um paranaense de São José dos Pinhais, fã da Força Aérea FM. “Nós não temos a pretensão de ser uma rádio concorrente no mercado”, se defendeu o tenente-coronel Rodrigo Fontes, de 45 anos, chefe de produção e divulgação do Centro de Comunicação Social da Aeronáutica. “A gente é quadrado, hierarquizado, mas não só isso, temos liberdade de criação”, explicou o coronel-aviador Flávio Eduardo Mendonça, vice-chefe do Centro de Comunicação.
Segundo eles, nenhum artista é vetado, nem mesmo aqueles que subiram em palanque em nome das Diretas Já. “Só não tocamos músicas de baixo calão ou que fazem apologia ao crime”, disse Raquel de Souza Alves.
No anexo do Comando da Marinha, na Esplanada dos Ministérios, a rádio da corporação ocupa um estúdio miúdo, suficiente apenas para a equipe de três militares. O noticiário Maré de Notícias vai ao ar quatro vezes por dia, abastecido pelo Centro de Comunicação Social. “Há informações locais produzidas nas cinco cidades que têm nossa FM no dial”, esclarece o capitão-tenente Francisco Figueiró, paulista de 38 anos e 17 de Marinha. São elas: Manaus, Natal, São Pedro da Aldeia, Corumbá e Rio Grande. O cardápio inclui os especiais Brisa Marinha (jazz e blues), Bons Ventos (romântica internacional), MPB a Bordo e Bem-vindo a Bordo (eletrônica).
No fim do dia, enquanto a Força Aérea coloca no ar o Hino da Bandeira, a Marinha FM executa Cisne Branco, hino oficial da corporação. Um pequeno lapso de patriotismo.