minha conta a revista fazer logout faça seu login assinaturas a revista
piauí jogos

    Paulo Carvalho em Santa Maria (RS): "O meu sentido na vida nos últimos nove anos tem sido lutar por justiça" Foto: Acervo pessoal

depoimento

“Não queremos vingança, só justiça”

Dez anos depois do incêndio na boate Kiss, pai de jovem morto mostra sua revolta com a anulação do julgamento

Paulo Carvalho | 10 ago 2022_15h19
A+ A- A

Na quarta-feira da semana passada (3), a 1ª Câmara Criminal do TJRS decidiu pela anulação do júri que havia condenado os quatro réus pelo incêndio da boate Kiss. A nulidade mais destacada foi referente ao sorteio dos jurados, que não ocorreu dentro do prazo estabelecido em lei. Com isso, os sócios da boate, Elissandro Callegaro Spohr e Mauro Londero Hoffmann, o vocalista da banda, Marcelo de Jesus dos Santos e o produtor do grupo musical, Luciano Bonilha Leão, foram soltos. Eles estavam presos desde dezembro do ano passado. Dois desembargadores, José Conrado Kurtz de Souza e Jayme Weingartner Neto, reconheceram as teses das defesas. O relator Manuel José Martinez Lucas não reconheceu as nulidades.

Para Paulo Carvalho, pai de vítima do incêndio da Boate Kiss, o alívio e a sensação de justiça com a condenação dos quatro réus sumiram assim que se soube da anulação do júri. Familiares foram pegos de surpresa com a decisão. O filho dele, Rafael, foi um dos 242 mortos no incêndio da Boate Kiss, em Santa Maria (RS), na noite de 27 de janeiro de 2013. Ele tinha acabado de completar 32 anos e estava visitando amigos na cidade gaúcha. A família é paulista. “O meu sentido na vida nos últimos nove anos é lutar para que tenha justiça – e que a morte do meu filho e de tantos outros jovens não tenha sido em vão”, diz.

Em depoimento a Amanda Gorziza

 

Da noite do incêndio que tirou a vida do meu filho e de outros 241 jovens até o julgamento dos quatro réus foram quase nove anos e meio. Houve muitas decepções nesse processo. Em junho de 2019, o STF decidiu que havia indícios graves de dolo eventual, ou seja, quando o réu não tinha a intenção de matar, mas tomou atitudes em que assumiu o risco. Após essa decisão, tivemos um alívio, pois pelo menos haveria o júri. Podiam até absolver os réus, mas a gente queria que tivesse o júri, que eles fossem julgados – e essa era a nossa grande luta. 

O júri aconteceu entre 1º e 10 de dezembro de 2021. Foi exemplar, determinado com muito cuidado e critério. Tudo o que os familiares e sobreviventes poderiam fazer para colaborar foi feito. A atenção da Justiça gaúcha e do tribunal foi louvável. Se preocuparam com tudo. Depois de dez dias, o júri decidiu pela condenação dos quatro réus, o que trouxe um alívio e uma paz aos familiares. A decisão foi um marco. Tivemos uma vida melhor depois da condenação, pois a justiça foi feita, além de concluir que a morte de tantos jovens não foi em vão. O mais importante é que conseguimos que eles fossem julgados. Já o grande erro deles foi nunca terem pedido desculpas às famílias e assumido o que fizeram.

Nove anos depois do incêndio, os advogados de defesa pediram a anulação do júri e acabaram conseguindo. A decisão nos deixou extremamente frustrados. Eu não esperava que anulassem o júri. Eu tinha uma apreensão porque os desembargadores do TJ sempre foram contra o julgamento. Eu achava que talvez fossem reduzir a pena dos réus, mas a decisão final me surpreendeu. Houve pedidos da defesa de anulação porque os familiares se manifestaram durante o júri, mas isso é uma crueldade. O que houve foram choros contidos e desmaios de familiares. 

É frustrante, mas não vamos parar, mesmo com a anulação do júri. A partir do momento que a justiça havia sido feita lá em dezembro, com a condenação dos réus, a Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM) se focou em outros assuntos, como o processo na Corte Interamericana de Direitos Humanos para que os entes públicos respondam pela omissão. Finalmente a Corte entendeu a admissibilidade da nossa petição e notificou o Estado brasileiro em 10 de fevereiro deste ano – e em 10 de junho o governo respondeu através do seu Ministério das Relações Exteriores. Agora nós estamos aguardando os próximos passos. Começamos a encaminhar o memorial que será construído no local onde era a boate Kiss e também fizemos seminários para prevenção de incêndios. Fomos pegos de surpresa com essa anulação.

Nós vamos recorrer da anulação do julgamento. Na verdade, já estamos recorrendo através do Ministério Público e vamos aguardar que se faça o mesmo que foi feito antes. No máximo, vamos a novo julgamento. Vai ter mais sofrimento? Infelizmente vai. Que injustiça é essa que o júri, da forma detalhada com que foi feito, tem que ser anulado por detalhes? Agora vamos recorrer e certamente a justiça vai acabar sendo feita. Existe a possibilidade de recorrer no TJ estadual, mas também já foi encaminhado ao STF. No último caso, vai ter outro júri. É revoltante, pois foi um julgamento tão longo e difícil para os pais das vítimas e os sobreviventes. 

O impacto dessa anulação nos grupos de familiares de vítimas e sobreviventes foi muito pesado. Nos grupos, estamos tentando mostrar que a força do amor que temos pelos nossos filhos continua presente. Uma coisa que deixou todos revoltados foi dizerem que os familiares queriam vingança. Como assim? Os pais querem vingança depois de nove anos aguardando o julgamento? Os pais querem vingança sempre respeitando as decisões feitas pelo Tribunal de Justiça? Essa justiça é uma vergonha. Não há. 

Quando saiu da prisão nesta quarta-feira, Luciano Bonilha, que comprou o artefato luminoso que causou o incêndio, declarou que a condenação foi uma tentativa de vingança. A declaração dele revoltou muito a nós, familiares. Estamos defendendo que a justiça seja feita e estão falando que nós queremos vingança. 

Isso vai ser só um hiato, um breve intervalo, mas a justiça será feita, ou com um novo julgamento ou com a anulação do STF. De alguma forma, a gente sabe que isso vai ter um fim, que espera-se ser o melhor possível – e que ajude para que não tenha sido em vão. Precisamos exaltar o sacrifício desses jovens, como o meu filho, que voltou para dentro da boate para salvar vidas, como outros jovens que voltaram para salvar amigos e morreram – isso dói até hoje. Eles não se detiveram diante do fogo. Esses jovens precisam ser homenageados adequadamente pela sociedade e pela Justiça. Essas mortes não podem ter sido em vão. 

Como que a gente pode entender essa justiça que trata com essa frieza, olhando os detalhes técnicos do julgamento, do tempo, que não têm interferência nenhuma no fato em si, que é a morte dessas 242 pessoas, a maioria jovens. Muitos deles tiveram o sacrifício de suas próprias vidas e que deixaram mais de seiscentos sobreviventes. Não é só uma esperança, é uma convicção de que haverá justiça. Pena que poderia ter sido há muito tempo. O meu sentido na vida nos últimos nove anos tem sido lutar para que tenha justiça. Que seja muito claro que a punição é justa e que tem que ser dado o exemplo para que outras tragédias como essa não ocorram.

Assine nossa newsletter

Toda sexta-feira enviaremos uma seleção de conteúdos em destaque na piauí