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    José Daniel Ortega Saavedra, presidente da Nicarágua Ilustração: Donají Márcial

aqui mando eu

Nem Covid nem oposição nem eleição

Na Nicarágua, regime de Ortega criou leis para prender opositores e demitiu médicos que criticaram gestão ineficiente do governo na pandemia

Wilfredo Miranda Aburto | 16 nov 2021_12h32
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Este conteúdo é parte da série “Aqui mando eu: democracias frágeis, políticas autoritárias”, projeto jornalístico dedicado a investigar expressões contemporâneas do autoritarismo na América Latina. O projeto é coordenado pela produtora mexicana Dromómanos, em parceria com o Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo (LAUT) e os seguintes veículos: El Universal (México), El Faro (El Salvador), Divergentes (Nicarágua), Cerosetenta (Colômbia), Efecto Cocuyo (Venezuela), revista piauí (Brasil) y La Pública (Chile). Os demais conteúdos podem ser acessados aqui

 

Pouco mais de três meses depois de ter começado a criticar o governo pela gestão ineficiente da pandemia, Carlos Quant foi expulso aos empurrões pelos seguranças do Hospital Manolo Morales. O infectologista, com mais de vinte anos de carreira no sistema público de saúde, foi um dos primeiros a denunciar a gravidade da Covid-19 e a negligência do Estado desde março de 2020. Suas afirmações baseavam-se na observação direta do que estava acontecendo nos dois hospitais onde trabalhava e nos relatos de colegas. Mas suas críticas não caíram nas graças do presidente Daniel Ortega e de sua vice – e esposa – Rosario Murillo. Naquele dia de junho, quando Quant pediu explicações sobre sua expulsão, a diretoria do hospital lhe entregou uma carta de demissão por “abandono de emprego” e nem sequer lhe deu tempo de recolher seus pertences.

Isso aconteceu durante o primeiro surto de Covid-19, quando os hospitais públicos e privados estavam abarrotados de infectados. Do necrotério do Hospital Alemão Nicaraguense, vazaram fotos e vídeos mostrando grandes grupos de cadáveres; nas ruas, cidadãos tentavam conseguir tubos de oxigênio numa busca tão desesperada quanto infrutífera; nos cemitérios, a procissão de caixões marchava noite e dia.

Em maio, pelo menos setecentos médicos publicaram cartas abertas exigindo mais ação do governo contra a pandemia. A porta-voz da Presidência, Rosario Murillo, declararia em seguida que esses médicos eram “terroristas da saúde” e “terroristas pandêmicos”. Muitos deles, como Quant, perderam seu emprego no serviço público.

“Cerca de quinze especialistas, eu incluído, foram demitidos por criticar a negligência do governo, enquanto outros foram forçados a alterar o diagnóstico de Covid-19 para outras causas”, lembra Carlos Quant. O infectologista – um dos poucos especialistas nessa área na Nicarágua – denunciou negligências do Ministério da Saúde (Minsa), como, por exemplo, não fornecer equipamentos de proteção aos profissionais de saúde sob a alegação de que “provocavam pânico na população”. Ele também denunciou a centralização e escassez de testes para rastrear o vírus: no início, o Minsa realizava apenas cinquenta testes de PCR por dia, num país de 6 milhões de habitantes. Nesse ritmo, levaria mais de três séculos para testar toda a população nicaraguense.

Além da incapacidade demonstrada no combate ao vírus, o governo sempre incentivou a população a ignorar o problema. A vice-presidente Murillo não fechou fronteiras nem escolas, e animou as pessoas a irem à praia, a shows, missas, festivais, maratonas, e chegou até mesmo a convocar, em março, uma marcha encabeçada por profissionais da saúde carregando cartazes com o lema: “Amor em tempos de Covid-19.”

O mundo sem coronavírus de Ortega e Murillo começou a desmoronar em abril, quando o casal convocou oitocentas atividades em massa sem medidas de proteção, e os contágios dispararam. Não havia mais jeito de esconder os números. Entre maio e o final de julho de 2020, o Observatório Cidadão da Covid-19 (organização independente composta por profissionais de saúde e voluntários da sociedade civil), registrou 8.793 casos e 2.512 mortes. Em contrapartida, a Minsa admitiu no mesmo período 3.658 casos e 112 mortes.

