Constance Malcolm, 48, perdeu a conta de quantos protestos já participou desde que seu filho Ramarley Graham, 18, foi assassinado pela polícia de Nova York dentro de casa em 2012. Mesmo durante a pandemia, resolveu ir a mais um, dessa vez maior e impulsionado pela morte de George Floyd. Na tarde de 9 de junho, em frente à Prefeitura de Nova York, ela se juntou a uma fila com pessoas que vestiam máscaras, camisetas e seguravam cartazes com fotos de familiares mortos. Ao microfone, pediu o fim da violência e do abuso policial, além de cortes no orçamento da polícia. Nos EUA, os negros são mortos pela polícia 2,5 vezes mais do que os brancos,segundo dados deste estudo publicado na Nature.
Assistente de enfermagem em um lar para idosos, Constance sentiu dores que pareciam martelar sua cabeça por quatro dias entre março e abril, quando Nova York registrava cerca de quinhentas mortes por dia por Covid-19 e era o epicentro mundial da pandemia de coronavírus. Sem seguro de saúde, ela se tratou em casa. Depois, quando fez o teste de anticorpos, o resultado foi positivo. “Fiquei com medo, mas tinha contas a pagar. Nós, as minorias, aceitamos trabalhos que não compensam porque temos uma família para alimentar”, diz.
Constance está entre os quase 3 milhões de americanos contaminados pelo coronavírus, que tem afetado mais os afro-americanos do que qualquer outra etnia no país. A taxa de mortes entre os negros é mais de duas vezes maior do que a taxa de morte entre brancos, latinos ou asiáticos, segundo pesquisa independente da APM Research Lab. Reportagem do New York Times mostra que cerca de 43% dos negros e latinos trabalham em empregos ligados a serviço e produção, o que os deixa mais expostos, como Constance e sua filha Leona Virgo; a população negra tem menos acesso ao sistema de saúde e a opções saudáveis de alimentação.
“Claramente negros, indígenas, latinos têm um longo histórico de serem excluídos do poder econômico. Se você cria um sistema de saúde que tem base em lucro, essas famílias trabalhadoras, inclusive brancos pobres, não conseguem garantir os benefícios de saúde que os mais ricos conseguem”, diz Clarence Taylor, autor de livros sobre direitos civis e professor emérito de história da Universidade da Cidade de Nova York.
Historicamente, os negros têm menos acesso a seguro de saúde do que os brancos nos EUA. Diferentemente do Brasil e do Reino Unido, os Estados Unidos não têm um sistema universal de saúde, como o SUS. O sistema americano é público-privado, e os preços de todos os serviços variam muito, assim como a quantidade de planos disponíveis. Com a aprovação da lei Affordable Care Act, também conhecida como Obamacare, a população americana sem plano de saúde passou de 46,5 milhões de pessoas em 2010 para menos de 27 milhões em 2016, segundo pesquisa da organização independente Kaiser Family Foundation. Desde que Donald Trump assumiu a Presidência em 2017 até 2018, houve cortes na expansão dos programas federais, e o número de pessoas sem cobertura voltou a aumentar em meio milhão, sendo a população negra a mais atingida.
Constance perdeu o seguro de saúde em setembro do ano passado, quando decidiu deixar um dos seus empregos. Ela trabalhava em dois lares para idosos. Em um, das sete da manhã às 15 horas, e das 15 às 23 horas em outro. Quando foi pesquisar preços, ficou atônita: 700 dólares (cerca de 3700 reais) por mês em um deles, apenas para sua cobertura. Por causa do seu trabalho de meio período, acabou conseguindo um plano de 50 dólares (cerca de 265 reais), que vai ficar mais caro quando aumentarem suas horas de trabalho, e ela está procurando outro. “A gente não dorme as oito horas que deveria, porque está trabalhando. A gente não come direito, porque tem que pagar aluguel caríssimo. Não temos dinheiro para comprar a comida saudável que a gente sabe que deveria estar consumindo.”
Dados do governo americano mostram que, entre adultos negros, as mortes por diabetes foram o dobro das verificadas entre brancos em 2018. A pobreza é uma das principais causas sociais da doença, atrelada também a problemas como hipertensão, cuja taxa foi 60% maior entre mulheres negras. A mortalidade materna é duas a três vezes maior entre mães negras do que entre as brancas, de acordo com os Centros para Prevenção e Controle de Doenças (CDC).
