Em 2014, quando a Rússia invadiu a península ucraniana da Crimeia, líderes ocidentais impuseram aos invasores sanções resultantes de um compromisso desajeitado para não deixar a anexação inteiramente impune – mas cuidadoso o bastante para não afetar interesses econômicos de nações europeias com ampla relação comercial com o país comandado por Vladimir Putin. Isso fez Putin pensar que, quando atacasse o restante da Ucrânia, potências como a Alemanha, dependentes do gás russo para aquecer as casas da população, certamente se oporiam a medidas econômicas mais incisivas. Mesmo assim, antes de anunciar a invasão da Ucrânia em 24 de fevereiro, Putin buscou aumentar de forma sistemática a resiliência da economia russa contra uma eventual nova rodada de sanções econômicas do Ocidente. Ampliou as reservas internacionais do Banco Central russo e selou uma parceria econômica e estratégica com a China.
Poucos dias depois da invasão, ficou evidente que Putin, no comando da Rússia desde 1999, cometera um erro de cálculo. O avanço sobre a Ucrânia gerou um terremoto político na Europa. Em numerosas cidades no continente, centenas de milhares de pessoas foram às ruas para protestar contra a ação militar russa no território ucraniano. Em meio a uma mudança brusca no humor político da Europa, a população alemã de repente viu-se apoiando medidas duríssimas contra a Rússia, mesmo ciente de que elas teriam impacto econômico negativo e trariam desvantagens para empresas alemãs. A maioria da população alemã agora teme que a Rússia possa atacar outros países na Europa e até defende o fim das importações de gás russo, com a prorrogação do uso de energia nuclear e a manutenção das usinas remanescentes na Alemanha (hoje em processo de fechamento). A invasão russa na Ucrânia ativou um mecanismo que muitos europeus haviam esquecido: quando questões de segurança nacional entram em jogo, interesses econômicos ficam em segundo plano.
A elite política ocidental reagiu prontamente. Em vez de mais um pacote de sanções econômicas semelhante ao imposto à Rússia em 2014, os europeus decidiram punir oligarcas russos e até mesmo o próprio presidente e seu chanceler, que não podem mais acessar seus bens na Europa e na América do Norte nem viajar aos Estados Unidos. Mais importante do que isso, a União Europeia fez opções até recentemente consideradas extremas e pouco prováveis. Bloqueou as reservas do Banco Central russo em moedas como dólar, euro e libra esterlina (quantia estimada em mais da metade do total) e excluiu uma série de bancos russos do sistema interbancário Swift. Com essas medidas – descritas pelo jornal britânico Financial Times como “armas financeiras de destruição em massa”—, o Ocidente adotou uma estratégia inimaginável até o mês passado: punir e isolar, por motivos geopolíticos, uma economia de grande porte, bem integrada ao sistema econômico internacional, mesmo sob o risco de um calote por parte da Rússia. Tudo isso produz um choque de desglobalização econômica que deverá ter repercussões globais.
A reação inesperada do Ocidente mostra que a lógica do sistema internacional dos últimos trinta anos – marcados pela ausência de rivalidade séria entre grandes potências – deixou de valer. Quando optou por isolar a Rússia economicamente, o Ocidente priorizou considerações de segurança em detrimento de interesses do mercado, que torcia por sanções brandas. Para compreender as profundas consequências disso, é preciso lembrar que o mundo ao longo dos últimos trinta anos – cada vez mais globalizado, livre de tensões geopolíticas sérias capazes de influenciar o fluxo de capitais e o intercâmbio de ideias – tornou-se possível graças a uma simbiose econômica rara entre as principais economias, nomeadamente Estados Unidos, China, União Europeia, Rússia, além de emergentes como Brasil e Índia. Isso não quer dizer que os últimos trinta anos foram sempre pacíficos – pelo contrário. A invasão americana no Iraque, bem como numerosos conflitos no Oriente Médio e na África, produziram sofrimento humano, crises migratórias e, em vários casos, tiveram repercussão na economia global – mas não frearam a tendência de uma globalização cada vez mais profunda, nem levaram ao isolamento de uma economia tão integrada globalmente ou tão grande como a russa.
