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Nelson, Adoniran, Lupicínio: Os Três Trágicos

Três compositores com obras muito distintas, que no entanto criaram seus sambas tendo por motor a tragédia do cotidiano.

Túlio Ceci Villaça | 30 set 2016_19h12
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POR TÚLIO CECI VILLAÇA
a convite de Paulo da Costa e Silva

Lupicínio Rodrigues, Adoniran Barbosa, Nelson Cavaquinho – um gaúcho, um paulista, um carioca. Três compositores com obras muito distintas, que no entanto criaram seus sambas tendo por motor a tragédia do cotidiano.

Na tragédia, o herói é confrontado com o destino: ele se envolve em situações das quais não pode escapar e as enfrenta com nobreza. Édipo, por exemplo, mata o pai e casa com a mãe, que ao descobrir a verdade se suicida. Édipo fura os olhos e vaga cego até a morte.

Chico Rei, nascido Galanga, era rei e sumo sacerdote do deus Zambi-Apungo no Reino do Congo. Traficantes de escravos o capturam com toda a corte. A rainha Djalô e a filha, a princesa Itulo, são jogadas ao mar para aplacar a ira dos deuses da tempestade. No Brasil, depois de trabalhar nas minas, ele consegue comprar sua alforria e a do filho, bem como de todos os compatriotas.

A história de Chico Rei não tem comprovação histórica, provavelmente é uma lenda baseada na fusão e ampliação de diversas narrativas – um mito, como o de Édipo. A vida de Zumbi, Chica da Silva, Anastácia e mais tarde João Cândido, entre várias outras, tornaram-se representativas da população negra brasileira. A chegada do escravo africano foi, para além de uma tragédia coletiva, milhares e milhares de tragédias pessoais, heróis trágicos que enfrentaram seu destino.

A formação do samba também resulta do encontro de dois mundos: a fusão da modinha e do maxixe, a solução de compromisso entre o compasso musical europeu e a síncopa rítmica africana. O samba terá originalmente dois temas fundadores: o banzo, ou seja, a saudade da aldeia; e a crônica do cotidiano, esta frequentemente bem humorada. Um pé no passado, outro no presente, um na tristeza e um na alegria, como chegou a definir Vinícius de Moraes no Samba da bênção.

Lupicínio, Adoniran, Nelson Cavaquinho, cada um com uma relação muito particular com o samba, imprimiram sotaques muito diferentes a suas canções, que todavia se irmanam ao trazer o épico para o dia a dia, cantando o aspecto trágico do acontecimento ordinário.Em seus sambas, o homem comum, sem protagonizar peça de teatro ou notícia de jornal, enfrenta seu destino.

Desavisados costumam achar Adoniran apenas engraçado. Embora tenha seus sambas leves e divertidos, como o do Arnesto (e mesmo esse tem como tema um desencontro), o compositor decidiu basear sua escrita na fala popular paulistana, com todas suas nuances, indo na contramão de sambistas igualmente geniais como Cartola, que empregava uma linguagem rebuscada como forma de afirmação e legitimação. Adoniran escolhe o homem comum e o canta como tal, dando-lhe voz a ponto de assumir o personagem e passar a se confundir com ele.

Por exemplo, o “Joga as cascas pra lá” da famosíssima introdução de Saudosa maloca é enganoso, camufla a tristeza da canção. Esta é, nada menos, um samba sobre uma ação de despejo de três miseráveis. O destino atinge os protagonistas, cujo dilema é resistir ou aceitar – expresso no magistral verso “Matogrosso quis gritar”, nota mais aguda da canção, de uma dramaticidade que Elis Regina explora à perfeição.

Mas a Adoniran não interessa o questionamento social, mas sim o drama pessoal dos personagens. Após uma primeira parte em tessitura média, apresentando a situação, a execução do despejo ocorre cerca de dois tons acima. “Os homes tá com a razão”, diz o protagonista a Matogrosso, referindo-se mais aos cumpridores da ordem, de alguma forma miseráveis como eles, do que ao dono do terreno ou ao juiz. A resposta que dão ao infortúnio é a nobreza, ainda que à custa da própria desgraça.

