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    Ilustração de Paula Cardoso

questões de saúde

Nem limão, nem feijões: sem milagres contra a Covid-19

Ministério Público e polícia investigam “receitas infalíveis” contra o vírus

Gilberto Nascimento | 20 maio 2020_15h15
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Um pastor evangélico da Praia Grande, no litoral de São Paulo, anunciou nas redes uma receita infalível contra a Covid-19. A fórmula mágica, segundo Waldeir de Oliveira, líder da Igreja Assembleia de Deus Ministério da Missão, teria vindo de Israel: um  gargarejo com água morna, bicarbonato de sódio e limão. “Eu vou lhe ensinar a fazer. São três ingredientes, é muito fácil. Pegue um limão, meio copo de água morna e bicarbonato de sódio. Pegue uma colher de chá de bicarbonato, ponha no copo de água e mexa. Depois, pegue meia banda de limão e esprema com o bicarbonato no copo. E veja a reação”, ensinou Waldeir, em um vídeo que viralizou nas redes sociais no início do mês.  

“É para gargarejar, não beber. O coronavírus fica quatro dias na garganta. Com o gargarejo antes de dormir, todos os dias, você não pega o coronavírus”, garantiu o pastor. Na receita, o limão pode ser substituído por vinagre de maçã, explicou. “Se tiver alguém com garganta inflamada, multiplique esse vídeo para todo o mundo no Brasil”, pediu o líder evangélico. Waldeir, com 7,5 mil seguidores no Facebook, disse que sua igreja fez pregações por 23 horas seguidas nos últimos dias. Sua denominação é uma dissidência da Assembleia de Deus.

A fórmula salvadora para curar a Covid-19 teria sido passada por um judeu, segundo o pastor, ao seu irmão, residente nos Estados Unidos há 40 anos. “Os judeus mandaram essa receita para todos os cidadãos de Israel. E a mídia não fala de Israel. Lá, o coronavírus não está reagindo. Desde que começou a epidemia, lá ele não se propagou”, afirmou Waldeir.

Até esta quarta-feira (20), foram registrados em território israelense 16.659 casos de coronavírus e 278 mortes. A Embaixada de Israel, em Brasília, informou não ter conhecimento de qualquer orientação a seus cidadãos sobre supostas fórmulas para prevenir e combater a Covid-19. Sobre a tal receita com água, bicarbonato e limão, o Ministério da Saúde no Brasil também esclareceu não existir qualquer medicamento ou substância capaz de curar a doença. Infectologistas consideraram uma “bobagem” e “sem sentido” a sugestão do pastor. Após a repercussão de seu vídeo, o pastor Waldeir o retirou das redes sociais. Procurado na segunda-feira (18), minimizou o episódio. “Foi só um vídeo que fizemos para orientar a higiene bucal.” E evitou mais comentários: “não tenho mais nada o que falar.”

O Ministério Público Federal e o Ministério Público Estadual em São Paulo começaram a receber denúncias sobre supostas curas da Covid-19 propagadas por líderes religiosos na internet. O caso do pastor Waldeir, no entanto, não foi alvo de procedimentos – ao menos até o momento –  por parte do Ministério Público Estadual ou Federal. 

O primeiro caso a chamar a atenção de procuradores e promotores foi o do pastor Valdemiro Santiago, da Igreja Mundial do Poder de Deus, que estimulou os fiéis a plantarem sementes de feijão adquiridas em sua instituição. Disse que elas teriam supostos poderes para curar o coronavírus. Os fiéis eram estimulados a pagar entre 100 e 1 mil reais. Valdemiro divulgou que as sementes poderiam “auxiliar na crise epidêmica atual, fazendo alusão e ligação com suposto caso concreto de pessoa que teria se curado de doença causada pelo novo coronavírus”, constatou o procurador Pedro de Oliveira Machado, da Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão em São Paulo.

O Ministério Público Federal solicitou ao Google no Brasil, responsável pela plataforma de vídeos YouTube, a retirada dos vídeos de Valdemiro. O Google atendeu ao pedido. O MPF também enviou notícia-crime ao Ministério Público Estadual para apurar possível prática de estelionato por parte do apóstolo Valdemiro. Um pedido de investigação começou na Procuradoria da República em Recife. Foi remetido depois para São Paulo, por ser o local da sede da igreja, e ao MP estadual, por tratar-se de responsabilidade individual – no caso, do apóstolo Valdemiro Santiago. 