Enquanto as relações econômicas e políticas entre os Estados Unidos e a então União Soviética eram extremamente limitadas, a entrada da China e da Rússia na Organização Mundial do Comércio (OMC) em 2001 e 2012, respectivamente, transformou os laços entre os principais atores econômicos – sobretudo Estados Unidos e China – na espinha dorsal do sistema internacional, envolvendo fluxos comerciais e de investimento inéditos, além de vasta cooperação nas áreas de educação e ciência.
Normalizamos essa realidade – mas a história mostra que as últimas décadas foram uma grande exceção.
O comportamento habitual de uma potência dominante é tentar conter, enfraquecer economicamente ou simplesmente destruir qualquer outro ator com potencial para desafiá-la no futuro. Assim agiram os Estados Unidos nos últimos cem anos. Foi essa mentalidade que guiou as ações do país tanto na derrota da Alemanha Imperial, durante a Primeira Guerra Mundial, quanto na derrota da Alemanha nazista e do Japão na Segunda Guerra. Em todos esses casos, Washington adotou a atitude padrão das potências hegemônicas, minando seus concorrentes antes que eles pudessem ameaçá-la.
No entanto, a resposta americana à ascensão chinesa nos anos 1990 foi o exato oposto. Em vez de tentar minar o desenvolvimento do país, os Estados Unidos apostaram na cooperação e facilitaram o avanço chinês. O otimismo com o fim da Guerra Fria formou um certo consenso em Washington de que a abertura comercial fatalmente levaria a uma abertura política da China (e da Rússia) e que, mais dia, menos dia, Pequim e Moscou seriam alinhados ao pensamento norte-americano – ou pelo menos seriam parceiros econômicos importantes e não fariam nada que pudesse desestabilizar o sistema internacional.
Embora já tivesse sofrido abalos, esse consenso ruiu de vez em 2012, quando o governo norte-americano entendeu que a grande aposta da década de 1990 havia fracassado, e os céticos se impuseram no comando durante a gestão Obama. Longe de ser uma anomalia, a postura anti-China de Trump e o início da “guerra comercial” entre Washington e Pequim foram manifestações de um novo consenso que já vinha sendo formado na gestão anterior e se manteve no governo Biden. Em 2014, algo semelhante ocorreu em relação a Moscou: a invasão russa da Crimeia enfraqueceu aqueles que haviam defendido, desde o fim da Guerra Fria, a política de engajamento econômico com a Rússia.
Estava finalmente perdendo apoio político a ideia de Wandel durch Handel, literalmente “transformação [isto é, liberalização política] por meio da integração comercial”, defendida frequentemente por pensadores alemães liberais favoráveis a preservar os laços comerciais com a Rússia e a China a despeito da repressão política crescente em ambos os países. Sustentando um argumento considerado inviável e radical até pouco tempo atrás, Ivo Daalder, ex-embaixador dos Estados Unidos junto à OTAN, defendeu recentemente a volta de uma política de contenção em relação à Rússia, inclusive a ruptura comercial completa. Para alguns analistas, cresce o risco de uma invasão chinesa de Taiwan, considerada uma ilha rebelde por Pequim, cenário que poderia encerrar de vez o grande experimento da globalização econômica, que permitia a empresas multinacionais operar sem se preocuparem muito com a geopolítica.
Ao longo dos últimos anos, Estados Unidos e China vêm se estranhando de forma cada vez mais séria e frequente. Um número crescente de empresas chinesas integra a Entity List, a relação de corporações consideradas perigosas para a segurança nacional e barradas no mercado americano. Na mesma toada, empresas de tecnologia que antes se esforçavam para operar no mercado chinês têm encerrado suas operações no país ou nem sequer lhes dão início. É o caso de gigantes como Google, Meta (antigo Facebook) e LinkedIn. No âmbito universitário, a cooperação é cada vez mais rarefeita. A saída da Didi, gigante da área de transporte privado e dona da 99 no Brasil, da bolsa de Nova York é sinal de que a era das ofertas públicas iniciais (IPO, na sigla em inglês) de empresas chinesas nos Estados Unidos acabou. O Peace Corps — famoso programa que levava jovens americanos a realizarem trabalho voluntário no exterior — deixou de operar na China em 2020. Se em 2017 os Estados Unidos abrigavam mais de cem Institutos Confúcio — centros de estudo do governo chinês que ensinam mandarim —, hoje restam menos de 20, vários deles em vias de fecharem as portas.
