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    Jussielson Silva, coordenador regional da Funai no nordeste de Mato Grosso, ao lado de Bolsonaro. Crédito: Reprodução de redes sociais

anais do descalabro

Bastidores da negociata que levou o chefe da Funai à prisão

Em vez de combater arrendamento ilegal em área xavante, militar triplicou cobrança – e embolsou sua parte

Allan de Abreu | 31 mar 2022_05h00
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O militar Jussielson Gonçalves Silva não estava para brincadeira naquela manhã de fevereiro último. Irritado, levantou-se da cadeira e colocou a pistola Glock na cintura. “Não vou ser preso tão fácil”, disse aos dois policiais federais na sala acanhada da Fundação Nacional do Índio (Funai) em Ribeirão Cascalheira, nordeste de Mato Grosso, onde ele ocupava o posto de coordenador regional. Atrás de Jussielson Silva, Jair Bolsonaro parecia observar tudo – o fuzileiro naval aposentado fez questão de colocar na parede um quadro do presidente. Nas redes sociais do coordenador regional da Funai, há fotos de ambos ao lado de uma caveira estilizada.

Silva vinha sendo pressionado pela Polícia Federal a fornecer a relação de criadores de gado que desde 2017 arrendavam dois terços da terra xavante Marãiwatsédé, de 165 mil hectares. Embora ilegais, os arrendamentos dos pastos eram um segredo de polichinelo na Funai, inclusive para o presidente do órgão, Marcelo Augusto Xavier da Silva, que atuara como delegado da PF na região no início dos anos 2010. Na sala de Silva, a poucos metros da foto de Bolsonaro, os policiais encontraram uma planilha na parede com a relação dos arrendatários e os valores pagos por mês.

Operação da PF na sala de Jussielson Silva; na parede, do lado esquerdo, quadro com separações em verde traz os nomes dos arrendatários da terra xavante e o valor mensal pago – Crédito: Polícia Federal

 

Marcelo Augusto da Silva, presidente da Funai, também ficou irritado ao saber do interesse do delegado da Polícia Federal Mário Sérgio Ribeiro de Oliveira em obter a lista dos arrendatários. Em conversa interceptada com autorização judicial, o presidente da Funai mostra seu descontentamento: “Parece que tem uma coisa muito estranha naquela delegacia lá que nós precisamos saber”, disse ele a Jussielson da Silva, em ligação ocorrida horas após a visita dos dois agentes da PF. À dupla de policiais, pouco antes de colocar a pistola na cintura, Jussielson da Silva disse ter informado o seu chefe em Brasília sobre o pedido do delegado e deu seu carteiraço: disse que o caso chegaria até o general Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) que, segundo o ex-fuzileiro, foi quem o indicou para o posto (a assessoria do GSI nega).

Jussielson da Silva foi nomeado para a coordenação regional da Funai em março de 2020, quando os xavantes da Marãiwatsédé já arrendavam grandes áreas de pastagens para criadores de gado a 8 reais por animal, o que gerava 250 mil reais mensais para os índios, dinheiro controlado pelo cacique Damião Paridzane. Pela lei, os indígenas não podem arrendar suas terras, mas Jussielson da Silva, em vez de fiscalizar a área e retirar os arrendatários para criar projetos alternativos de renda para os xavantes (incluindo a regeneração das áreas desmatadas), resolveu aproveitar a oportunidade e preferiu potencializar a arrecadação dos xavantes – e desviar parte dos recursos para si mesmo, segundo a PF.

O primeiro passo foi aumentar o valor de 8 para 30 reais por cabeça (ainda abaixo do valor de mercado, que na região gira em torno de 60 reais). Em seguida, passou a expulsar os arrendatários inadimplentes com o auxílio de dois amigos dele do Amazonas: o sargento da Polícia Militar Gerard Maxmiliano Souza, afastado da corporação por licença médica e dono de uma escola de tiro em Ribeirão Cascalheira, e Enoque Bento de Souza, expulso da PM amazonense em 2009 depois de ser condenado pela Justiça a quinze anos de prisão por tráfico de drogas, extorsão, tortura e posse ilegal de arma de fogo.

Com o aumento nas taxas e a pressão sobre os pecuaristas, o cacique Paridzane passou a receber 899 mil reais por mês – dinheiro, em tese, distribuído para as treze aldeias da área indígena. Mas, de acordo com a Polícia Federal, Jussielson da Silva e seus comparsas, Gerard Souza e Enoque de Souza, também garantiram o seu quinhão, na forma de propina: em setembro de 2021, um dos arrendatários depositou 50 mil reais na conta da mulher de Gerard, Thaiana Ribeiro Viana – no comprovante da transferência bancária, consta a palavra “arrendamento”. Cinco meses mais tarde, Thaiana Viana, uma despachante de armas, foi nomeada pelo presidente da Funai para o cargo de “chefe de divisão técnica” do órgão em Canarana, Mato Grosso.