Ela disse-me assim é simétrica ao Trem das onze de Adoniran – praticamente a mesma situação, o mesmo dilema: vou embora para casa ou passo a noite com a amada? Em Adoniran, a amada pede que o sujeito fique mas ele precisa ir; em Lupicínio, ela pede que o sujeito se vá mas ele fica. Em ambas, uma questão moral explícita implica sofrimento alheio: no Trem das onze, a mãe que não dormirá de preocupação; em Ela disse-me assim, a própria amante que acabará sacrificada.

O cruzamento do samba com o bolero aumentou muito a voltagem dramática da canção brasileira. Lupicínio abusa das vogais escandidas: “Vai emboraaaaa”, “Está na horaaaaaa”, e finalmente “E agoraaaaa?” – pouca sutileza do mestre da dor de cotovelo. Como uma fisgada no coração, a nota mais alta corresponde a “O remorso está me torturando”.

Ela disse-me assim é uma canção sobre a culpa. A tragédia (ou seu prenúncio, pois a cena de flagrante de adultério poderia facilmente evoluir para a de crime passional) acontece por um erro voluntário, que consiste em se deixar apanhar pelo marido traído – não é a traição que está em jogo. O dilema do protagonista diz respeito apenas a sua ética, e ele acaba sendo amoral. A nobreza que encarna é a do arrependimento, e mesmo assim é relativa: sua decisão prejudicou a amada, mas ele nem se importou com o marido.Tanto o amante negligente de Lupicínio como o morador de Jaçanã de Adoniran são desventurados, mas este último segue à risca o padrão da tragédia clássica, enquanto o primeiro o desafia – e perde.

Não faltam a Nelson sambas sobre situações específicas, como A flor e o espinho, parceria com Guilherme de Brito, em que a inexorabilidade do destino é explicitada: ele é o espinho, ela é a flor, e “O sol não pode viver perto da lua”. Mas Luz negra (ao lado de Esses moços, de Lupicínio, em que a tempestade é vista em retrospectiva) é uma espécie de tratado teórico trágico, monólogo sintético que define a síntese realizada pelos três autores.

A canção já começa dramática, partindo da nota mais aguda, que então desce por semitons – e na primeira parte vai ladeira abaixo, até o “E não consigo achar ninguém”, que fecha na nota mais grave. Todos os versos terminam em frases descendentes, com a única exceção do último, em que a melodia plana serve para reforçar a convicção de um melancólico: “Estou chegando ao fim”. Já na segunda parte o movimento se inverte, tornando-se ascendente – passa de dominante em dominante, aumentando a tensão dos versos cada vez mais dramáticos, até o golpe de mestre da evocação de um motivo caro a Nelson, o do palhaço triste (que também o inspirou em ao menos mais uma canção, Palhaço, feita com Oswaldo Martins e Washington Fernandes).

Mas toda a segunda seção de Luz negra já prepara a aparição da metáfora do palhaço. A própria letra, usando o jargão teatral, é uma metáfora, a começar pelo holofote que dá nome ao samba, pintando o cenário em que, afinal, o eu lírico representará um personagem, numa metalinguagem. A luz negra é o destino, único elemento com quem o protagonista contracena, e do qual não pode escapar.

A retomada da primeira parte é catártica, com a melodia ascendente da segunda conduzindo à primeira nota da primeira. Como na tragédia clássica, a catarse do sofrimento, elemento tradicional do samba  – o exemplo acabado é a genial Coração em desalinho, de Mauro Diniz e Ratinho, em que os versos finais “Não sei viver sem teu amor / Sozinho curto a minha dor” são cantados na mais absoluta exaltação –, cumpre  sua função, com a identificação entre espectador/ouvinte e personagem, e a purificação do público pelo sacrifício do herói.

Seja na Grécia antiga, na África, na saudade do passado perdido ou no lamento da desgraça, as obras desses três compositores, como em última instância todo samba, vêm nos lembrar que a fortuna não escolhe apenas os reis, ou que, de certa forma, em algum momento somos todos reis. O destino espreita cada um de nós na próxima esquina – ou, vá lá, no bar da esquina, onde o samba se esmera em cantar.

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