O rompimento da barragem de Fundão, em Mariana (MG), já completa seis anos e cinco meses. Foi o maior desastre ambiental brasileiro. Bento Rodrigues, subdistrito de Mariana com cerca de seiscentos habitantes, foi completamente devastado pela enxurrada de rejeito de minério. Dezenove pessoas morreram. A onda de lama atingiu o Rio Doce, desceu pelo leito do rio e gerou estragos em 41 municípios de Minas Gerais e do Espírito Santo. No Brasil, o processo contra a mineradora Samarco e a Vale anda a passos lentos. O escritório inglês PGMBM, que atua em parceria com advogados de vários países, tenta processar na Justiça britânica a BHP Billiton, controladora da Samarco junto com a Vale, como responsável pelo rompimento da barragem. Os advogados pedem indenização de 5 bilhões de libras para mais de 200 mil vítimas, incluindo empresas, municípios, instituições religiosas e povos indígenas. No início de abril, ocorreu a audiência no Tribunal de Apelação em Londres para decidir se a ação poderá ser julgada na Inglaterra. Se a Corte decidir dar prosseguimento ao processo, essa se tornará uma das maiores ações da justiça britânica.
Maria das Graças Quintão Santos, de 65 anos, morava em Bento Rodrigues quando a barragem rompeu. Perdeu a casa com tudo o que havia dentro – pertences, móveis, roupas, fotos e lembranças materiais de onde passou mais de cinquenta anos de sua vida. Passou a morar em Mariana, mas não se adaptou ao ritmo e ao estilo de vida em uma cidade mais movimentada. Neste depoimento, Santos relata as angústias desde o dia do rompimento da barragem até hoje, numa espera por justiça que já dura mais de seis anos.
Em depoimento a Amanda Gorziza
Na tarde de 5 de novembro de 2015, recebi uma ligação do meu sobrinho dizendo que a barragem de Fundão havia rompido. Ele tentou ligar para os nossos parentes em Bento Rodrigues, mas não conseguiu se comunicar com ninguém. Fiquei desesperada. Eu estava no serviço, em Mariana. Na época, trabalhava na recepção de uma clínica odontológica da prefeitura. Ouvi gritos na rua, e as pessoas estavam falando que a barragem havia se rompido. Era verdade.
Minha filha foi me buscar no trabalho na mesma tarde e partimos para Bento para encontrar meu outro filho, meus irmãos e tios. Chegando perto, não conseguimos acessar a comunidade de lugar nenhum. Voltamos para uma vila próxima. Encontrei alguns conhecidos funcionários da mineradora e eles contaram que tinha sido algo grave e que muitas pessoas tinham morrido. Pegamos um carro e fomos para Santa Rita Durão, distrito de Mariana, para onde as vítimas estavam sendo levadas. Chegando lá, não encontramos ninguém da família. Foi desesperador. Fiquei a noite inteira aguardando notícias. Passavam bombeiros e policiais, mas eles não tinham notícia nenhuma. Foi uma noite horrorosa. Só consegui falar com a minha sobrinha às 2 horas do dia seguinte. Ela disse que estava bem – o que foi um alívio. Encontrei meus familiares às 13 horas do dia 16 de novembro, já em Mariana.
A lama levou minha casa embora. Não sobrou nada, nem uma agulha. Varreu completamente. Ela ficava na parte baixa da cidade, então não sobrou nada. Como perdi os álbuns de foto, as únicas lembranças materiais que tenho hoje são de turistas que fotografaram o lugar antes do rompimento da barragem destruir Bento.
Nos dias seguintes à tragédia, fomos levados para hotéis e pousadas. Fiquei lá até 15 de dezembro do mesmo ano, quando fui para o apartamento onde estou até hoje, em Mariana. A Fundação Renova paga o aluguel e tem programas de reparação para os impactados pelo rompimento da barragem. Um deles é a construção de casas no novo reassentamento de Bento Rodrigues, mas meu projeto não foi finalizado por conta de um problema com o fogão. Eles querem instalar um fogão pré-fabricado, mas o meu fogão não era assim, ele era de alvenaria. Em Bento, as pessoas tinham apenas fogões a lenha – alguns até mesmo feitos pelos próprios moradores. Eu não sei se vou dar conta de usar esse fogão que querem impor para todo mundo, que é um utensílio totalmente fora da minha realidade. Parece ser só um fogão, mas não. É minha história, minha casa, tem toda uma carga emocional.
A vida na cidade é muito estranha para mim. Não consigo me acostumar. Volto para Bento todo fim de semana e feriado. Passo um tempo lá com a minha família, na casa da minha irmã – e são essas idas que fazem a gente continuar a sobreviver. Não estamos acostumados com a cidade. A casa da minha irmã ficava na parte alta de Bento, por isso não foi levada pela lama. Mesmo assim, foi completamente saqueada: roubaram telha, janela, rede elétrica e hidráulica. Improvisamos algumas janelas, portas e telhas para conseguir frequentá-la. Até hoje não temos energia nem água, mas usamos a bateria do carro e buscamos água em uma nascente próxima.
Nos dias que passo em Bento, uso o fogão a lenha da minha irmã – e me sinto em casa. Eu gosto de cozinhar frango caipira, canjica, cuscuz, feijoada, bambá de couve e doces. Nos finais de semana, reúno familiares e amigos para aproveitarem comigo as refeições. São momentos muito agradáveis, principalmente porque revejo pessoas queridas para mim no local onde passei grande parte da minha vida.
Se eu não fosse a Bento nos fins de semana, eu não aguentaria. É uma maneira de carregar as baterias para aguentar a vida da cidade. Tem algumas pessoas que se adaptaram, mas a maioria não. Alguns foram morar em distritos próximos porque não se acostumaram com o ritmo de vida em Mariana. Nasci e fui criada em casa, em Bento Rodrigues. Foram mais de cinquenta anos morando lá.
Três anos atrás eu me aposentei, e a situação ficou ainda pior, porque eu e minha filha moramos em um apartamento muito pequeno. A minha ideia era me aposentar e ir para Bento cuidar da horta e das minhas coisas, mas tive que continuar em Mariana.
No final de 2015, recebi da Fundação um adiantamento de 20 mil reais, sendo que 10 mil são um empréstimo que vão descontar na indenização. Depois recebi mais 20 mil nesse mesmo esquema. Além disso, mensalmente eu recebo uma ajuda de custo de um salário mínimo.
Tenho esperança de alguma resolução do processo na Inglaterra. Aqui no Brasil está muito demorado. Já se vão sete anos do rompimento da barragem. Tem apenas 47 casas prontas no novo reassentamento. É difícil e muito angustiante. Será que vão gastar 30 anos para construírem as quase 250 casas?
A dor dentro de mim nunca vai passar. Nunca vou esquecer do dia 5 de novembro de 2015 e tudo que passei depois. Outra coisa que ganhamos para o resto da vida é a marca de “atingido”. Somos rotulados como atingidos. Não temos mais identidade própria. É uma palavra que ficou marcada na nossa vida. Nós temos nome, identidade e histórias, por mais que algumas tenham afundado na lama, elas existem.