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questões da civilização

Nas aldeias, memórias que a Covid leva embora

Estudo mostra que, entre indígenas, contaminação é 84% acima da média nacional; principais vítimas são idosos, guardiões da história de seus povos

Fabio Pontes | 26 jun 2020_17h14
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Ainda era março quando os puyanawas passaram a corrente na porteira da estrada de terra batida que dá acesso às suas aldeias, no município de Mâncio Lima, extremo Oeste do Acre. O ato, no dia 25 de março, foi registrado em vídeo e espalhado nas redes sociais para que todos soubessem: a partir daquele momento estava proibida a entrada de não moradores no território puyanawa. Foi a medida encontrada pelas lideranças para proteger a comunidade contra a pandemia de Covid-19,  àquela altura muito longe da realidade dos povos indígenas da Amazônia. Muitos, talvez, nem acreditassem que o vírus surgido do outro lado do mundo pudesse chegar a locais tão distantes e remotos quanto suas aldeias. 

Três meses depois, o coronavírus não só chegou às terras indígenas do Brasil como representa séria ameaça à sobrevivência dessas populações, já bastante fragilizadas nos últimos anos – em especial após a eleição de Jair Bolsonaro – com discursos e práticas que colocam em risco a segurança de seus territórios. Os Puyanawa veem suas terras ameaçadas pelo projeto de extensão da rodovia BR-364 entre o Brasil e o Peru, defendida por políticos locais e cujo traçado corta a Terra Indígena Poyanawa. (O nome da terra é escrito com O por um erro de registro quando de sua criação, em 2001.) 

Como mata principalmente idosos, a Covid-19 acaba levando consigo personagens históricos das aldeias, os mais velhos, que servem de memória para seus povos. Em culturas sem tradição escrita, são eles os guardiões da história. Mário Cordeiro de Lima, o Mário Puyanawa, de 77 anos, era um deles, patriarca de um povo que por muito pouco não foi extinto após o contato com o homem branco a partir do início do século passado, quando imensas áreas da Floresta Amazônica foram transformadas em seringais para a exploração do látex. Mário Puyanawa sobreviveu àqueles tempos de doenças trazidas pelos brancos e escravização dos índios para trabalhar nos seringais. Na velhice, não resistiu à Covid, depois de lutar contra a doença por quinze dias. Foi para a UTI e de lá recebeu alta para a enfermaria. O quadro se agravou, e ele voltou para o tratamento intensivo. Acabou morrendo em 20 de junho no Hospital do Juruá, em Cruzeiro do Sul.

Estudo feito pelo Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) em parceria com a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) aponta que, entre as comunidades indígenas da Amazônia, a taxa de contaminação pelo coronavírus por 100 mil habitantes é 84% acima da média nacional; a mortalidade é 150%. A taxa de letalidade, calculada levando em conta o número de infectados pelo de óbitos, é de 6,8% entre os indígenas amazônidas; no Brasil ela é de 5%, e de 4,5% no Norte. 

Os dados analisados são referentes aos casos registrados entre 19 de março e 14 de junho. Para os povos indígenas, outro problema é a contabilidade nos registros oficiais de testados positivos e de óbitos. Se entre a população em geral há uma elevada subnotificação, entre os indígenas ela é ainda maior. Os dados oficiais do governo brasileiro são registrados pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), subordinada ao Ministério da Saúde, e consideram apenas casos detectados dentro das aldeias.  Desde 2004 o atendimento médico nas aldeias é de responsabilidade da Sesai, que administra os 34 distritos sanitários especiais indígenas, os Dseis, 25 deles na Amazônia Legal.

Indígenas que moram nas cidades ficam de fora das estatísticas de saúde da Sesai. Mas pelo menos 20% dos índios da Amazônia moram em centros urbanos, afirma o estudo do Ipam/Coiab com base nos dados do Censo 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que àquela época apontava uma população indígena de 817 mil pessoas no país; destes, 315 mil moravam nas cidades. 

