Os alunos do primeiro ano do Ensino Médio da Escola Baniwa Eeno Hiepole esperavam o professor de física em uma manhã de 2023. Era dia de aprender cinemática. Juvêncio Cardoso, de 37 anos, entrou em sala com um arco e flecha. Manuseando o instrumento e mostrando como usar, Cardoso falava de velocidade, tempo e distância – e explicava na prática os conceitos que escreveria em sequência no quadro. Aulas assim são comuns na principal escola da Aldeia Canadá, na zona rural de São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas.
A Eeno Hiepole (na língua Baniwa o “h” se pronuncia como “r”) fica no centro da aldeia. São Gabriel da Cachoeira tem a segunda maior população indígena do Brasil, com 48,3 mil pessoas, segundo os dados do Censo divulgados nesta segunda-feira (7), e a terceira maior proporção de habitantes indígenas (93,17% da população do município). São 23 etnias diferentes, 750 comunidades e 18 línguas faladas, sendo quatro co-oficiais (baniwa, tukano, nheengatu e yanomami). Em números absolutos de população indígena, São Gabriel perde apenas para Manaus: a capital do Amazonas tem 71.713 autoidentificados indígenas, 12,45% da população da cidade.
Pelos dados do Censo, o Brasil tem 1.693.535 indígenas, 0,83% da população do país. No último Censo, em 2010, haviam sido contabilizados 896.917 indígenas – um aumento de 88,8% em doze anos. A maioria da população indígena não habita territórios indígenas, como mostra o IBGE: 63,3% estão fora das terras delimitadas, o que representa mais de 1 milhão das pessoas que se consideram indígenas. Em 2010, 58% dos indígenas habitavam o território demarcado; hoje são 36,7%. O crescimento da população indígena fora das aldeias foi expressivo. Em 2010, eram 370 mil pessoas; no Censo de 2022, o número saltou para 1 milhão.
Assim, na análise do IBGE, mais do que a um crescimento demográfico da população indígena, esse aumento se deve a uma alteração metodológica na coleta de dados, com a inclusão da questão: “você se considera indígena?” como uma pergunta de cobertura, feita fora das aldeias. A população indígena é investigada de forma sistemática pelo IBGE desde 1991, mas, ao longo desses anos, e de quatro Censos, o instituto foi acrescentando novidades na coleta para ter mais precisão e facilitar a localização daqueles que se consideram indígenas, mesmo fora das terras demarcadas.
O Censo de 2010, por exemplo, indagou, pela primeira vez, sobre as categorias etnia, povo e língua falada. Neste Censo, a novidade do IBGE foi destacar determinadas áreas que tivessem um potencial de ocupação indigena, as chamadas Áreas de Interesse Operacional (AIOs). O instituto fez um mapeamento prévio de áreas onde poderia haver ocupação indígena fora dos territórios delimitados, como por exemplo nos arredores de aldeias. Dentro dessas áreas, para todos os habitantes, após a pergunta de cor ou raça, abria-se a pergunta suplementar: “considera-se indigena?”, a fim de saber se a pessoa se identifica indígena mesmo que, como cor ou raça, ela não tenha marcado a opção. No estado do Amazonas, mais de 70% dos setores censitários tinham uma Área de Interesse Operacional Indígena, ou seja, muitos indígenas residindo fora das aldeias, como confirmam os números.
O Censo, que seria realizado em 2020, teve que ser adiado por dois anos devido à pandemia. Esse atraso trouxe alguns benefícios para o levantamento da população indígena, de acordo com o coordenador técnico do Censo 2022 no Amazonas, Tiago Almudi. O tempo extra permitiu uma ampliação na rede de parceiros para realização da coleta. “Para cada aldeia e agrupamento indígena, os coordenadores de área e subárea tiveram que levantar informações e subir no sistema. Para uma precisão maior nesse processo, realizamos contatos com parceiros sobretudo dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (Dseis), das Coordenações Regionais da Funai e de outras associações indígenas”, explica Almudi.
Alvo da cobiça do garimpo, os yanomami tiveram um crescimento de 1,4 mil indígenas em suas terras, delimitadas pelos estados do Amazonas e de Roraima. Entre os territórios indígenas, o Yanomami tem a maior população (27.152) e o maior percentual de pessoas indígenas vivendo em terra indígena (99,82%). Em relação ao último Censo, o número de terras indígenas identificadas aumentou 13,5%. O IBGE identificou 573 terras indígenas declaradas, homologadas ou regularizadas até a data de referência do estudo.
Na Aldeia Canadá, onde o professor de física empunhou o arco e flecha, vivem cerca de 35 famílias – em torno de duzentas pessoas. O único meio de acesso é pelo rio. Não há estradas. De lá até o Centro do município de São Gabriel são três dias de viagem de lancha, atravessando o Rio Negro e seus afluentes – num traçado em linha reta entre a cidade e a aldeia, a distância fica em torno de 260 km. E a rotina de um professor como Juvêncio Cardoso vai muito além do que ele vive em sala, porque, numa comunidade indígena, aprender e ensinar não se restringem às aulas. A escola é a própria aldeia. Na Canadá, as aulas seguem a Matriz Curricular Intercultural, que norteia o currículo das escolas indígenas do Amazonas. “Trabalhamos na perspectiva de metodologias ativas, construindo saberes mais significativos para o território”, conta Cardoso, indígena da etnia Baniwa e professor do ensino médio na escola Eeno Hiepole desde 2013.
