No último domingo, dia 30 de maio, dois dos três mais tradicionais jornais do país, O Estado de S. Paulo e O Globo, não publicaram fotos em suas primeiras páginas da notícia que gritara no dia anterior: as maiores manifestações populares anti-Bolsonaro desde o início do seu governo, ocorridas em todas as 26 capitais brasileiras e no Distrito Federal, mereceram apenas uma discreta menção em forma de texto. Enquanto o jornal carioca deu destaque na primeira página para o reaquecimento do PIB do país, o paulista foi mais anódino na manchete: “Cidades turísticas se reinventam para atrair o home office.”
Não foi uma decisão isolada. Segundo levantamento da piauí em 25 jornais de maior circulação sediados em capitais que têm edições impressas aos domingos, apenas dez publicaram foto e chamada das manifestações na primeira página; outros seis optaram por chamadas discretas e nove não mencionaram a notícia em suas capas. Para efeito de comparação, em outra manifestação popular que alcançou todas as capitais brasileiras, os protestos contra a então presidente petista Dilma Rousseff em 15 de março de 2015, um domingo, todos os 23 jornais analisados pela reportagem publicaram fotos em suas primeiras páginas do dia seguinte, segunda-feira (a amostragem para essa data é diferente daquela do último dia 30 de maio por duas razões: há jornais que não circulam às segundas e algumas publicações deixaram de existir de 2015 para cá).
Nos protestos do último sábado, a Folha de S.Paulo esteve entre os dez veículos que, na edição impressa, publicaram a notícia das manifestações como manchete, acompanhada de uma foto aérea da Avenida Paulista apinhada de gente, com as tradicionais bandeiras vermelhas dos partidos de esquerda, a maior parte deles defensores da candidatura do ex-presidente Lula em 2022. De acordo com o professor do curso de jornalismo da Universidade Federal Fluminense (UFF) Pedro Aguiar, que há dezesseis anos estuda as primeiras páginas dos jornais brasileiros, esse detalhe político-cromático pesou na decisão d’O Globo e do Estadão de esconder a imagem da manifestação de seus leitores no papel, predominantemente idosos e conservadores. “Claramente não foi um erro de avaliação da notícia, porque ela era evidente. Trata-se de uma escolha deliberadamente política”, diz.
Dias antes, na edição de segunda-feira, 24 de maio, O Globo publicara foto do passeio de moto de Bolsonaro pelas ruas do Rio de Janeiro, com o amarelo em destaque na imagem e a chamada: “‘Motociata’ pelo Rio de olho em 2022.” Já a Folha optou por uma foto com ângulo fechado em Bolsonaro e seu ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, ambos sem máscara na manifestação, ignorando a considerável participação popular no “motoraço”.
Nos anos 1980 e 1990, o marketing da extinta revista Manchete apostava em um trocadilho simples e direto: “Aconteceu, virou Manchete.” A frase pressupõe uma objetividade cartesiana que o jornalismo nem sempre consegue entregar. A escolha do que vai para a primeira página de um jornal, tida em tempos pré-redes sociais como principal vitrine da publicação, envolve decisões que vão além desse princípio aparentemente óbvio. Até hoje, a definição sobre o que sai na primeira página de um grande jornal é um processo que envolve o comando da redação e, em muitos dias, os donos do veículo.
Na era pré-redes sociais, incluir ou excluir uma notícia da primeira página do jornal contribuía decisivamente para definir o que seria (ou não) debatido pela opinião pública. A crise da plataforma impressa, a grande circulação de informação na internet e, principalmente, a popularização das redes sociais (hoje os maiores canais de entrada do público nas notícias online) modificaram a forma como as primeiras páginas são percebidas pela audiência. Levantamento da consultoria Arquimedes para a piauí analisou o engajamento em redes sociais de todas as reportagens publicadas pelos jornais O Globo e Estadão entre os dias 24 e 31 de maio. Enquanto a reportagem do site do jornal carioca sobre os protestos anti-Bolsonaro teve 9,8 mil compartilhamentos no Facebook, a manchete de domingo sobre os “sinais de reação do PIB” registrou pífios 396 compartilhamentos. No caso do Estadão, a disparidade é ainda maior: a principal reportagem sobre a manifestação teve 11 mil compartilhamentos no Facebook, e a principal chamada de primeira página, sobre as “cidades-escritório”, foi compartilhada apenas 178 vezes. A título de comparação: a principal reportagem sobre os protestos do portal G1, que pertence ao grupo Globo, teve 120 mil compartilhamentos no Facebook, ainda de acordo com a Arquimedes.
