minha conta a revista fazer logout faça seu login assinaturas a revista
piauí jogos

    Waldemar Zumbano, o quinto da direita para esquerda, em uma reunião do clã Zumbano-Jofre na década de 1970 Acervo pessoal/Waldemar Zumbano

vultos do boxe

Neno, o príncipe

A história de Waldemar Zumbano, o homem que lapidou Éder Jofre

| 01 jun 2025_12h20
A+ A- A

A piauí publica um capítulo do livro O príncipe do boxe, sobre a vida de Waldemar Zumbano, pugilista e treinador de boxe. Neno, como era conhecido, foi tio de Éder Jofre, o “Galo de Ouro”, bicampeão mundial e um dos maiores boxeadores de todos os tempos. Neno faleceu em 2004 e, dez anos depois, Fábio Altman, jornalista e autor deste livro, visitou Éder, então com 78 anos e saúde debilitada, para escrever uma reportagem veiculada na revista Veja. O encontro instigou no autor o desejo de contar a história de seu avô materno, um dos mentores de Éder e personagem fundamental na história do boxe brasileiro. O príncipe do boxe, publicado pela editora Seja Breve, chega às livrarias nesta semana. O evento de lançamento será no dia 13 de junho, às 19h, na Casa do Povo – Rua Três Rios, 252. 

 

Há memórias que a ciência dos exames de imagem e a dissecção de cérebros não revelam. Talvez a psicanálise, mas nem assim. E como o Neno falava pouco, não mais que o necessário, menos até, seria difícil decifrá-lo. E o que fazer? Um caminho, sempre bonito, sempre duro, emotivo, é vasculhar as pastas e gavetas emboloradas de história em sépia. Qualquer foto, de quem quer que seja, haverá de contar a aventura de uma vida. Toda carta, no tempo em que havia cartas, tem segredos a revelar. É assim com todo mundo. Mas os achados e perdidos do Neno têm um quê diferente, mistura de esporte e política, a existência de quem ganhava a vida com punhos e deles fazia arte – e aqui não trato da “nobre arte”, é arte mesmo. E então pego o elefante de bronze que ele dizia ter moldado aos 12 anos de idade, ainda em Mococa, antes de calçar luvas de boxe. É uma peça perfeita, pesada, embora pequena. Deve ter meio quilo, mais, quem sabe, um dia ponho na balança. A pele densa e enrugada do animal parece real ao tato. O elefante respira. Por que será que o Neno tratou de guardar a delicada escultura ao longo dos anos, depois de

tantas mudanças de casa, depois de tantas caixas montadas e desfeitas, até que eu a herdasse? Talvez porque aquele delicado bicho, com a pontinha da tromba perdida, fosse a madeleine que o transportava ao tempo de fome em Mococa. O menino magricelo que viraria boxeador já enxergava muito mal. Ainda bebê, sofreu um acidente doméstico, quando a mãe, minha bisavó Maria, pingou inadvertidamente nos olhos do guri um remédio para o ouvido que quase o cegou. Como a visão não o ajudava, tratou de desenvolver a precisão tátil, para desenhar, esculpir – e para socar, entre cordas. O elefante férreo hoje apoia livros na estante da minha casa, passa uma temporada ancorando uns, depois troca de lugar e escora outros. O de agora é o Dicionário Drummond. Antes que me acusem de ter refeito a cena, a meu bel-prazer, porque se encaixaria na prosa, sugiro que venham para saber que assim é. Na letra M, o verbete que escolho, agora, sim, para me ancorar: Memória, escrito por Viviana Rosi, em torno de um naco da obra do poeta mineiro. Desta maneira: “À infância devota o maior quinhão. O menino-velho imaginava que precisaria reviver posteriormente cada gesto em palavra poética? Ele parece cismar sobre o ‘tempo duplo’ enquanto ‘mira o futuro’ nas águas do ribeirão, desde pequeno adivinhando que ‘viver é saudade/prévia’.”

Um dia ponho o elefante a sustentar outro livro, O Boxe ao Alcance de Todos, escrito e ilustrado pelo Neno em 1951, com o selo da Brasiliense (ele era amigo de Monteiro Lobato, um dos fundadores da editora). Está lá, logo nas primeiras linhas, a defesa do boxe, em português tão antigo como as páginas amareladas que parecem virar poeira, desmanchando-se ao toque: “Em análise dos mais profundos conhecedores da educação física, o boxe foi considerado um dos mais perfeitos meios de exercício para o desenvolvimento geral do corpo humano. Ele não só desenvolve todos os músculos do corpo, como também educa o raciocínio e tempera os nervos mais desequilibrados. É, portanto, um fator ponderável na educação da mentalidade humana, no sentido mais amplo: o dos ‘complexos’. Na sociedade, analisando-o, não ainda em nosso país, mas nos da Velha Europa, da Ásia e da América do Norte, podemos dizer, sem medo de errar, que tem um valor extraordinário no concernente à ordem e à paz entre os homens.” Por palavras como essas, de paixão pelo pugilismo, é que me sentia incomodado ao revelar o estrago que os socos fizeram com Éder na maturidade. Era desleal, não haveria apelação, afinal eu aprendera com o Neno que “o boxe educa o raciocínio”. Traidor, traidor.

