Maio de 1968. O filósofo Norberto Bobbio é chamado a comparecer na Universidade de Turim, da qual é professor, pois estudantes haviam tomado a famosa sede da escola na Via Po. Ao perguntar o que teria a ver com aquilo, Bobbio foi informado de que o líder da ocupação era Luigi, seu filho. No mesmo ano, no Brasil, intelectuais de grande prestígio, como Antonio Candido e Florestan Fernandes, eram questionados pelos alunos sobre alguns dos procedimentos adotados por eles em suas aulas.
Algumas das reivindicações dos alunos turineses hoje parecem prosaicas: eles queriam menos aulas expositivas, menos avaliações punitivas, mais trabalhos em grupos. Já os alunos que questionavam Antonio Candido queriam o direito de intervir na organização e distribuição das tarefas. O professor assentiu, mas os alunos não cumpriram a sua parte no trato.
É exagerado atribuir a um falso binômio revolução/neoliberalismo o afã contestador da juventude estudantil, como propõe o anônimo autor Benamê Kamu Almudras. Os problemas das gerações mais velhas com os arroubos contestatórios dos jovens alunos são típicos das mudanças que ocorrem na estrutura de sentimento de uma sociedade, às vezes em poucos anos. É o caso do que observamos hoje, no Brasil, mas trata-se de uma atitude açodada vincular esses episódios a uma presumida “cultura neoliberal”.
No final de 2019, antes que a Covid-19 sequestrasse as nossas aulas presenciais, um aluno me desafiou afirmando que o liberalismo nunca prometera igualdade. Ciente de que ele militava em um movimento de perfil reacionário, eu perguntei em que fonte se baseava para sustentar tal posição, pois no programa da minha disciplina constava o oposto, pelo menos nas referências clássicas, como Locke e Rousseau. Ele respondeu simplesmente que não lera os livros dos dois filósofos, nem precisava lê-los: a promessa de igualdade do liberalismo era uma invenção da esquerda, afirmou. Tornei a recitar o mantra liberal e perguntei o que ele costumava ler, além das mensagens no celular, completando com a sugestão de que se dedicasse mais ao estudo da história se desejava se qualificar para o debate. Ele disse, então, que iria pensar melhor sobre o tema. Fui severo no episódio, mas, estando em uma universidade, tratei aquele aluno como adulto. Nem sempre é o que acontece, porque às vezes temos medo de exercer autoridade. Ou a exercemos de maneira autoritária.
Se o neoliberalismo nos assalta a ponto de tirar o sono é porque essa doutrina (nunca é demais lembrar) faz da gestão do sofrimento o motor do controle social. É difícil encará-la como uma forma de prática cultural. Daí minha discordância em relação ao argumento do autor. Sabemos que enfrentamos situações como aquelas que relata, algumas até caricatas. Mas não é fácil aceitar a lógica de vitimização dos professores universitários do texto. Até mesmo porque, como o autor ou a autora admite, nós, os professores, temos muita dificuldade em fazer a crítica de algumas das nossas práticas.
Não me refiro aqui a atitudes que resvalam para o assédio moral e sexual, o racismo e a homofobia, alguns tipificados como crime, mas a certas práticas “naturalizadas” nas universidades públicas, estas sim desdobramentos do éthos neoliberal. Por exemplo, alguns programas de pós-graduação brasileiros definiram, recentemente, que os alunos devem obrigatoriamente publicar com os seus orientadores. Há muito o que ser questionado nessa decisão, mas o principal é: como podemos obrigar os alunos a publicar quando muitos professores têm dificuldades para fazê-lo? Ainda mais se o aluno não teve o respaldo que deveria ter de seu orientador? Apesar de haver algo de injusto nessa decisão, para minha surpresa não houve nenhuma grita geral dos estudantes contra ela, ao menos no meu curso. Acharam tudo normal, mesmo quem se diz progressista, pois, afinal, assim quer a Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior)… Seriam ecos do produtivismo neoliberal? Na prática conduzida pela academia, certamente sim, mas serão os alunos que sofrerão as consequências.
