O jornalista Ivan Golunov estava sendo interrogado pela polícia russa quando recebeu, no celular, o convite para vir ao Brasil participar da sexta edição do Festival Piauí de Jornalismo. Mostrou a mensagem aos investigadores, salientando que a sua prisão já virara notícia mundo afora. Repórter investigativo especializado em cobrir casos de corrupção, Golunov foi preso em junho deste ano, acusado – com base em provas forjadas – de tráfico de drogas em larga escala. Na época em que foi detido, ele apurava um esquema de pagamento de propina a agentes que administravam ilegalmente os cemitérios públicos de Moscou.
A acusação foi logo considerada uma tentativa de silenciar Golunov, que também já fizera reportagens apontando o enriquecimento ilícito de figuras do governo. Em 10 de junho, poucos dias depois de ele ter sido preso, três dos principais jornais russos – Vedemosti, RBK e Kommersant – publicaram capas quase idênticas com um slogan que a partir daquele momento se tornaria viral: “Eu sou/Nós somos Ivan Golunov”. A campanha ganhou corpo e fez com que a polícia voltasse atrás na denúncia. No dia seguinte à publicação das manchetes, Golunov foi solto e hoje está livre de qualquer acusação.
“Os jornalistas entenderam que isso pode acontecer com eles. Você pode ser acusado e preso sem provas”, afirmou o repórter russo neste domingo (6), em São Paulo, no Festival Piauí de Jornalismo, realizado no auditório da Faap em Higienópolis. Golunov conversou com a repórter da piauí Thais Bilenky e com o colunista da Folha de São Paulo Jaime Spitzcovsky. “Estou livre”, ressaltou, “mas hoje não há acusação contra as pessoas que foram envolvidas na minha prisão. Não aconteceu nada.”
“Meia hora antes da minha prisão, entreguei um artigo pro meu editor sobre um esquema de corrupção envolvendo agentes do governo. Fui preso acusado de posse de drogas. Quem trabalha com isso é forçado a deixar o serviço por causa da perseguição do governo.” pic.twitter.com/ThnuuoStrh
— revista piauí (@revistapiaui) October 6, 2019
A partir de sua experiência, Golunov falou da rotina de censura e das restrições há muito assimiladas pela imprensa na Rússia. Segundo ele, há assuntos deliberadamente proibidos pelo governo: não se pode fazer críticas ao presidente Vladimir Putin, não se deve falar sobre a família dele, e não é permitido publicar reportagens negativas sobre a Igreja Católica Ortodoxa e seus líderes. Ele contou a história de um veículo que, após publicar uma reportagem sobre uma das filhas do presidente, sofreu enorme pressão e mudou de controlador, passando para as mãos de um apoiador do governo.
“Não existe a palavra democracia, nem mesmo alternativas”, disse Golunov, ao fazer um saldo dos vinte anos de governo Putin. “Na Rússia se pergunta: ‘se não é Putin, vai ser quem?’ Muitas pessoas não sabem responder. O objetivo do governo é não ter oposição. Não há nenhum líder opositor, e, se ele surge, logo começa um movimento para sujar o seu nome.”
“A maior parte dos russos apoia o governo porque não sabe o que pode vir. Quem vai vir depois de Putin? Acham que poderia aparecer alguém que pode destruir a Rússia como aconteceu com a União Soviética”, comenta Golunov. pic.twitter.com/oZGJGIuWmO
— revista piauí (@revistapiaui) October 6, 2019
O governo Putin, no entanto, vive hoje um refluxo de popularidade. Em setembro deste ano, as eleições municipais fortaleceram a oposição em Moscou. Os governistas ainda têm controle sobre o Legislativo, mas receberam um recado da população. “O partido do governo está perdendo popularidade”, constatou Golunov. O que não permite otimismo, segundo ele. “A principal questão hoje é quem será o próximo presidente. Ninguém acredita que o povo possa eleger alguém. A gente só quer saber quem vai ser colocado lá.”
Nesse contexto, Golunov avalia que sua prisão, por ter repercutido de forma tão ampla, tornou-se um caso exemplar para os russos. O slogan “Eu sou/Nós somos Ivan Golunov” se popularizou e extrapolou o contexto do jornalismo. Segundo ele, esses dizeres já foram usados até mesmo em protestos contra o cancelamento de uma linha de ônibus. No fim das contas, sintetizou o jornalista, esse episódio “mostrou que a pressão da sociedade civil pode mobilizar e mudar algo.”