Além de desviarem parte do dinheiro do arrendamento das terras indígenas, o trio – Jussielson da Silva e os dois Souza – começou a cobrar uma taxa de 5 reais por hectare para, segundo eles, atualizar as medições das áreas arrendadas. Somente um dos pecuaristas disse em depoimento à PF ter pago 175 mil reais para Viana. Ao saber dessas cobranças, cacique Paridzane enfureceu-se. “Você sabe que não é trabalho da Funai. É bandido, ladrão, que veio pra Funai. […] E é militar, né?”, disse o índio a um dos arrendatários, em conversa captada pela PF. Ao ser cobrado pelo cacique, Jussielson da Silva tentou contemporizar: “Tem gente que tá com muito pasto que tá pagando pouco. A gente vai medir pra atualizar esse valor. […] Porque tem gente roubando o senhor, cacique.”

Em outubro, reportagem da piauí mostrou que outro coordenador da Funai no Sul do Pará, também militar, criou uma base em uma das entradas da reserva Menkragnoti, dos caiapós, que em pouco tempo se tornou um ponto de apoio ao garimpo dentro da terra indígena.

A relação dos xavantes com a terra Marãiwatsédé é marcada por violência e injustiças. Em 1966, os índios foram expulsos da área pelo pecuarista e grileiro de terras Ariosto da Riva, dando origem ao maior latifúndio do Brasil na época: a fazenda Suiá-Missu, com 1,7 milhão de hectares. Desterrados, os xavantes passaram a viver em outras reservas na Amazônia, longe dos seus costumes. Quinze anos mais tarde, a fazenda foi adquirida pela petrolífera italiana Agip. Nessa época, cacique Damião Paridzane começou a luta para reconquistar a terra indígena, que culminou na devolução da área para os xavantes, durante a Eco 92 (Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, no Rio de Janeiro). Em 1998, o então presidente Fernando Henrique Cardoso homologou a terra indígena, que na época já estava em sua maior parte ocupada por posseiros. Somente em 2012, após seguidos protestos dos xavantes e uma longa batalha judicial, a Polícia Federal e a Funai iniciaram a expulsão dos invasores e os indígenas recuperaram o controle da terra.

Mas os 46 anos de exílio dos xavantes causaram graves danos ambientais à terra Marãiwatsédé, que, ironicamente, significa “mata fechada” na língua xavante. Segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), 75% da reserva está coberta por pastagens, sem resquícios de floresta – de longe, é a terra indígena mais desmatada do país. A devastação, segundo o Ministério Público Federal, afetou profundamente a sobrevivência dos xavantes. Sem nenhum auxílio do governo federal, a partir de 2017 os indígenas, liderados por Paridzane, começaram os arrendamentos. “São 4 mil índios que precisam sobreviver. Eles iam comer capim?”, questiona o advogado do cacique, Lelis Bento de Resende (de acordo com o Instituto Socioambiental, há 781 indígenas no local). Em 2021, o MPF ingressou com ação civil pública na Justiça exigindo que a Funai e o governo federal expulsassem os arrendatários da reserva e implantassem políticas alternativas de geração de renda e regeneração da mata dentro da Marãiwatsédé.

Não era a primeira vez que Paridzane se envolvia em polêmicas. Em 2016, o cacique e um servidor da Funai foram indiciados pela Polícia Federal ao pedirem propina de 20 mil reais (valor posteriormente reduzido para 4 mil) para liberarem um caminhão que havia sido furtado no município mato-grossense de Água Boa e levado para o interior da reserva. O MPF arquivou o caso sem denunciar o cacique e o servidor.

Na manhã de 17 de março, Jussielson e sua dupla de Souzas foram presos preventivamente pela PF, por determinação da juíza Danila Gonçalves de Almeida, da Vara Federal de Barra do Garças, Mato Grosso, na Operação Res Capta (em latim, “coisa tomada”). A juíza também deu prazo de 45 dias para que todos os arrendatários deixem a terra indígena e proibiu o cacique Paridzane de arrendar novamente áreas dentro da reserva (a PF chegou a pedir a prisão do indígena, o que foi negado pela magistrada). Os três detidos foram indiciados por corrupção passiva e por desmatar florestas em áreas públicas – este último crime também foi imputado ao cacique xavante. Thaiana Ribeiro Viana foi indiciada por corrupção passiva.

A defesa do cacique admite o arrendamento das terras e alega que era a única maneira de sobrevivência das treze aldeias da Marãiwatsédé. “Damião Paridzane distribuía o dinheiro entre todas as aldeias para a compra de alimentos e outros itens de sobrevivência. Nada ficava com ele”, diz. A defesa dos três presos e de Viana não quis se manifestar à piauí. Em depoimento à PF, Jussielson da Silva negou ter recebido propina dos pecuaristas que arrendam as terras dos xavantes e acusou o cacique de ficar com a maior parte do dinheiro pago pelos arrendatários para si, sem dividir com a tribo. Em nota, a Funai informou que Jussielson da Silva, o coordenador, será afastado do cargo e que “não coaduna com nenhum tipo de conduta ilícita e está à disposição das autoridades policiais para colaborar com as investigações”.

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