Um aluno do ensino fundamental da Eeno Hiepole começa o dia letivo antes das 6 horas. Acorda com os pais, vai para o rio mais próximo tomar banho e volta para o café da manhã, que normalmente é coletivo com outras famílias da aldeia e acontece em torno das 7h30 da manhã em um espaço de convivência da aldeia. Come mingau de farinha com água, às vezes acompanhado da quinhapira, peixe típico da região. O café coletivo é um momento voltado sobretudo para os alunos do Infantil e Fundamental, mas muitos jovens já no Ensino Médio também participam do ritual. Às oito em ponto toca o sino da escola e as aulas começam.
Cardoso estudou na primeira escola indígena reconhecida como uma instituição de referência pelo MEC, a Pamáali, que recebeu a deferência em 2016. Na sua época de estudante, não havia Ensino Médio na aldeia e ele precisou ir para Manaus completar o Ensino Básico. Voltou para São Gabriel da Cachoeira e se graduou em física. A falta de Ensino Médio provocava um grande movimento migratório de saída das aldeias em direção à cidade. “As famílias iam para cidade buscar oportunidade para seus filhos estudarem. Com o passar do tempo, fomos lutando para implementar o Ensino Médio aqui”, explica Cardoso. O Ensino Médio chegou à aldeia em 2009, e o fluxo migratório mudou, diz o agora professor. “Passou a ser dentro do próprio território, entre as aldeias, e não mais em direção às cidades.” Uma das principais metas da escola, segundo Cardoso, é se tornar a segunda escola baniwa de referência na educação básica. Para isso, firmou parceria com a Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, em um acordo de cooperação técnica com o núcleo Ceunir (Centro Universitário de Investigações em Inovação, Reforma e Mudança Educacional).
A Escola Eeno Hiepole foi fundada em 1984, com o nome Escola Rural Tiradentes. Quatro anos depois, a Prefeitura de São Gabriel da Cachoeira assume o espaço e transforma a instituição em Escola Municipal. Em 1997, a cidade realiza a primeira conferência municipal de educação escolar indígena, que muda os nomes de muitas escolas. As que eram “municipais rurais” passaram a se chamar “municipais indígenas”. No caso da principal escola da Aldeia Canadá, ainda tinha uma coisa que incomodava professores e alunos. “A gente não tinha muito a ver com esse tal de Tiradentes”, conta Cardoso. “Nas assembleias, quando discutimos o conceito de educação integral, a gente aproveitou para abordar esse aspecto”, lembra. Desde 2014, a escola passou a ser chamada de Eeno Hiepole pela comunidade local, mas só no ano passado um decreto municipal reconheceu a mudança de nome.
Na língua baniwa, Eeno Hiepole significa umbigo do céu ou umbigo do mundo. Faz referência a uma lenda do surgimento dos povos do tronco linguístico Aruak. De acordo com a narrativa, o povo vem de uma cachoeira, no Rio Ayari, afluente do Rio Içana. Nessa cachoeira existia uma fenda semelhante à vulva da mulher, e a partir dali o povo nascia. “Pensar o nome dessa escola associado a narrativas de origem é justamente trazer esse valor cultural para dar sentido a esse novo momento de nascimento que valoriza os saberes locais.” Essa nova forma de ensinar e aprender também passa pelo reconhecimento da própria identidade – e os números do Censo, com o aumento das pessoas que se autoidentificam como indígenas mesmo sem viver em aldeias, também reflete isso.
Na região de São Gabriel da Cachoeira, há 209 escolas municipais e 16 escolas estaduais. Dentro da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro, a Foirn, há um departamento pedagógico responsável por três municípios, incluindo São Gabriel. Melvino Fontes é Coordenador do Departamento de Educação Escolar Indigena e Patrimônio Cultural (Depac). Em conversa com a piauí, Fontes falou sobre os resultados de uma pesquisa de campo, que funciona como um acompanhamento da implementação pedagógica que eles realizaram nas escolas dentro de comunidades do interior. Nessa última, a visita havia sido na comunidade Assunção do Içana, também um distrito do povo Baniwa. “O resultado foi impressionante. As escolas indígenas estão trabalhando uma forma inovadora na questão da educação. Planejamento impecável. Muita qualidade”, destaca o coordenador.
Em junho do ano passado, Juvêncio Cardoso foi convidado a participar do Fórum Global Escolas 2030, na Tanzânia, na África. A Eeno Hiepole é a única escola indígena a participar do projeto, que visa estimular novas metodologias para a educação integral. A iniciativa envolve dez países. No Brasil, o programa vai acompanhar mais de cem escolas e organizações educativas. Antes da viagem, a organização do evento pediu uma foto da escola. “Eu enviei uma foto da aldeia”, conta. “Essa é a foto da escola?”, perguntaram a Cardoso. “Respondi que sim. Quando você chega na aldeia você está chegando na escola.”