Quem disse isso foi Manuel Bandeira e meu amigo André Gardel foi quem me lembrou desta frase, numa conversa, há alguns dias. Estávamos falando de como a poesia de Bandeira é musical e aí ele citou esta frase que ilumina a poética bandeiriana. “Onde está esta frase?”, perguntei. E aí fomos procurar no livro, ele achou a página, que alegria, Itinerário de Pasárgada, este livro que eu não saberia viver sem. Rimos os dois porque temos a mesma edição da Aguilar, Poesia Completa e Prosa, papel bíblia, anos 70. Este livro já andou comigo por tantos lugares. Sempre levava em viagens, tão bom ler no avião, quando não há nada que interrompa a leitura, exceto um cafezinho, ou num quarto de hotel, no Arpoador, ouvindo o barulho do mar, sentindo o cheiro da maresia e poder cismar à vontade com Manuel, esta alma boa e brasileira, terna e melancólica, este grande poeta que se dizia menor, que desentranhava a poesia do cotidiano e encontrava nas coisas simples o sublime.
Neste livro, Bandeira conta o segredo de seu itinerário poético: a fonte estava na infância, nas reminiscências vagas dessa época e na emoção particular que estas lembranças provocam nele. Tudo isto ele identifica com outra emoção, a de natureza artística: “Verifiquei ainda que o conteúdo emocional daquelas reminiscências da primeira meninice era o mesmo de certos raros momentos em minha vida de adulto: num e noutro caso alguma coisa que resiste à análise da inteligência e da memória consciente, e que me enche de sobressalto ou me leva a uma atitude de apaixonada escuta.”
Infância
Corrida de ciclistas.
Só me recordo de um bambual debruçado no rio.
Três anos?
Foi em Petrópolis.
Procuro mais longe em minhas reminiscências.
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O urubu pousado no muro do quintal.
Fabrico uma trombeta de papel.
Comando…
O urubu obedece.
Fujo aterrado do meu primeiro gesto de magia .
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Com dez anos vim para o Rio.
Conhecia a vida em suas verdades essenciais.
Estava maduro para o sofrimento
E para a poesia!
Seu primeiro contato com a poesia, nos contos infantis, como A madastra, onde há a impressionante cantiga da menina enterrada viva:
Narração: Elba Ramalho, canto: Solange Maria
“E esse ‘Xô, passarinho!’ me cortava o coração, me dava vontade de chorar”, ele disse; Bandeira é um dos poetas brasileiros mais musicados, os compositores gostavam dele e ora musicavam seus poemas, ora pediam para ele colocar letra em suas composições. A musicalidade de seus poemas está não só no fraseado poético, mas também nos temas que ele elege, como por exemplo:
Letra para uma valsa romântica
A tarde agoniza
Ao santo acalanto
Da noturna brisa.
E eu, que também morro,
Morro sem consolo,
Se não vens Elisa!
(…)
Ri, desdenha,pisa!
Meu canto, no entanto,
Mais te diviniza,
Mulher diferente,
Tão indiferente,
Desumana Elisa!
O ritmo e as rimas do poema são marcados como valsa: os versos de seis sílabas são sentidos como um compasso ternário, cada tempo dividido em dois. Aliás, Bandeira escreveu este texto a pedido de Radamés Gnattali, que queria criar uma composição musical a partir dele. Teria Radamés sugerido o tema? Não sei.
Talvez por a música se encontrar na origem da sua descoberta da poesia, amalgamada com as lembranças infantis, nas cantigas, o limite entre sua poesia e a música às vezes parece se diluir. Mas não nos enganemos, uma coisa é a musicalidade do poema, outra a música propriamente dita. Ele explica: “Foi vendo a ‘musicalidade subentendida’ dos meus poemas desentranhada em ‘música propriamente dita’ que compreendi não haver verdadeiramente música num poema, e que dizer que um verso canta é falar por imagem”. Por mais que a letra e a melodia se integrem, não se pode dizer que a melodia existia antes que o compositor a tivesse escrito. Por isso, explica ele, é que é possível haver mais de uma melodia para um mesmo texto poético, e todas terem afinidade com ele, coisa que aconteceu, por exemplo, com Azulão, que foi escrita para uma melodia de Jaime Ovalle . Depois disso, o poema foi também musicado por Camargo Guarnieri e por Radamés Gnattali. A musicalidade subentendida .
Azulão – Jaime Ovalle e Manuel Bandeira com Os cantores de ébano
Alguns de seus poemas , ele conta, ganharam “indefinida ressonância” por serem textos de canções de Heitor Villa-Lobos, Francisco Mignone, Camargo Guarnieri, Radamés Gnattali, Jaime Ovalle, Lorenzo Fernandez. De três maneiras, Bandeira trabalhou com os músicos: ou eles escolhiam um poema já escrito, ou davam melodias para que ele colocasse a letra ou então pediam uma letra especial para depois ser musicada, como no caso da Letra para uma valsa romântica.
O Anjo da Guarda – Heitor Villa-Lobos, Manuel Bandeira, canta Maria Lúcia Godoy
Dona Janaína – Francisco Mignone/ Manuel Bandeira, com Maria Lúcia Godoy
Canção do mar – Lorenzo Hernandez, Manuel Bandeira
O texto de A Dança do Martelo, que faz parte das Bachianas n. 5 de Villa-Lobos, foi escrita para a melodia já criada por Villa:
Dança do Martelo – (Bachianas n.5) canta Maria Lucia Godoy
Sobre escrever o texto para uma melodia já existente, Bandeira diz o seguinte: “Esta tarefa de escrever texto para melodia já composta, coisa que fiz duas vezes para Ovalle e muitas vezes para Villa-Lobos, é de amargar. Pode suceder que depois de pronto o trabalho o compositor ensaia a música e diz: ‘Ah, você tem que mudar esta rima em i, porque a nota é agudíssima e fica muito difícil emiti-la nessa vogal’”.
Bandeira não considerava o trabalho de colocar letra numa música um trabalho de “poeta propriamente, não: nesse ofício costumo por a poesia de lado e a única coisa que procuro é achar as palavras que caiam bem no compasso e no sentimento da melodia. Palavras que, de certo modo, façam corpo com a melodia. Lidas independentemente da música, não valem nada, tanto que nunca pude aproveitar nada delas.”
“Não há nada no mundo de que eu goste mais do que de música”, disse Manuel Bandeira, e esse amor foi feliz, correspondido. A música o envolveu por todos os lados e se apresentou a ele de diversas maneiras: nas deliciosas crônicas, como lembrança e fonte de inspiração poética nas reminiscências da infância; como tema e motivo de sua poesia; como sonoridade e ritmo dos poemas; como texto que inspirou grandes compositores a compor melodias e também como música, nua, só som, a solicitar do poeta que a vestisse com sua palavra, que cobrisse seu corpo diáfano com o tecido precioso do sentido.
Modinha – Villa-Lobos e Jayme Ovalle/Manuel Bandeira com Maria Lucia Godoy