Constance mora com a filha, a mãe de 68 anos e o filho Chinnor Campbell, de 14 anos. Quando o irmão Ramarley foi assassinado, Chinnor tinha apenas 6 anos e presenciou tudo. Apenas após a morte de George Floyd, Constance passou a conversar com Chinnor sobre o que aconteceu com o irmão dele. Ramarley – que adorava animais e provavelmente estudaria veterinária, segundo sua mãe – tinha ido a um mercadinho com amigos e foi seguido por policiais até sua casa. Os policiais entraram no local e Richard Haste atirou no adolescente, dizendo depois acreditar que ele estava armado, o que não era verdade. Em 2017, Haste foi julgado por um tribunal policial que o condenou por má conduta e o demitiu. Ele foi a júri, mas não foi condenado. “Um policial perder seu emprego não é justiça. Ele volta para sua família enquanto eu tenho que imaginar todos os dias como meu filho estaria hoje,” diz.
O desemprego no país atingiu 17,8 milhões de pessoas em junho, segundo o Departamento de Trabalho dos EUA. Entre negros, a taxa de desemprego é de 15,4%, a maior taxa entre todas etnias – entre brancos, ela é de 10,1%. Como na maioria dos casos os planos de saúde são pagos pelos empregadores, a Kaiser Family Foundation estimou em maio que pelo menos 5,7 milhões de pessoas ficarão sem nenhum tipo de cobertura.
Carol Gray, 56, uma imigrante jamaicana cujo filho Kimani Gray, 16, foi morto pela polícia em 2013, está desempregada há dois anos. Ela trabalhava em restaurante em diversas funções: cozinheira, garçonete e caixa. Mas, com o tempo, seus pés já não aguentavam mais. Moradora do Brooklyn, ela havia passado em todos os testes para começar a trabalhar com limpeza e processos administrativos, mas a vaga foi congelada. Ela vive com dois filhos e sua nora de 26 anos, que tem sustentado a casa com um trabalho de meio período com crianças especiais enquanto cursa enfermagem. “Está difícil, mas você acaba treinando a si mesma para passar por isso. Mas você quer ter seu dinheiro, não pode depender dos outros o tempo todo”, diz.
Desde a morte de George Floyd, as manifestações têm sido diferentes não apenas pela quantidade geral de pessoas e por estarem acontecendo em todo o país, mas também pela participação em massa de brancos, muitas vezes para proteger os negros na linha de frente com a polícia. De acordo com uma pesquisa da Universidade de Monmouth, a porcentagem de americanos que considera racismo e discriminação “um grande problema” aumentou de 51% em 2015 para 76% em 2020. E 57% disseram que policiais em uma situação difícil tendem a usar força excessiva contra negros. Em 2016, apenas 34% dos eleitores registrados concordavam com essa afirmação. O movimento Black Lives Matter surgiu em 2013 após o policial branco George Zimmerman ser absolvido por matar o jovem Trayvon Martin, 17, na Flórida. As manifestações continuaram um ano depois, após o assassinato de Michael Brown em Ferguson, Missouri.
Segundo o jornal The New York Times, as manifestações já reuniram de 15 milhões a 26 milhões de pessoas. O questionamento da história racista e segregacionista nos EUA está surtindo efeitos, como a retirada de monumentos homenageando líderes racistas e a mudança da bandeira do estado do Mississipi (o último a manter o símbolo dos confederados, que eram escravagistas). A deputada democrata Barbara Lee, da Califórnia, apresentou um projeto de lei para criar uma comissão da verdade para discutir os legados da escravidão no país e políticas de reparação. No Congresso, democratas e republicanos apresentaram projetos para reformar a polícia, como mais treinamentos e câmeras nos uniformes policiais, mas especialistas avaliam que será difícil encontrar um meio-termo entre as duas propostas.
O estado de Nova York mudou a lei de sigilo do histórico dos policiais depois de muita luta de ativistas e familiares. Os protestos continuam em frente à prefeitura da cidade de Nova York, que já cortou US$ 1 bilhão do orçamento da polícia, apesar de ativistas ainda não estarem satisfeitos com o redirecionamento do dinheiro público.
Carol Gray conta que se preocupa muito com seu filho mais novo, de 19 anos, que já foi parado diversas vezes pela polícia no bairro. Ela chegou a ligar para o departamento de polícia para reclamar. Essa é uma das razões por que comparece às manifestações, além de se solidarizar cada vez que outra família perde um filho ou filha. “Quando você vê uma família sofrendo porque perdeu o filho, você não vê o rosto deles, você vê seu rosto no corpo deles, você passa por tudo de novo”, me disse chorando ao telefone. Mas, cada vez que protesta, ela diz se sentir mais motivada para reivindicar mudanças e manter viva a memória de Kimani, que sonhava em ser arquiteto para construir casas para pessoas pobres. “Quando eu falo, eu não falo apenas por meu filho, eu falo por todas as famílias. Para mim, justiça para um é justiça para todos.”