Em 13 de maio de 2020, Vera Lúcia Ribeiro, de 40 anos, começou a sentir os efeitos diretos da pandemia do novo coronavírus. Artista de um circo que estava em Rio Branco, no Acre, ela viu as atividades circenses serem suspensas por causa das medidas restritivas adotadas para conter o avanço da Covid-19. Sem poder voltar ao picadeiro, assim como seus colegas, Vera perdeu sua única fonte de renda. Até resistiu por um período, mas acabou voltando a Curitiba, no Paraná, sua cidade natal. Na capital paranaense, foi morar com uma filha, que estava grávida, e com o genro que havia perdido o emprego. Sem condições de pagar o aluguel, a família se mudou para o Jardim Veneza, uma ocupação que surgiu em dezembro de 2020 e à qual recorreram famílias que sentiram no bolso e no estômago a pandemia e o desemprego. Desde setembro de 2021, as trezentas famílias do Jardim Veneza vivem assombradas por uma ameaça de despejo. O mandado de reintegração de posse expedido pela Justiça está suspenso até o fim do ano, mas não há garantias quanto ao ano que vem. “Se tirarem a gente, vão ser trezentas famílias morando na rua. Eu mesma não tenho para onde ir. […] Você me desculpe por chorar ao falar disso, mas é que eu me desespero, mesmo, porque a gente não tem o que fazer”, disse Vera.
Em depoimento a Felippe Aníbal
Por nove anos, eu fui artista de circo. Desde 2015, estava no Broadway, um circo grande, que tinha mais de setenta funcionários e com quem viajei para vários estados do Nordeste, para Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso, Rondônia, Amazonas e Acre. Eu me apresentava como bailarina e em shows infantis, vestindo fantasias de bichos. Também ajudava na praça de alimentação, fazendo pipoca e cachorro-quente, e dando uma força nas vendas. Eu morava em um ônibus [motorhome] com meu filho Felipe, que hoje tem 12 anos, e com um companheiro, que era palhaço, o palhaço Chameguinho. Como a gente ia para lugares muito quentes, meu ônibus tinha até ar-condicionado. Eu gostava bastante da rotina de circo, viajar, conhecer lugares, me apresentar. Todo mundo era unido, como uma família. Além disso, todo dia tinha um dinheirinho entrando. Eu estava muito feliz e não faltava nada para mim ou para o meu filho. Minha intenção era seguir na carreira artística.
Quando entrou a pandemia [do novo coronavírus], as coisas pioraram de uma hora para a outra. No dia 13 de março de 2020, a gente se viu sem poder se apresentar. O circo fechou. Os donos até tentaram segurar a barra, mas não tinha jeito: se não tinha público, não tinha renda, não tinha nada. No começo, vieram algumas ajudas, doações, mas depois parou tudo. Quem aguenta ficar ajudando tanta gente por tanto tempo, né? O pouco que eu tinha conseguido guardar nesses últimos anos fui gastando para me manter. A gente precisava comer. Nesse meio-tempo, minha filha Amanda, que tinha ficado em Curitiba e que tem 20 anos, ficou grávida. Eu pensei: “Meu Deus do céu, o que eu faço agora?”
Esperamos no Acre até outubro de 2020. Meu companheiro, que tem família em Minas Gerais, resolveu voltar para lá. Eu decidi voltar a Curitiba, ficar com minha família. Cheguei em 20 de outubro e fui morar em uma casinha que minha filha e o marido dela alugavam, na CIC [o bairro Cidade Industrial de Curitiba]. Mas eles não estavam conseguindo pagar o aluguel. Meu genro tinha perdido o emprego por causa da pandemia e eu enjoei de entregar currículo, por e-mail e em portaria de empresas, e não conseguir nada, nada. Nem como [trabalhadora] temporária. O meu neto nasceu, e a situação financeira da família piorou. A gente passou muita dificuldade. Chegou a um ponto que ou a gente comia ou tentava pagar o aluguel.