Nos vídeos, o líder da Igreja Mundial não falou explicitamente em pagamento. Mas disse que a igreja enviaria as sementes pelos Correios e os fiéis fariam “o propósito” de 1 mil, 500 ou 100 reais, para ter a bênção. Para a Procuradoria, ficou claro o uso de influência religiosa e da mística da religião para obter vantagem pessoal ou benefício para a Igreja Mundial do Poder de Deus, “pois não há evidência conhecida de cura da Covid-19 por meio de alguma divindade nem por ingestão ou plantação de feijões mágicos”. O Ministério Público Federal, em nota, informou não ter intenção de restringir a liberdade religiosa nem criminalizar a arrecadação de ofertas de fiéis, mas também não poderia permitir que “indivíduos inescrupulosos ludibriem pessoas vulneráveis e firam a fé pública”. A Igreja Mundial negou a venda de feijões para curar a Covid-19. Disse que “toda cura vem de Deus” e a semente seria uma “figura de linguagem”. O valor da suposta venda não existe, segundo a igreja, por ser a oferta espontânea, “a qual é dada de acordo com a condição e manifestação de vontade de cada fiel”.

No início de março, a Igreja Catedral Global do Espírito Santo,  conhecida também como “Casa dos Milagres”, em Porto Alegre (RS), causou polêmica ao divulgar o anúncio de um culto chamado “O Poder de Deus contra o Coronavírus”. A igreja prometia imunização contra a Covid-19 por meio de um “óleo consagrado”. A Polícia Civil abriu inquérito e está investigando o caso. O Ministério Público do Rio Grande do Sul considerou o caso passível de enquadramento em crime de “charlatanismo ou curandeirismo”. O MP também abriu um inquérito civil e notificou a igreja solicitando explicações. O pastor Silvio Ribeiro, responsável pela igreja, foi ouvido pelo MP, se retratou e comprometeu-se a não repetir o discurso. O inquérito do MP então foi arquivado.

No mesmo mês, durante um culto, o missionário R.R. Soares, da Igreja Internacional da Graça, disse usar “a autoridade de Deus” para mandar o coronavírus ao inferno. “Mal, é uma ordem! Pegue tudo o que é seu agora e vá embora! Eu exijo! Desapareça! Solte essa vida agora. Eu estou mandando! Coronavírus, vá para o inferno. Largue essa pessoa agora […] Em nome de Jesus Cristo, vá embora! Acabou! A bênção chegou e todo mal está desfeito em nome de Jesus Cristo!”, propôs R.R.

O pastor David Mesquiati, presidente da Fraternidade Teológica Latino Americana e da Rede  Latino Americana de Estudos Pentecostais, explica que recorrer à religião em busca de um milagre é um caminho normal e natural em várias religiões e no cristianismo em geral. “O católico, o luterano e os pentecostais oram pela cura. Buscar a cura milagrosa é uma característica que todas as religiões possuem. A perspectiva de cura por meio de uma intervenção divina é esperada. O problema é que alguns transformam isso num produto”, observou Mesquiati, pastor da Igreja Assembleia de Deus em Vitória (ES) e professor de Teologia e Ciências das Religiões na Faculdade Unida de Vitória.

Crítico em relação às atitudes de alguns colegas, Mesquiati ressaltou ser contrário a promessas e garantias de cura por meio de um determinado procedimento ou em razão de o fiel ser membro da igreja A ou B. “Isso beira o charlatanismo. E não é isso o que se espera. Uma coisa é o discurso de esperança, orar e esperar que haja uma intervenção divina, um possível milagre. Isso é uma expectativa justa. Outra coisa é dar garantias de que isso vá acontecer.”  

Há diferenças, segundo ele, no caso do bicarbonato com limão e na venda de sementes de feijão. “Tem dois tipos de abordagem aí. Tem um que está tentando usufruir ganhos com uma suposta cura [caso do feijão], e isso deve ser analisado. Outra coisa é quando o pastor propõe um caminho de cura usando um chá ou bicarbonato, ele passa do limite da ingenuidade.” Para Mesquiati, haveria outras razões. “Pode ter uma maldade implícita, que é o negacionismo da doença, da ciência. Isso é muito ruim, inclusive porque ultrapassa as questões da religião, da esfera do que compete ao líder religioso, ao prescrever tratamentos. É caso de falta de discernimento sobre as áreas específicas de cada um. Não se deve avançar na área um do outro, principalmente numa questão delicada e importante como a saúde”, critica. “Isso pode estar no limite tênue entre a ingenuidade e a maldade.”

O pastor também vê uma possível motivação política. “Tem o negacionismo da atividade médica, da ciência. Uma cegueira provocada por ideologia política. O sujeito fica cego lá na frente e pode manipular a realidade. Pode achar que estão prejudicando o seu político preferido e aí recorre a mecanismos não comprovados. Passa a dizer que a ciência não vale nada.”

O caso de venda de produtos é ainda mais grave, na avaliação de Mesquiati. “Aí é charlatanismo puro. Ela aflora nos tempos de crise. E muitos se aproveitam dela. O primeiro caso é mais velado, e esse é escancarado.” Pastor há 17 anos, o líder religioso da Assembleia de Deus diz lamentar o caminho da negação da ciência seguido por muitos colegas, seja de esquerda ou de direita, segundo ele. “O pior é que a massa, o grosso dos fiéis, não vê comportamento inadequado aí, não. Se você for conversar com qualquer evangélico, ele se sente representado nessa fala. E, entre os católicos, também”, lamentou.

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