Com a invasão russa da Ucrânia, se desfez o esforço de anos de aproximação, como admitiu recentemente o político social-democrata alemão Matthias Platzeck, um dos maiores defensores da amizade entre o Ocidente e a Rússia: “Estamos de volta à Guerra Fria”, disse, desapontado. Vários veículos da imprensa ocidental, como BBC e CNN, deixaram de operar na Rússia. Visa, Mastercard e PayPal decidiram suspender suas operações no país, deixando-o cada vez mais isolado financeiramente. O governo russo, por sua vez, bloqueou várias plataformas de redes sociais ocidentais, entre elas Facebook e Twitter. A União Europeia também bloqueou duas grandes redes de comunicação estatais russas, RT e Sputnik. A empresa taiwanesa TSMC, maior produtora de semicondutores do mundo, decidiu proibir a venda de seus produtos à Rússia, decisão que terá efeito devastador para as tentativas da economia russa de se diversificar. É difícil imaginar que essa nova Cortina de Ferro, digital e tecnológica, seja apenas temporária – é fácil impor sanções e proibições, mas bem mais difícil revertê-las. Mesmo que possa haver cooperação e comércio, a dinâmica principal entre os polos de poder será marcada por considerações geopolíticas e contenção, como demonstrou a recente resposta do Ocidente à invasão russa.
A preocupação com o fim de uma era não é nova. Em 24 de setembro de 2019, em seu relatório anual anterior à abertura do 74º Debate Geral da Assembleia Geral das Nações Unidas, o secretário-geral da ONU, António Guterres, escreveu que temia “a possibilidade de uma grande fratura: o mundo se dividindo em dois, com as duas maiores economias do mundo criando dois mundos separados e concorrentes, cada um com sua própria moeda dominante, regras comerciais e financeiras, suas próprias capacidades de internet e inteligência artificial e suas próprias estratégias geopolíticas e militares de soma zero”. É preciso destacar que a mesma cooperação que viabilizou a bilhões de pessoas ter acesso a produtos sofisticados, como o aparelho celular, também garantiu uma reação coordenada a desafios como a crise financeira de 2008. A diferença entre o que aconteceu lá atrás e o fiasco cooperativo da pandemia do novo coronavírus meros dez anos depois é gritante e vem gerando um alto custo em vidas. Entre numerosas iniciativas diplomáticas, é mesmo plausível que a invasão russa da Ucrânia represente o fim do G20, que reúne os líderes das principais potências do mundo para coordenar políticas globais.
Seria ingênuo pensar que o declínio das relações entre as duas maiores potências do mundo seja um processo reversível. Governos e empresas de todo o planeta precisam se preparar para um cenário que tende a piorar bastante e que incluirá escolhas difíceis o tempo inteiro. A dupla pressão que o governo Bolsonaro sofreu de Washington e de Pequim em relação à presença da Huawei no Brasil é apenas o começo, mas já vale como aperitivo do que está por vir. Da mesma forma, a invasão russa à Ucrânia mostra que o Brasil terá cada vez mais dificuldade em manter laços cordiais com todos os grandes polos de poder.
O resultado desse divórcio será uma economia mais “geopolitizada” e “localizada”, cenário no qual as multinacionais terão de estar constantemente atentas a riscos como guerras comerciais e tecnológicas. Como Mohamed A. El-Erian, economista da seguradora Allianz, argumenta, “o romance […] do mundo corporativo com cadeias globais de suprimentos (…) dará lugar a uma abordagem mais localizada” para minimizar a exposição ao risco geopolítico – como guerras comerciais e conflitos militares. Do lado dos governos, é provável que a disposição ao livre mercado caia bastante e que bloqueios de empresas e investimentos que afetem seus interesses nacionais se tornem corriqueiros. O resultado será um sistema econômico mundial menos eficiente (e portanto, com preços mais altos), menos inovador e com maior risco de conflitos políticos e militares. Parece ser o retorno da geopolítica e das tensões permanentes entre grandes potências – e o princípio do fim da globalização como a conhecíamos.