No livro A História da Primeira Página: do grito ao silêncio no jornalismo em rede, Adriana Barsotti, jornalista e professora do programa de pós-graduação em mídia e cotidiano da UFF, analisou 939 posts nas páginas de Folha, Globo e Estadão no Facebook e 231 chamadas publicadas pelos três jornalões em suas primeiras páginas entre os dias 9 e 14 de janeiro de 2017. Houve uma coincidência de apenas 40,7% entre os conteúdos publicados pelos veículos na rede social e nas primeiras páginas impressas. “Há um descasamento evidente entre a versão impressa e aquela destacada na rede social”, diz a pesquisadora, ex-editora de O Globo.
A perda de importância das primeiras páginas dos jornais não impediu que as escolhas da notícia nas versões impressas de O Globo e Estadão fossem duramente atacadas nas mídias sociais, principalmente no Twitter. “Taí uma coisa q o brasileiro tem se perguntado todo dia. Será que as cidades turísticas estão se reinventando pra atrair o home office? Obrigado por responder ‘Estadão’”, ironizou o ator e humorista Gregorio Duvivier, que também é colunista da Folha. No domingo, 30, circulou um meme com a primeira página d’O Globo que trazia apenas notícias leves – “Domingo de sol é convite a um passeio em família” era a manchete. No dia seguinte, 31, na Folha, uma charge de João Montanaro colocava quatro homens diante de jornais em papel no metrô, cada um com uma manchete distinta: “Algo aconteceu ontem”; “Algo talvez tenha acontecido ontem”; “Nada aconteceu ontem”; “Homens lendo jornal são vistos no metrô”.
Jornalistas do próprio grupo Globo, como Rodrigo Carvalho, correspondente em Londres, criticaram a cobertura (ainda que de forma genérica): “Realmente vergonhosa a cobertura de boa parte da grande mídia nos protestos contra Bolsonaro. Era fazer o básico: dar destaque e preparar reportagens ouvindo o povo – gente que perdeu parente, tá vivendo um trauma e foi pra rua gritar contra um governo que joga contra a vida.”
“Essas críticas e ironias com os dois jornalões demonstram que, embora não tenham a importância que já tiveram um dia, as primeiras páginas ainda dão identidade e memória a esses veículos de imprensa”, afirma Barsotti. Procuradas, as direções dos jornais O Globo e Estadão não quiseram se manifestar.
A hierarquização da notícia, explícita no jornalismo impresso ou mesmo televisivo, perde relevância nas redes sociais – que tendem a equalizar conteúdos, sem hierarquia visual ou temporal entre elas. “Historicamente, a materialidade do suporte está diretamente relacionada à mensagem. Na transição do papel jornal para os meios digitais, há uma desmaterialização da notícia, que se torna mais efêmera”, diz Barsotti.
Tanto Barsotti quanto Aguiar são categóricos: o jornal impresso é um produto em extinção. Se os números de circulação dos atuais veículos em papel nem sempre são públicos, o consumo de papel jornal no Brasil, compilado pelo professor da UFF no anuário estatístico do IBGE, dá uma medida desse declínio: entre 2010 e 2019, caiu 76,6%. “Se não acabar de vez, vai se tornar um produto de nicho, como o LP”, compara Aguiar. Se as primeiras páginas ainda servem pelo menos como identidade desses veículos, as do último domingo têm lugar reservado na parede da memória não pelo que contaram, mas pelo que esconderam.