Na Amazônia, o estudo do Ipam em parceria com a Coiab registrou, de 19 de março a 14 de junho, 3.662 indígenas infectados com Covid-19 e 249 mortes. Os dados da Sesai notificam 2.219 casos e 86 mortes. “Para uma avaliação do real nível de contaminação por Covid-19 entre os indígenas da Amazônia, nós utilizamos os dados disponibilizados pela Sesai e Coiab, excluindo-se a possibilidade de dupla contagem”, diz o estudo do Ipam.  “Para garantir que não haja dupla contagem em relação aos casos reportados pela Sesai, as informações divulgadas pela Coiab passam por uma checagem interna que compara os dados dos boletins emitidos pela Sesai com as informações repassadas pelas lideranças.”  Os dados da Coiab são levantados por lideranças em pontos focais espalhados por toda a região, que apuram as informações junto às aldeias e hospitais locais.

“Este estudo mostra o impacto na Amazônia e também serve de instrumento para direcionar medidas eficientes para o indígena, independentemente se está na cidade ou no território. Indígena é indígena em qualquer lugar. Esta subnotificação atrapalha nossas ações. O governo usa maquiagem, não fala a realidade pela qual o Brasil está passando”, diz Nara Baré, liderança de Manaus e coordenadora-geral da Coiab. 

Durante a epidemia de Covid-19, o Amazonas chamou a atenção do Brasil pelo colapso de seu sistema de saúde superlotado com pessoas infectadas. Entre os povos indígenas, o mais atingido foi o Kokama, na região do Alto Solimões, na tríplice fronteira com o Peru e a Colômbia. Como a maior parte dos infectados e mortos morava em Tabatinga, os casos não eram registrados pelo Dsei Alto Solimões. “Apesar de a gente ter tido no Amazonas, aqui em Manaus, a primeira ala exclusiva para indígenas num hospital, isso se deu apenas depois de termos perdido muitas vidas e após a reivindicação de três mulheres na visita do anterior ministro da Saúde [Nelson Teich]. Não era preciso perder vidas para ter direito ao que é nosso”, afirmou Nara Baré à piauí. Levantamento feito pela Transparência Brasil mostrou que a Fundação Nacional do Índio (Funai) aplicou menos da metade (39%) dos 13 milhões de reais que deveriam ser usados nas ações de proteção aos povos indígenas contra os efeitos da pandemia do novo coronavírus. 

 

Ninawa Huni Kuin nasceu na aldeia Mãe Haduá Biri, na Terra Indígena Katukina/Kaxinawá, no município de Feijó, no Acre. Hoje mora em Rio Branco, a capital, e está se recuperando da Covid-19. Foi infectado quando se recuperava de uma cirurgia. “Não tive boa experiência com a Covid-19. Debilitou bastante. São reações bem ruins no corpo, tem momento em que a gente pensa em desesperar. Graças a Deus em primeiro lugar, e depois às nossas medicinas, tomei muito chá caseiro, banho com medicina [natural] e também fiz o tratamento ambulatorial, e melhorei”, conta Ninawa. 

Os Huni Kuin – também chamados de Kaxinawá – são 60% dos cerca de 23 mil indígenas do Acre. Muitos trocaram as aldeias pelas cidades para terminar os estudos ou trabalhar. Como foi infectado na capital, o teste positivo de Ninawa não foi para os registros da Sesai, mas da Secretaria Estadual de Saúde, que não faz distinção entre quem é ou não indígena em seu boletim epidemiológico. E assim ocorre em todos os nove estados da Amazônia Legal.   

A Coiab criou uma espécie de força-tarefa composta por lideranças e profissionais de saúde indígena para fazer seu próprio levantamento. Em todo o país, os dados da Sesai apontavam (até o dia 25 de junho) 5.093 casos confirmados de Covid-19 entre indígenas aldeados, com 129 mortes. O balanço da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) tem outro resultado: 7.208 infectados e 332 óbitos, com 110 diferentes etnias afetadas. 

Amâncio Ikô Munduruku, de 59 anos, era professor na aldeia Praia do Mangue, na reserva indígena de mesmo nome, no município de Itaituba, Sudoeste do Pará.  A aldeia está localizada bem próxima à sede urbana do município, a dez minutos de viagem de barco pelo Rio Tapajós ou pela estrada.  Até então vista como vantagem, por causa do acesso aos serviços da cidade, a vizinhança com o centro urbano agora se revela perigosa por causa do coronavírus. Na região Norte, o Pará é o estado com o maior número de casos e mortes pela Covid-19.