Não há nada de revolucionário no fato de os alunos serem, por vezes, arrogantes e impertinentes. Nem há nada de neoliberalismo nisso. A universidade mudou, e a universidade pública brasileira mudou para melhor. Ela é mais aberta, mais inclusiva, mais plural. E a diversidade dos seus problemas também aumentou. Cabe perguntar quantos de nós, velhos e novos professores, estamos preparados para enfrentar outros comportamentos, outros códigos linguísticos, outras maneiras de ver a vida, da parte dos muitos indivíduos que encaram a universidade apenas como um passo a mais na sua vida e na sua luta, nem o principal passo, nem o mais importante.
A integração – complexa – da universidade com o pluralismo da cultura atual tem produzido todo tipo de preconceito, inclusive entre professores. “Mas os alunos cotistas não sabem falar ou escrever”, disse-me certa vez uma colega. Não estaríamos, dessa maneira, criando barreiras que impedem os alunos de superar suas próprias dificuldades?
Durante a campanha eleitoral de 2018, uma de minhas alunas, negra e pobre, declarou em sala de aula que apoiava Jair Bolsonaro. A sua manifestação indignou outra aluna, que era militante política de esquerda. Tentei mediar a discussão, lembrando que a livre manifestação da opinião na cena pública é fundamental à plena realização da política. Ouvi da aluna indignada que o que eu dissera era um absurdo, pois ninguém poderia, em sã consciência, defender a posição adotada pela outra aluna. Ela afirmou que eu estava “contemporizando” com uma grave situação, o que muito a desapontava. A aluna militante julgava revolucionária a atitude que tinha tomado, mas era sobretudo autoritária.
Esse é o ponto em que tenho maior discordância do argumento de Almudras. A sociedade brasileira e a sua cultura política estão alicerçadas no patrimonialismo, no paternalismo, no populismo. E também no autoritarismo, que não é apenas uma prática de determinados estudantes, mas de diferentes agentes dentro da instituição universitária. Se os alunos de hoje contrapõem-se (como fizeram os de ontem) a certas práticas docentes, é porque pode haver algo de errado nelas. Por que nós, os professores, temos tanta dificuldade em admitir isso? Ou será que continuaremos a negar que adotamos, nós mesmos, há bastante tempo, práticas neoliberais na universidade, como o produtivismo, o elitismo e o fetichismo de alguns valores culturais, que às vezes resvalam para o autoritarismo?
A universidade é cada vez menos uma ilha alheia aos problemas históricos e atuais da sociedade – e isso é bom. Práticas autoritárias que se dizem progressistas, aliadas a um modelo político econômico perverso, estão disseminadas na sociedade e alcançam também a vida universitária. Talvez por isso, há muito, os estudantes questionam o status quo acadêmico, suas formas de distinção e de premiação. Poderia ser diferente?
É um desserviço ao debate democrático que vem enriquecendo a universidade relacionar os arroubos de alunos, inclusive algumas atitudes mais radicais de protesto, com o projeto neoliberal e sua gestão da economia que carrega consigo destruição e morte. Isso enfraquece o esforço que vem sendo feito para compreender as nuanças adquiridas nos últimos anos por esse espaço plural, diverso e polissêmico que é a universidade pública brasileira.
Em vez de embirrarmos com os alunos por causa de sua rebeldia, precisamos (re) aprender a dialogar e negociar com eles, à luz das demandas desse tempo novo. No mundo um pouco claustrofóbico da instituição universitária, em que os professores se adaptaram à lógica produtivista bovinamente, o inconformismo e a irreverência dos alunos são mais que bem-vindos – são um vento forte que pode lançar para longe o elitismo e o autoritarismo presentes na universidade.