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    INTERVENÇÃO DE PAULA CARDOSO EM FOTO DE ARQUIVO PESSOAL/FACEBOOK

questões geopolíticas

Não é só pelos 6 centavos de euro

Quem são e o que pensam os “coletes amarelos” e como lideraram um movimento popular e populista que paralisa a França há três semanas

Andrei Netto | 07 dez 2018_21h21
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Um ano e meio atrás, Christophe Chalençon, um artesão metalúrgico de 52 anos que vive no sul da França, tentou sua primeira aventura política: candidatou-se a deputado na Assembleia Nacional pelo 5º distrito, na região sulista de Vaucluse, uma das mais suscetíveis ao discurso de extrema direita no país. A experiência teve gosto amargo: exatos 253 votos computados, ou 0,63% da preferência dos eleitores. As ambições políticas de Chalençon poderiam ter ficado por aí, não fosse pela militância compulsiva nas redes sociais, o hábito de compartilhar memes e links de textos de credibilidade duvidosa e a visibilidade que os novos algoritmos do Facebook conferiram mesmo a quem manifesta discursos de ódio em comunidades de haters.

Aspirante a político de partido nanico, Chalençon alcançou nas últimas semanas, e graças às redes, um inesperado protagonismo midiático internacional como um dos líderes informais do movimento que sidera a França há três semanas: os “coletes amarelos”. Seu rosto rústico, sua voz gutural e seu sotaque cantado característico do sul – não raro visto como sinal de provincianismo por quem vive na capital – encarnam neste final de ano a cólera que tomou conta de grande parte dos trabalhadores de classe baixa e média baixa do interior profundo e das periferias contra a elite política de Paris.

Chalençon, como outros porta-vozes do movimento com os quais conversei nessa semana, descrevem os “coletes amarelos” como um movimento antiglobalização, contrário à ideia de livre-mercado, a favor da “Europa de Nações” – uma das bandeiras da família Le Pen e do partido de extrema direita Frente Nacional para implodir a União Europeia. Como muitos membros do movimento, Chalençon diz não ser “nem de esquerda, nem de direita”, em uma espécie de versão populista e “iliberal” (neologismo usado para definir a cultura que desqualifica a visão política liberal) do En Marche, movimento criado pelo hoje presidente da França, Emmanuel Macron. Como é típico de líderes antissistema, reitera com frequência sua aversão a partidos políticos e sindicatos – “todos corruptos”, segundo ele.

Por outro lado, e por paradoxal que pareça, Chalençon admite que a ideia é criar, a partir da mobilização dos “coletes amarelos”, um novo movimento político – “não um partido” – para disputar as próximas eleições em 2022 ou antes disso. Essa legenda encarnaria em uma “Assembleia Nacional cidadã”, uma espécie de cruzada do interior profundo e das regiões periféricas de grandes cidades contra as elites. “Essa é a revolta do mundo rural e das periferias que foram abandonadas contra os parisienses, que se creem o centro do mundo”, resumiu, em entrevista à piauí. “Os parisienses vão descobrir que há outras coisas além de Paris, da burguesia e das elites.”

Essa é uma das chaves para compreender o movimento: por trás dos coletes amarelos se esconde com frequência a crítica ao “capital financeiro, elitista e globalista” e ao cosmopolitismo das grandes cidades, um discurso muito semelhante ao que levou ao voto pelo Brexit no Reino Unido em 2016. Daí seu objetivo final de derrubar quem simboliza o “globalismo” na França: Macron.

Nessa semana Chalençon gerou controvérsia ao defender em entrevista à rádio Europe 1, uma das maiores do país, a derrubada do presidente e a posse de um general, Pierre de Villiers, ex-chefe do Estado-Maior das Forças Armadas demitido por Macron por protestar contra o corte de orçamento no Ministério da Defesa.

Na entrevista que me concedeu em Paris, Chalençon se mostrou constrangido e voltou atrás, dizendo-se incompreendido. Mas logo voltou a bombardear seu principal alvo. “Vou a Paris no sábado para dobrar Macron, fazê-lo cair. Se ele aceitar se curvar, a democracia e a Quinta República sobreviverão. Se resistir, vai cair e a Quinta República infelizmente cairá com ele”, afirmou. “Nós queremos uma evolução, uma evolução da sociedade, não uma revolução.”

Derrubar Macron não era de início o principal objetivo dos “coletes amarelos”. Insatisfeitos com uma política fiscal sobre os combustíveis destinada a reduzir as emissões de gases de efeito estufa estimulando a substituição do óleo diesel por automóveis a gasolina ou eletricidade, franceses que se consideram abandonados à própria sorte diante da globalização, do livre-mercado, da digitalização e da robotização da economia sacaram dos porta-luvas um símbolo do século 20. Os coletes amarelos são equipamentos obrigatórios que todos os motoristas precisam usar em caso de panes ou acidentes de trânsito. Quem tem carro, tem um colete.

Em uma época em que políticos da Europa Ocidental fazem campanha falando em mudanças climáticas, em transição energética, em ciclovias e novos modais de transporte compartilhados, os “coletes amarelos” representam uma voz reacionária. Eles são os habitantes de pequenas cidades e vilarejos em que a globalização só chegou via tevê e internet, mas onde o automóvel, símbolo do século XX, continua a ser indispensável na vida cotidiana.