Após sentir os primeiros sintomas da doença, Amâncio procurou a unidade de saúde referência em Itaituba. O teste deu positivo, e ele iniciou o tratamento. Estava no grupo de risco por ter pneumonia. À medida que os dias passavam, seu quadro clínico se agravava, necessitando de tratamento intensivo. Assim como a maioria das cidades do interior da Amazônia, Itaituba não conta com hospital de média e alta complexidade. A solução foi transferir o professor para a Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) em um hospital de Belém, onde ele acabou morrendo. Segundo Karo Munduruku, liderança da aldeia Praia do Mangue, doze pessoas de seu povo já morreram vítimas da Covid-19, a maioria idosos. Entre eles, Arcelino Dace Munduruku, nascido em 1942 e um dos personagens mais importantes de seu povo, uma espécie de memória viva do povo Munduruku. “A gente nunca imaginou que ia passar por isso. Quando alguns estudiosos, algumas lideranças nossas, diziam que com isso poderia ocorrer, até um genocídio em vários povos indígenas, eu nunca pensei que pudesse acontecer, e acontecer justamente na aldeia onde a gente mora. Algo que começou lá do outro lado do mundo chegou à nossa aldeia. O nosso povo está assustado”, diz Karo Munduruku. De acordo com ele, até dentro das aldeias as pessoas fazem uso de máscaras e seguem as medidas de distanciamento social. A principal preocupação é proteger os mais idosos.

Os Munduruku também são alvo de ações que favorecem o contágio do coronavírus nas aldeias: a invasão das terras indígenas por garimpeiros, madeireiros e grileiros de terras públicas. De acordo com o estudo do Ipam/Coiab, a invasão das terras indígenas é um dos principais vetores externos para a chegada do coronavírus nestas comunidades. O relatório afirma que as duas terras indígenas mais ameaçadas pelo garimpo são a Yanomami e a Raposa Serra do Sol, que abrangem áreas do norte do Amazonas e Roraima. No levantamento da Coiab, os Dseis responsáveis pelos dois territórios (Yanomami e Leste de Roraima) estão entre os que apresentam a maior quantidade de infectados e mortes.  

“Os achados em relação à exposição das populações indígenas a veículos de contaminação externa por meio dos indicadores de desmatamento, presença de garimpo e grilagem, além de registros de Cadastro Ambiental Rural (CAR) dentro de TIs, indicam que todos os DSEIs amazônicos sofrem algum grau de ameaça”, conclui a pesquisa. Entre os dez Dseis com mais casos da Covid-19 está o do Alto Rio Purus, responsável pela saúde indígena em aldeias do Leste do Acre, uma parte do Sul do Amazonas e o Noroeste de Rondônia. Entre os povos atendidos estão os Huni Kuin, os Madijá (Kulina) e os Jaminawa, todos moradores da Terra Indígena Alto Rio Purus, localizada já na fronteira com o Peru. São mais de 4 mil pessoas espalhadas por 46 aldeias. 

Destas três etnias, a mais vulnerável é a Madijá, e um dos fatores de risco para essa população é a baixa imunidade causada por uma dieta alimentar pobre em nutrientes. Entre os madijás foram registradas duas mortes de bebês, uma por Covid e outra desnutrição agravada por eventual contaminação pelo coronavírus. A primeira criança morreu em um hospital de Rio Branco. A mãe foi colocada em quarentena na Casa de Saúde Indígena (Casai) antes de regressar para a aldeia. Os Madijá mantêm pouco contato com os não indígenas, o que reduz a capacidade de seus organismos produzirem anticorpos contra a “civilização”. Como a maior parte deles também não fala português, tem mais dificuldades para se informar sobre a pandemia.

O Acre registra mais de 12 mil infectados pelo coronavírus e 335 mortes. O estado tem uma população indígena estimada em 23 mil pessoas. São quinze diferentes povos, além dos isolados e não identificados e um de recente contato. Dois distritos sanitários são responsáveis pela assistência médica: o Dsei Alto Rio Purus e o Dsei Alto Rio Juruá, que concentra o maior número de indígenas, incluindo os de recente contato.     

