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    À esquerda, André Prous na Lapa do Sumidouro, em Pedro Leopoldo (MG), em 2017; à direita, no Vale do Peruaçu (MG), em 1989 Fotos: Alenice Baeta

depoimento

Na terra de Luzia, futuro e passado em jogo

Cientista que ajudou a localizar fóssil mais antigo das Américas aponta riscos de construir cervejaria em sítio arqueológico

André Prous | 09 nov 2021_15h04
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Aconstrução de uma fábrica da cervejaria Heineken se transformou numa questão ambiental em Pedro Leopoldo, região metropolitana de Belo Horizonte (MG). O projeto prevê instalar a unidade a aproximadamente 900m do sítio arqueológico da Lapa Vermelha, onde foi encontrado o fóssil mais antigo das Américas, a Luzia, datado de mais de 11 mil anos. O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) embargou a obra em setembro deste ano, pois especialistas entendem que a instalação da fábrica pode causar danos ao sítio arqueológico da região, como o desabamento de cavernas devido ao bombeamento de uma grande quantidade de água para o empreendimento. Em outubro, a Justiça concedeu liminar à empresa permitindo a realização da obra. A cervejaria informou que o empreendimento está suspenso e só será retomado quando todas as partes estiverem de acordo. O Ministério Público de Minas Gerais instaurou inquérito para investigar o licenciamento e recomendou à Secretaria Estadual de Meio Ambiente suspender as licenças para construção da fábrica. Começou a correr na quarta-feira (3) o prazo de dez dias para a Semad se manifestar.

O arqueólogo francês André Prous participou da missão franco-brasileira que, nos anos 1970, descobriu o crânio de Luzia, na região da Lapa Vermelha. Prous, hoje com 76 anos, tem uma ligação forte com a região, onde realizou uma de suas primeiras missões de grande amplitude no Brasil. Em sua avaliação, a construção da fábrica de cerveja em Pedro Leopoldo mostra descuido com o patrimônio arqueológico, cultural e botânico. “É o futuro de uma região que está em jogo.”

Em depoimento a Amanda Gorziza

 

Eu me mudei da França para o Brasil em 1971, a pedido da Universidade de São Paulo (USP), onde fui recebido para lecionar pré-história. Sou formado em letras, história, história da arte e arqueologia. Fui incentivado a vir ao Brasil por Annette Laming-Emperaire, que era minha orientadora de doutorado na época e que estava se propondo a montar uma missão de arqueologia na região de Lagoa Santa (MG). Ter alguém no Brasil para dar apoio direto para ela era algo interessante. Eu tinha apenas 26 anos. Cheguei em fevereiro de 1971 para viver no Brasil e, no mesmo ano, em junho, nós fizemos as primeiras prospecções, ou seja, o reconhecimento da região para escolher sítios a serem pesquisados mais intensamente. Entre 1973 e 1976, fizemos diversas missões, que duraram entre um e três meses.

No primeiro ano de prospecção, a equipe contou com sete pessoas. A partir do segundo ano, em 1973, a equipe tinha de 20 a 25 pessoas. O Instituto do Patrimônio (atual Iphan) pediu para a coordenadora que fossem treinados arqueólogos brasileiros na escavação. Nós éramos franceses, mas também vieram uma polonesa, uma equatoriana, uma argentina, uma norte-americana e um bom número de brasileiros. Alguns deles se tornaram arqueólogos bem conhecidos. O Instituto de Arqueologia do Rio de Janeiro deu um apoio muito forte através dos integrantes. Enfim, teve muita gente que passou pela Lapa Vermelha.

O esqueleto da Luzia foi encontrado por partes e o processo demorou cerca de dois anos. Em 1974, eu estava escavando em um nível relativamente antigo do sítio e começaram a aparecer alguns ossos mais esparsos, como a costela e partes da bacia. Claramente havia ali um corpo que tinha sido desmembrado e que a erosão tinha levado. Só que não era um esqueleto completo, e o solo pré-histórico não era plano. Era provável que nós fôssemos encontrar outros ossos ampliando a escavação fora da zona já escavada em 1974. Então, em 1975, comecei a escavar dentro de uma zona de afundamento e achei mais um ou dois dentes da Luzia. Era uma sexta-feira e, à noite, tive que viajar para São Paulo, pois eu dava aula na USP no sábado pela manhã. No sábado, a equipe normalmente trabalhava, então a coordenadora retomou a escavação que eu tinha deixado no dia anterior. Afundando um pouco, ela encontrou o crânio da Luzia. Ele tinha descido várias dezenas de centímetros em relação aos outros ossos encontrados. Foi assim que a Luzia foi achada. Uma parte do esqueleto por mim e outra parte por Annette Laming-Emperaire e a equipe que estava trabalhando com ela naquele sábado de manhã, em agosto de 1975.

