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    Ilustração de Carvall

questões epidemiológicas

Na estrada da agonia

Sem UTIs suficientes contra Covid, cidades do interior sofrem para transferir pacientes para capitais - que também estão lotadas

Lianne Ceará | 05 mar 2021_17h41
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Os 293 km da BR-116 que ligam Jaguaribe a Fortaleza a médica Júlia Diógenes já conhece bem: ela é generalista no Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência) e na UPA (Unidade de Pronto Atendimento) da cidade do interior. Num mesmo plantão de 24 horas, chegou a levar dois pacientes para a capital – contando os trajetos de ida e volta, são 16 horas na estrada. A transferência só acontece depois que a Central de Regulação de Pacientes assegura a vaga. No atribulado percurso, a médica aprendeu a hora de segurar um pouco mais firme os equipamentos para que o paciente não desestabilize ao passar pelos buracos, a hora de pedir que a ambulância pare no meio da estrada para monitorar os sinais vitais do doente, e a hora de rezar para que o paciente chegue vivo à UTI. “Para uma cidade do interior, a gente ainda tem bastante recurso em Jaguaribe. Ventilador mecânico, drogas vasoativas, bombas de infusão, bloqueadores neuromusculares… tudo. Mas não temos UTIs. A demanda tem aumentado bastante nos últimos dias”, reflete.

O Ceará vive um quadro que se repete em vários estados brasileiros: a interiorização da Covid, agravada pelo estado de superlotação do sistema hospitalar em todo o país. Com o avanço da pandemia, muitas cidades do interior beiram o colapso na saúde. O problema é que nas capitais também ficou cada vez mais difícil conseguir vagas: muitas estão com mais de 90% de suas UTIs ocupadas. No vizinho Rio Grande do Norte, por exemplo, a capital Natal e a região metropolitana têm 92% de ocupação nas UTIs. A segunda maior cidade potiguar, Mossoró, está com suas UTIs públicas completamente preenchidas. No Ceará, segundo o IntegraSUS, base de dados do governo estadual, cerca de 91% das vagas de UTI do estado estão preenchidas; nesta sexta (5), havia 497 pacientes em estado de regulação, ou seja, aguardando leitos de UTIs ou enfermaria. A taxa de letalidade por Covid no Ceará é um pouco acima da do país – respectivamente, 2,6% e 2,4%. O estado enfrenta a segunda onda da doença e, até o momento, 25 cidades já decretaram lockdown. Na última quarta-feira (3), o governador Camilo Santana (PT) estendeu a medida também para a capital a partir desta sexta (5). No início deste ano o Ceará tinha 327 leitos de UTI Covid na rede estadual; hoje já são 933, mas a situação é preocupante. “A quantidade de leitos que estamos abrindo não tem sido suficiente diante da velocidade de propagação do vírus”, reconheceu Santana em uma live na última quarta-feira.

Em Jaguaribe, município de 35 mil habitantes onde a médica Júlia Diógenes atua como generalista, já foram 2,5 mil casos e 44 mortos. Há duas semanas o número de pacientes com o vírus ativo não sai dos três dígitos, e atualmente são 125. O maior desafio em ser médica numa cidade do interior durante a pandemia, segundo ela, é justamente a incerteza da vaga para o paciente em uma UTI. “Em todo plantão é esse receio de precisarmos transferir algum paciente e não conseguirmos”, conta. No último mês, ela viveu de perto a dificuldade de uma amiga próxima para conseguir vaga. “A mãe dela me disse que ela estava com mal-estar, um pouco cansada, com febre, mas não queria ir à UPA justamente com medo de contrair o vírus. O que ela não sabia era que ela já estava com ele”, relata. Quando sua amiga chegou à UPA, o estado já era grave. Ela foi intubada ainda na cidade de Jaguaribe e aguardou três dias por uma vaga na UTI em Limoeiro do Norte, município referência em saúde para outras da região do Vale do Jaguaribe. Dois dias depois, a amiga precisou ser novamente transferida. “Ela teve que fazer hemodiálise pelas complicações, na UTI de Limoeiro não faz. Foi solicitada a transferência dela para Fortaleza, pro Hospital de Messejana. A vaga dela saiu no mesmo dia, mas a gente já tinha dificuldades, mesmo no início de fevereiro, quando não estávamos nesse pico tão alto”, lembra.

Também pelas estradas do Ceará, sem máscara, num carro com vidros e portas abertas acompanhado de inúmeros apoiadores também sem máscara, abraçando e tirando fotos com eleitores, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) chegou no último dia 26 ao município cearense de Tianguá, a 310 km de Fortaleza. Naquele mesmo dia, 170 dos 184 municípios do estado estavam com alerta alto ou altíssimo para a contaminação. Tianguá aparecia pintado de vermelho no mapa da Secretaria de Saúde do Ceará, ilustrando o risco altíssimo. Na praça de Tianguá, as grades que impediam a aglomeração da multidão foram retiradas, e o público se juntou em frente ao palco para ouvir Bolsonaro. Perto dali, o Hospital e Maternidade Madalena Nunes, único da cidade, tinha 80% dos leitos de UTIs e 66% da enfermaria ocupados, segundo a Vigilância Epidemiológica do município. O presidente foi ao Ceará para assinar ordens de serviço e visitar obras da BR-222 e do Anel Viário de Fortaleza, provocando aglomerações nas três cidades por que passou – Caucaia, Fortaleza e Tianguá. “O povo não consegue mais ficar dentro de casa, o povo quer trabalhar. Esses que fecham tudo e destroem empregos estão na contramão daquilo que seu povo quer”, discursou Bolsonaro em Tianguá.

Naquele mesmo dia, o governo do Ceará abria vinte novos leitos Covid no Hospital Leonardo da Vinci, em Fortaleza, uma das principais unidades de referência para a doença. Um dia antes, a média de ocupação nos leitos de UTI no estado chegou a 95,5%, e Santana anunciou que não iria ao encontro com o presidente. “Tenho todo respeito à autoridade, mas não posso compactuar com aquilo que considero um grande equívoco”, divulgou em suas redes sociais. Na quinta-feira (4), o Ministério Público Federal do Ceará (MPF-CE) solicitou à Procuradoria Geral da União (PGU) que Bolsonaro seja investigado por crime contra a saúde pública durante sua visita. Dois dias antes da chegada do presidente, em tom de alerta, o secretário da Saúde do Ceará, Carlos Roberto Martins, afirmou que a situação das UTIs em Fortaleza, que naquele dia estava com 90% de ocupação, tornava impossível a transferência de pacientes do interior.

Na mesma sexta-feira da visita de Bolsonaro, a médica Júlia Diógenes concluía mais um plantão na UPA de Jaguaribe e acompanhava aflita a evolução dos casos de pacientes que levara para UTIs da capital. Um era o de sua amiga, que sofreu complicações e voltou a ser intubada. O outro era de uma paciente que a médica havia levado para o Hospital Leonardo da Vinci duas semanas antes em estado gravíssimo, após esperar alguns dias pelo leito de UTI – e que morreu no hospital no último dia de fevereiro. “Eu trabalhei demais. Esse mês de fevereiro foi curto, mas ao mesmo tempo foi muito longo. Fiquei muito tempo na estrada transportando gente para as UTIs.”

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