Em isolamento voluntário desde março, os Ashaninka são um dos poucos povos do Acre que ainda não têm registro de Covid-19. O distanciamento vem sendo seguido à risca; a ordem das lideranças é para ninguém sair e ninguém entrar. Como eles contam com uma produção de alimentos em sistema agroflorestal, além de fartura em caça e pesca, não há a necessidade de ir até a cidade comprar alimentos. Os Ashaninka moram na Terra Indígena Kampa do Rio Amônia, em Marechal Thaumaturgo, município isolado do Acre de 18.867 habitantes, acessível só por via aérea ou fluvial. Esse isolamento geográfico não impediu a cidade –  administrada por um prefeito de origem Ashaninka – de ver o coronavírus chegar através dos portos. Hoje a cidade tem 156 casos confirmados da doença.

Isso levou os Ashaninka a reforçarem o autoisolamento nas aldeias do Rio Amônia.  “Fechamos nosso território para não circular gente, nem saindo nem entrando, para que essa doença não chegue à nossa comunidade. Esse é o melhor caminho, é o isolamento. Estamos tentando levar uma vida normal e trabalhando para proteger o território”, afirmou Francisco Piyãko, liderança dos Ashaninka. “A gente poderia estar enfrentando só o coronavírus, e que todos estivessem unidos em torno dessa questão, mas a gente precisa lidar com as outras ameaças”, diz ele.

Também em isolamento há mais de cem dias, os Yawanawa construíram uma cerca no Rio Gregório para impedir o vai e vém de embarcações. A medida foi adotada pelas lideranças das duas últimas aldeias subindo o rio: a Sagrada e a Nova Esperança. Aquelas que não adotaram esse lockdown da floresta já tiveram casos positivos da Covid-19. A Terra Indígena do Rio Gregório fica localizada no município de Tarauacá. “A gente tem tomado todos os cuidados, seguido todas as orientações. Conversado com nossos fornecedores [de alimentos] para entregar tudo higienizado. Vai só uma pessoa buscar e quando chega higieniza de novo. Estou aqui há mais de cem dias sem sair da aldeia”, disse o cacique da aldeia Sagrada Biraci Yawanawa, o Bira, em entrevista à piauí por mensagem de voz do WhatsApp das cabeceiras do Rio Gregório. 

Procurada, a Secretaria Especial de Saúde Indígena informou que não há subnotificação de contaminados e de mortes de indígenas por Covid-19 no Brasil, pelo fato de os casos ocorridos entre aqueles que moram nas cidades serem registrados pelas Secretarias Municipais e Estaduais de Saúde. Segundo a Sesai, mesmo antes de a Organização Mundial da Saúde declarar situação de pandemia, seus técnicos elaboraram documentos para orientar povos indígenas, gestores e colaboradores sobre medidas de prevenção e de atendimento. O órgão do Ministério da Saúde informou que cada um dos 34 distritos sanitários tem seu plano de contingência, levando em consideração as “diferentes situações de enfrentamento da Covid-19, respeitando as características de cada povo e suas necessidades específicas”. “Uma das principais orientações das Equipes de Saúde Indígena é justamente para que os indígenas permaneçam em suas aldeias e não recebam visitas externas”, diz nota enviada à reportagem, que também destaca a compra de equipamentos de proteção individual para os profissionais dos Dseis.

A piauí também procurou a Funai para falar sobre quais medidas adota para garantir a proteção das terras indígenas, coibindo a invasão por garimpeiros e madeireiros. O órgão disse que reforçou as ações de monitoramento e vigilância territorial, “por meio de suas unidades descentralizadas, e em parceria junto a órgãos governamentais, ambientais e de segurança pública competentes”.  Com isso, completa, é possível articular operações de fiscalização e seguranças dos territórios tradicionais. “A Funai realiza operações em parceria com outros órgãos de segurança e fiscalização ambiental, como os Batalhões de Polícia Militar Ambiental, IBAMA e ICMBio, com a finalidade de identificar caçadores, pescadores e outros exploradores. Outra ação realizada é a fixação de placas indicativas do perímetro das Terras Indígenas em pontos estratégicos e necessários.” Outra medida foi suspender todas as autorizações para a entrada de não indígenas em terras indígenas.  

Quanto à aplicação de recursos para reduzir os impactos da Covid-19 sobre a população indígena, a Funai diz já investiu 22,7 milhões de reais em medidas de combate ao novo coronavírus entre as comunidades de todo o país.  Afirmou que trabalha pela permanência dos indígenas dentro das aldeias para evitar o contágio e que já distribuiu 44 mil cestas básicas e 30 mil kits de higiene, e mais 126 mil cestas ainda serão entregues.

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