A diferença entre os números oficiais e o que se via nos hospitais era tão gritante que a mídia internacional e organismos como a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) tomaram o Observatório como fonte oficial. A batalha coube novamente aos médicos, cuja perseguição durante a pandemia lembra a de três anos atrás, quando também foram atacados por realizar seu trabalho.

Em 2018, a Nicarágua era um barril de pólvora. Uma jornada de protestos sem precedentes encurralou o governo com a indignação diante das fracassadas reformas na Previdência. A solução de Ortega e Murillo foi acionar a repressão letal da polícia e de grupos paramilitares. Segundo a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), pelo menos 325 pessoas foram assassinadas. Os médicos que trataram dos feridos foram demitidos e muitos foram para o exílio. Em setembro daquele ano, o governo proibiu todas as manifestações, instaurou um estado policial e promoveu uma perseguição judicial que mandou para a cadeia mais de mil cidadãos, considerados presos políticos.

A pandemia chegou ao país em meio a essa grave crise de direitos humanos e perseguição política de opositores, ativistas, jornalistas, médicos e qualquer pessoa que criticasse o casal presidencial. A imposição da autoridade três anos atrás foi um aviso de como o governo agiria diante do coronavírus. A crise na saúde ganhou outra dimensão: a de uma pandemia sob um regime autoritário que não acredita na Covid-19 e não admite críticas. Além disso, no horizonte do segundo ano de pandemia estavam as eleições presidenciais, com Ortega aspirando ao seu quinto mandato, o terceiro consecutivo, para permanecer um quarto de século no poder.

Manifestação na Nicarágua contra a farsa eleitoral – Foto: Carlos Barrera

 

Eleições sem oposição

Para Ortega e Murillo, a pandemia foi outro pretexto para radicalizar sua postura de silenciar e perseguir uma oposição que tentava se organizar e exigir condições mínimas para enfrentá-los nas eleições de 2021.

A ofensiva do governo começou em agosto de 2020, quando o grupo hacker Anonymous revelou que o Ministério da Saúde sabia da gravidade do contágio da Covid-19 desde maio daquele ano, fato que continua sendo negado até hoje. Tanto os médicos quanto a mídia analisaram os dados e concluíram que o Minsa falsificava atestados de óbito de pacientes infectados para manter a taxa de mortalidade baixa.

Poucas semanas depois do vazamento, a Assembleia Nacional – controlada pelo governismo – começou a discutir a “Lei dos Cibercrimes”, que, entre outras medidas de censura, impôs pena de oito anos de prisão a quem vazasse informações públicas. Foi aprovada no final de outubro, ao mesmo tempo em que o governo aprovava uma série de outras leis para perseguir seus críticos, como a Lei de Agentes Estrangeiros, que criminaliza o financiamento proveniente da cooperação internacional; a Lei da Sentença de Prisão Perpétua, contra crimes de ódio que o governo atribui aos opositores; e a “Lei do Povo”, pensada para as eleições, que anula a concorrência política. O coquetel legislativo funcionou: no pleito de 7 de novembro: a opção dos nicaraguenses, que segundo várias pesquisas independentes rejeitavam amplamente o governo, foi votar em Ortega ou não votar.

Desde junho deste ano, o governo prendeu e processou, recorrendo à “Lei do Povo”, 37 líderes da oposição, incluindo sete candidatos presidenciais. Segundo a lei, são todos “traidores da pátria”. O governo também alegou um caso de lavagem de dinheiro para barrar a candidatura de Cristiana Chamorro, que liderava as pesquisas. Como se não bastasse, familiares dos candidatos presidenciais presos denunciaram a tortura por policiais na prisão de El Chipote.

A investida repressiva atingiu jornalistas e profissionais de saúde, que foram ameaçados pelo Ministério Público e pelo Ministério da Saúde, com base na “Lei dos Cibercrimes”. No caso dos médicos, em julho foram convocados em caráter de emergência pelo Minsa, que os advertiu de que, se continuassem a alertar a população por meio das redes sociais e da mídia sobre o novo surto de Covid-19, eles não só seriam processados por “Cibercrimes” como teriam suas licenças profissionais cassadas.