As pessoas não arqueólogas costumam valorizar primeiro os esqueletos, que são obviamente espetaculares, e depois, quando falam que um é mais antigo, por exemplo, valorizam ainda mais. Mas na arqueologia não é isso. Tudo é importante. A escavação na Lagoa Santa não foi minha primeira experiência no Brasil, mas foi a minha primeira experiência num abrigo e numa escavação de uma grande amplitude. Nós já tínhamos descoberto centenas de pinturas rupestres enterradas na Lapa Vermelha e, pela primeira vez, datamos uma arte rupestre no Brasil. Até então, não havia tido nenhuma possibilidade de fazer isso. Ou seja, a gente já tinha achado coisas interessantes, então a Luzia era mais uma. 

Eu tenho uma memória afetiva da Lapa Vermelha porque trabalhei vários meses lá, e a missão foi especial porque escavei grande parte do local. Também conheci muitos colegas, especialmente brasileiros, e sobretudo porque foi o grande último trabalho da minha orientadora, Annette Laming-Emperaire, que morreu no Brasil em 1977. Então, para mim, a Lapa Vermelha está associada à minha ex-orientadora de uma maneira muito forte, tanto que eu não quis continuar os trabalhos naquele sítio, porque o local estava reservado à memória dela.

 

Sobre a construção da fábrica da cervejaria Heineken na região, o parecer que o ICMBio emitiu desfavorável ao empreendimento em Pedro Leopoldo, bastante próximo à Lapa Vermelha, me pareceu muito bem fundamentado. Tem o aspecto puramente arqueológico na decisão. A Lapa Vermelha é um conjunto de sítios que inclui uma caverna com vestígios paleontológicos e arqueológicos, além de vários abrigos com artes rupestres, incluindo a Lapa Vermelha IV, onde foi achada a Luzia. Cada um desses sítios podem ser impactados de maneira diferente com a construção de uma fábrica. Por exemplo, a caverna faz parte de uma rede hídrica subterrânea que está funcionando. Se retirarem água em grande quantidade para realocarem para a fábrica, pode provocar um rebaixamento do lençol freático e um desabamento. Isso mudaria todo um conjunto geológico e biológico que tem sua importância no mundo científico. Imagino que seja sobretudo a caverna o que pode ser afetado diretamente. 

Os riscos da retirada de água inclusive podem se reverter danosos para a própria Belo Horizonte, porque estamos em uma bacia hidrográfica na qual o calcário é uma espécie de esponja que armazena líquidos e é importante para o fornecimento de água potável para a população. Colocar uma usina que vai utilizar uma quantidade enorme de água me parece um absurdo, a não ser que estudos adequados tenham sido feitos para verificar que isso não afetaria. Mas esses estudos não foram feitos. Tem também um problema ambiental pelo fato de se tratar de uma área de preservação, na qual a paisagem deve ser conservada e a instalação de empreendimentos humanos deveria ser controlada.

Além disso, tem um outro aspecto que eu chamaria como paisagístico e patrimonial. Se fala muito em turismo no Brasil e, de fato, o país poderia ter um turismo muito mais intenso do que ele tem. A região da Lapa Vermelha se encontra a 40 km de Belo Horizonte. É um local excelente para fazer turismo, se houvesse a preservação e um manejo para os turistas. Mas, nas atuais circunstâncias, a Lapa Vermelha não é um local para ser visitado. Portanto, uma das regiões mais adequadas para turismo começa a ser desfigurada por um empreendimento que talvez pudesse ser feito em outro lugar. 

O primeiro estudo que mostrou a relação entre a vegetação e a geologia, publicado no século XIX, foi na região da Lagoa Santa. O local tem um patrimônio paleontológico, arqueológico, espeleológico, cultural e botânico. É ímpar. Mas, até hoje, as pessoas continuam estragando a região. O empreendimento da Heineken é um escândalo, mas é apenas um escândalo no meio de um escândalo muito maior, que é a ausência da utilização dessa região para o turismo cultural e científico controlado. É o futuro de uma região que está em jogo.

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