O modelo brasileiro de policiamento é guiado por uma profecia que sempre se cumpre: a do negro criminoso. Levantamento produzido pelo Grupo de Estudos sobre Violência e Administração de Conflitos da Universidade Federal de São Carlos aponta que, em São Paulo, negros têm entre 2,2 e 2,4 vezes mais chances de serem presos em flagrante do que brancos. Embora os negros correspondam a 37% da população do estado e os brancos a 62%, as abordagens policiais não obedecem a essa proporcionalidade. Por quê? Será que os negros cometem mais crimes que os brancos? Não. A explicação para isso é simples: negros são o alvo preferencial dos interrogatórios e revistas policiais. Para as corporações civis e militares do país ainda vale o preconceituoso ditado popular: “Branco correndo é atleta. Negro correndo é ladrão.”
No Brasil, o fazer da polícia se orienta muito mais pela subcultura de rua — conjunto de valores, conceitos e práticas passados dos policiais mais experientes aos iniciantes — do que por quaisquer protocolos. Segundo essa subcultura, o criminoso tem idade, cor, gírias, vestimenta, comportamentos e endereço pré-definidos. A alcunha de suspeito recai preferencialmente sobre corpos jovens, pobres, negros e periféricos, fazendo com que pessoas desse perfil sejam abordadas com uma frequência bem maior do que as de outros perfis. Em consequência, acabam sendo mais presas em flagrante.
A vitória de Joe Biden nos Estados Unidos com uma clara bandeira antirracista mostra que o mundo está mudando, ainda que não o suficiente. As polícias brasileiras também precisam se atualizar. A função delas é proteger a vida e a sociedade em vez de ser as fiadoras armadas do racismo brasileiro. A despeito da grande carga de direitos humanos ministrada nas aulas das academias de polícia, a discussão de raça e racismo é quase inexistente.
A lógica de policiamento ainda privilegia abordagens e “confrontos”, em detrimento das chamadas operações de inteligência, o que leva as polícias brasileiras a matarem cada vez mais, independentemente de aumentos ou reduções no total de mortes violentas intencionais. Não há proporcionalidade no uso da força letal.
Utilizamos a palavra confronto entre aspas porque se trata, em muitos casos, de uma definição empregada por policiais que não corresponde àquilo que realmente aconteceu. Conforme pesquisa de 2017 realizada pela Ouvidoria da Polícia do Estado de São Paulo, 74% das mortes causadas por agentes paulistas apresentavam indícios de uso excessivo da força. Em 26% dos homicídios praticados por policiais, nem sequer houve conflito armado. Mesmo assim, a narrativa muitas vezes ilegítima dos “confrontos” serve para justificar oficialmente a altíssima letalidade das corporações. São Paulo tem hoje a segunda maior participação da polícia no total de mortes violentas intencionais ocorridas no país. Fica atrás somente do Rio de Janeiro, mostram os dados do 14º Anuário Brasileiro de Segurança Pública.
Vale salientar que os indicadores de produtividade policial continuam muito mais voltados para a realização de abordagens e apreensões, o que sugere racismo institucional, pois os alvos dessas ações, voltamos a enfatizar, são jovens majoritariamente negros e pobres. Além disso, a polícia vem demonstrando pouca abertura para discutir tais abordagens e apreensões de maneira científica e com dados concretos.
Recentemente, circularam nas redes sociais vídeos de oficiais brancos da PM de São Paulo negando que a corporação seja racista. Isso é mais um indício da dificuldade que as polícias brasileiras têm para reconhecer o seu racismo institucional e combatê-lo. Por que pouquíssimos coronéis e delegados de classe especial são negros? E por que há um número maior de negros em posições subalternas? Quem comanda a segurança pública no Brasil são, quase sempre, homens brancos de meia-idade.
Apesar de evidências consistentes, que vão se acumulando ao longo dos anos, as polícias preferem fingir neutralidade em relação ao racismo. Tais escolhas nada fazem além de manter em funcionamento as engrenagens da discriminação. O Brasil opta por um modelo de investimento em segurança pública que não valoriza políticas de prevenção à violência e não foca nos grupos mais vulneráveis, sejam os jovens negros das periferias, sejam os próprios policiais negros. O resultado é que, de acordo com o Atlas da Violência 2020, as taxas de homicídios de negros aumentaram 11,5% no país durante os últimos dez anos enquanto as de não negros caíram 12,9%. Em 2018, por exemplo, para cada não negro assasinado, 2,7 negros foram mortos. Analogamente, em 2019, a taxa nacional de negros mortos pela polícia (4,2) foi mais que o dobro da taxa de brancos (1,5), como indica o 14º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Ainda segundo o anuário, o efetivo das polícias é majoritariamente branco (53%), apesar de a maioria dos policiais assassinados ser negra (65,1%).
Já passou da hora de as corporações romperem com o tabu em torno do próprio racismo e patrocinarem debates internos sobre o assunto a fim de superar o problema. É preciso inserir a questão da raça na formação dos policiais e promover a diversidade no comando das instituições. Não dá mais para que apenas homens brancos cheguem ao topo da carreira.
Em São Paulo, algumas iniciativas nesse sentido estão começando a surgir tanto na Polícia Civil quanto na Militar. Mas a postura tende a ser a de defender as instituições e não a de realmente se engajar em discussões que almejem alterar as práticas cotidianas. A superação do racismo das polícias brasileiras exige uma urgente mudança de mentalidade, com debates abertos e francos, livres do dogmatismo e do corporativismo que reinam hoje.