Carlos Quant foi convocado pelo Minsa no mesmo dia que seu colega urologista Jorge Luis Borgen. Ambos são membros da Unidade Médica da Nicarágua e do Comitê de Ética Científica, organizações que, na falta de dados oficiais sobre a pandemia, foram tomadas como referência pela Opas. Passada menos de uma semana da convocação dos especialistas, o Parlamento sandinista cancelou o estatuto legal de quinze ONGs médicas. Foi uma sequência de atos persecutórios: uma hora depois da votação dos deputados, a polícia invadiu as instalações do Centro de Estudos e Promoção Social (Ceps), fundado pelo epidemiologista Leonel Argüello há mais de trinta anos. Argüello é uma das principais vozes médicas a alertar sobre a pandemia e exigir uma melhor gestão oficial.

“Fazer declarações e projeções estatísticas sobre um problema de saúde pública não é crime”, criticou o urologista Borgen. “O papel dos médicos é chamar a atenção da população, mas também das autoridades governamentais, quando surge um problema como a pandemia de Covid-19. Nosso papel é instar as autoridades a agirem para melhorar a situação.”

Os médicos apenas tentam fazer seu trabalho, mas, assim como os políticos da oposição, membros da sociedade civil e jornalistas, tiveram que se autocensurar, se esconder ou ir para o exílio por medo de serem presos em função das novas leis. “É uma perseguição da ciência sem precedentes. Os médicos não querem dar um golpe de Estado, como diz o governo, e sim corrigir a má gestão da pandemia e de outros problemas de saúde que prejudicam a população. É a função do médico”, argumentou Borgen.

O infectologista Carlos Quant não ocultou sua surpresa quando, em 12 de agosto, o Conselho Supremo Eleitoral (CSE) anunciou que encurtaria a campanha eleitoral a quarenta dias. Quant e seus colegas médicos acharam irônico que o Poder Eleitoral mostrasse preocupação com o vírus, quando o governo continuava a promover grandes aglomerações.

Para as comemorações das Festas Pátrias, nos dias 14, 15 e 16 de setembro, a vice-presidente Murillo incentivou o turismo, as reuniões e isentou o imposto sobre o valor agregado para estabelecimentos de alimentação, bebidas e hospedagem. Os shows e atividades convocadas pela primeira-dama ficaram lotados. Os funcionários públicos tiveram nove dias de folga pelos 200 anos de independência da Nicarágua. “São merecidas férias bicentenárias nesta semana, uma semana de dignidade bicentenária (…) para comemorar à altura”, disse Murillo. Ela chegou a determinar que as escolas públicas realizassem desfiles de fanfarras na maioria dos bairros e cidades do país, como é habitual nessas datas. O resultado apareceu semanas depois: a Nicarágua passou pelo pior surto de Covid-19 no final de agosto e início de setembro, de acordo com o Observatório do Cidadão. Pior ainda que o de 2020.

Quase dois meses depois, a onda de contágios está diminuindo, de acordo com os últimos dados do Observatório, mas os nicaraguenses ainda vivem as consequências de um vírus que não foi combatido com a devida atenção pelo governo. Quando a eleição de 7 de novembro chegou, enterros, hospitais em colapso e falta de oxigênio continuavam sendo uma preocupação para uma população que transformou as mídias sociais num enorme obituário virtual. Políticos da oposição, jornalistas e médicos tinham sido processados, presos ou exilados. Porém, mais uma vez, a Nicarágua não iria estragar a festa de Ortega e Murillo, marcada nessa data para selar sua permanência no poder.

O casal presidencial finalmente consolidou um regime de partido único por meio de eleições sem escolha, com 75% dos votos, segundo o questionado Conselho Supremo Eleitoral. Nenhuma surpresa. O que mais chamou a atenção foi o percentual histórico de abstenção registrado pela organização Urnas Abertas: 81,2%.

A jornada eleitoral foi desértica, e os membros do partido sandinista recorreram à coação e à intimidação para “transportar” os cidadãos até os locais de votação. Quando nem mesmo a propaganda oficial conseguiu esconder a baixa participação, funcionários do partido a atribuíram à pandemia de Covid-19, a mesma que supostamente não afetava o país quando milhares de pessoas morriam todos os dias em todo o mundo vitimadas por essa doença. Ortega e Murillo festejaram a vitória sem se importar com o fato de que quarenta países não reconheceram os resultados das eleições. O presidente os ignorou, mas no seu discurso de vitória lembrou-se dos opositores silenciados, chamando-os de “filhos da puta ianques”. O casal presidencial continua a governar seu país, onde não há nem Covid-19 nem oposição nem ciência nem eleições democráticas.

Tradução: Rubia Goldoni e Sérgio Molina

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