Daí a ira despertada pelo aumento do preço dos combustíveis promovida pelo governo de Macron. Sob a justificativa de promover a transição energética, o primeiro-ministro, Édouard Philippe, anunciou um programa de aumento progressivo dos impostos sobre combustíveis fósseis, em especial o diesel, o mais consumido por classes mais baixas da população. Entre os meses de outubro de 2017 e de 2018, o preço médio do diesel subiu 23%; o da gasolina, 15%. E, em janeiro de 2019, segundo a lei orçamentária enviada pelo poder executivo ao parlamento, o diesel passaria a custar 6,5 centavos de euro a mais. Ou, na expressão corrente no país, um aumento de seis centavos. Foi o que bastou para desencadear os protestos.

Mas Chalençon não foi o iniciador da revolta, cujo ponto alto – ou mais baixo – foi a invasão do Arco do Triunfo, um dos maiores símbolos da República e das glórias militares do país, no sábado, 1º de dezembro. A precursora foi Priscillia Ludosky, pequena comerciante de cosméticos vendidos online, que em 29 de maio publicou no site change.org uma petição “Pela baixa dos preços do combustível”. A iniciativa casava-se com um movimento anterior, iniciado em janeiro, quando o pedreiro português Leandro Antonio Nogueira, morador de Dordogne, perto de Bordeaux, criou o primeiro dos “Grupos do Ódio” – uma espécie de “Revoltados Online” franceses – reunidos em comunidades locais que desde então se multiplicaram nas timelines de Facebook do país.

Eleito graças ao voto dos grandes centros urbanos, Macron, jovem ex-banqueiro liberal convicto com tênue sensibilidade social, representa o mundo cosmopolita – o dos “vencedores” da globalização –, que pretende transformar a França em uma “start-up nation”. No interior, onde os empregos ainda são muito gerados por indústrias e pelo pequeno comércio, esse discurso faz bem menos sentido do que na capital. Em um cenário de incompreensão mútua entre elite política e camadas populares, medidas como a extinção do Imposto sobre Fortuna (ISF) nos primeiros dias de governo valeram a Macron a alcunha de “presidente dos ricos”. E o fim do ISF, claro, também contrasta com o aumento de impostos que incidem mais sobre quem mais utiliza o automóvel: a classe trabalhadora de pequenas cidades distantes. Esse público, formado por operários, artesãos, pequenos comerciantes, aposentados e desempregados hoje ocupa cruzamentos de estradas pelo país. A eles se somaram, nos dois primeiros sábados de distúrbios em Paris, black blocs, grupos de ultraesquerda de perfil anarquista, e grupúsculos de extrema direita, todos pregando a revolta e/ou a violência contra Macron e o sistema.

Chalençon é uma das faces dos “coletes amarelos”, mas o movimento tem mais membros de destaque. Muitos dos principais nomes têm ligações com os grupúsculos neofascistas, ou professam ideias semelhantes. Na quarta, em um debate no canal de notícias BFMTV, Éric Drouet, caminhoneiro que se tornou outro dos líderes, exortou os revoltosos a tomarem o Palácio do Eliseu no sábado. Quando obtive seu celular, Drouet não respondeu aos chamados. Tinha sido preso minutos antes, acusado de “exortação ao crime”.

Jovens de linguajar agressivo, que manifestam ódio ao sistema político e ao presidente são as caras mais conhecidas dos “coletes amarelos”. Mas nem todos têm o mesmo perfil. Marc Varnier, 27 anos, padeiro que perdeu o emprego em razão dos protestos e hoje trabalha como caminhoneiro, é uma espécie de contraponto. Ele não viaja a Paris para se manifestar, enfrentar a polícia ou pilhar o comércio, e prefere permanecer acampado em estradas para mobilizar seus vizinhos.

Em comum com seus colegas mais agressivos, Varnier tem a pauta fluida. O movimento anti-impostos hoje pede de tudo, sem aceitar negociar em nenhum momento. “Hoje o que queremos é a dissolução da Assembleia Nacional ou nada”, disse Varnier. “Os deputados que nos representam deveriam portar a palavra do povo. Mas eles não nos representam, e nossas reivindicações não são ouvidas. É preciso que os deputados vão embora e uma assembleia popular ocupe seu lugar.”

Para o cientista político Jean-Yves Camus, um dos maiores especialistas da Europa em extremos políticos, os “coletes amarelos” são um grupo eclético que reúne desde pessoas sem engajamento político até militantes  de extrema esquerda e de extrema direita, e de fato sem reivindicações precisas, mas que vive na pele o dia a dia do que consideram ser uma espécie de luta de classes versão século XXI. “Sim, há um forte elemento populista, mas antes de mais nada popular”, afirmou Camus. Macron, disse o especialista, é o alvo por representar aqueles que menosprezam as classes inferiores, e por isso seu governo vem sendo ameaçado. Nada, contudo, que represente até aqui uma ameaça real de queda. “Em uma democracia”, disse Camus, “não se coloca um líder político para fora do poder se não for pelo voto”.

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