Em dezembro do ano passado, a gente soube que iam ocupar esta área [em que fica o Jardim Veneza, no bairro Tatuquara, em Curitiba]. Como a gente não tinha mais condições de nada, decidiu vir junto. Meu genro construiu uma casinha de madeira de três cômodos, para ele, minha filha e meu neto. Eu consegui construir uma casa de uma peça [cômodo] só. Tudo de madeira coberta com telha. Por enquanto, a minha não tem móveis, não tem nada: só as paredes e o teto. Enquanto isso, eu e o meu filho Felipe estamos morando com eles. Como a maioria das casas, não tem banheiro, a gente esquenta água com um “rabo quente” [uma resistência ligada aos fios] e toma banho de bacia ou de canequinha. A gente sofre, porque neste ano tem feito muito frio. Até agora, em novembro, tem feito frio.
Em 1º de setembro, consegui um emprego como auxiliar de limpeza, em uma empresa que presta serviço a outras empresas, depois de tanto tempo desempregada. Ganho um salário mínimo e é isso que tem garantido comida na nossa mesa. Meu genro e minha filha têm saído para catar recicláveis, mas dá muito pouco: 30 reais por dia, mais ou menos. Ainda está difícil. Meu neto tem 11 meses e sempre precisa de um remédio. Semana passada, mesmo, começaram a nascer os dentinhos dele, e eu tive que comprar um que custava 50 reais. Nesta semana, ele teve diarreia e aumentou o gasto com fralda. Agora, eu te pergunto: se a gente tivesse que pagar o aluguel, como ia fazer?
Tudo, tudo, tudo subiu muito. Um pacote de arroz de 5 kg, que custava 12 reais três anos atrás, agora você não encontra por menos de 22 reais. Ontem fui à venda e não deu nem pra comprar alho, de tão caro que está. Esta semana, vamos temperar a comida só com cebola, mesmo. Carne e frango, então, nem se fala. Virou mais que um luxo para a gente. Mistura, aqui em casa, é só ovo e salsicha. Ovo e salsicha, e olhe lá. Agora, acabou o gás. Para cozinhar, meu genro fez um buraco na beira do barranco e estava fazendo fogueira com lenha e carvão. Demora horas para conseguir cozinhar. A coisa só não é pior porque o pessoal da Cozinha Solidária [mantida pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto] dá o almoço. Graças a Deus, as crianças são umas bençãos e não reclamam. De vez em quando, pedem uma coisinha, e é muito dolorido não poder dar.
Não bastasse isso, tem essa ordem de despejo [de reintegração de posse, determinada pela Justiça. A decisão está suspensa até 31 de dezembro de 2021, em razão de Lei 14.216/21]. Se a polícia vier [cumprir a decisão], a gente não sabe como vai ser. Não sabe se vai ter tempo de tirar as coisas ou se eles destroem as casas e deitam tudo no chão. A gente tem muito medo de perder o pouco que tem aqui ou que alguém fique machucado. Eu nunca passei por nada assim. Com esse monte de crianças, a gente fica com muito medo. Isso tem tirado muito o sono da gente.
Pra onde a gente vai? São trezentas famílias vivendo aqui. Se tirarem a gente, vão ser trezentas famílias morando na rua. Eu não tenho para onde ir. Tenho vários parentes aqui: três primas e uma irmã, todas com crianças pequenas. Os familiares que não estão na ocupação não têm condições de alojar ninguém, porque têm uma penca de filhos. A gente não quer nada de graça. Se for preciso, a gente até poderia pagar aos poucos pelo pedaço de terra. Mas o governo não pode fingir que, simplesmente, a gente não existe. Por mais simples que sejam as casas, as pessoas têm muitos sonhos ali dentro. Você me desculpe chorar ao falar disso, mas é que eu me desespero, mesmo, porque a gente não tem o que fazer. É duro ver um sonho perto de acabar em nada.