Para além do texto e dos capítulos dedicados à descrição de golpes e jogo de pernas, comove em O Boxe ao Alcance de Todos um desenho que ocupa a folha de rosto. É o Neno, em autorretrato de corpo inteiro, punhos em guarda, de perfil, para a direita, a caminho de sair da página, e uma legenda: “O autor pronto para começar.” Posso imaginá-lo, consigo ouvi-lo dizer a frase a sublinhar a ilustração, com o humor que lhe era peculiar, de permanente e discreta ironia, a mais aguda de todas, como os jabes de Éder Jofre. O Neno tinha 40 anos quando escreveu o livro, que comprei décadas depois em um sebo e mandei encadernar. Aliás, comprei três exemplares, todos os que encontrei à venda, esgotei a tiragem. Os traços da ilustração eram de um homem adulto habituado a lápis e caneta, um elegante salto no tempo na comparação com o elefante dos 12 anos. Nobres artes, ambos. As mãos, eu sei, eram as mesmas. As mãos do Neno, aliás, são um capítulo à parte, porque revelavam duas vidas simultâneas, a do boxeador e a do intelectual, a do esportista e a do desenhista. O Neno, depois de estudar no Liceu de Artes e Ofícios, se especializou em pintura de paredes. Foi um dos primeiros a passar a primeira demão de tinta rosada no Edifício Martinelli, no Centro de São Paulo, inaugurado em 1929. As mãos do Neno são minhas memórias mais antigas de meu avô. Dizem mais que o olhar míope, os olhos fechadinhos atrás de lentes espessas, outra marca inesquecível. 

Os dedos finos serviam para cumprimentar com vigor, firmes mesmo, e bailavam com destreza e força nas massagens depois da soneca da tarde, quando eu almoçava na casa da Fró [avó e esposa do Neno] e do Neno. Aquela massagem de pugilista é uma lembrança de adolescência. Arroz, feijão, bolinho de carne e salada, um creme de abacate como sobremesa. Deitava-me na cama do quarto dos netos e apagava. Ao acordar, passava para a cama deles e lá vinha o Neno, como se estivesse preparando um campeão do mundo para a porfia. Saía dolorido e feliz da vida com o privilégio. O Neno também ensinava meus dois irmãos e a mim a desenhar. Foi ele quem educou o Éder no lápis e depois o apresentou ao pintor Aldemir Martins, para quem o Neno era quase um totem de integridade, parceiros no cotidiano do Partido Comunista.

 

Quando estive com o Éder, em busca da memória que ele perdera, lá em 2014, antes de vê-lo no quarto singelo, antes de entrar na Macondo de sua velhice, vi em cima de uma mesa de plástico, na sacada do sobrado, uma caixa (ou era uma pasta?) com desenhos. Éder sempre desenhou muito bem, e na hora me entusiasmei com o que vi, porque puxaria um fio de meada, um trecho da reportagem, e porque me levava ao encontro do Neno, no paradoxo improvável, mas real, dos pugilistas artistas – o tio que ensinara o sobrinho, o futuro campeão do mundo, a rabiscar. As ilustrações estavam anotadas com datas, o que me permitiu costurá-las com momentos pontuais da carreira do lutador. O traço do pugilista confiante e soberano no punching ball foi rabiscado em 15 de abril de 1962, pouco tempo depois da luta em que ele derrotou o irlandês Johnny Caldwell. Foi nesse combate que o brasileiro unificou os títulos da Associação Mundial de Boxe e do Conselho Mundial de Boxe. Três dias antes de enfrentar pela primeira vez o japonês Masahiko “Fighting” Harada, em 1965, para quem perdeu o título dos galos, Éder desenhou um filho acolhido no colo

da mãe. Foi derrotado. Um outro desenho de mãe protetora é de 28 de maio de 1966, três dias antes da segunda derrota para Harada, em Tóquio, quando Éder vivia o drama da

reconquista do título e parecia pedir um colo afável. Uma das folhas, que puxei para perto do meu olhar, parecia ser trabalho de outra pessoa. O elegante casario colorido em

tons pastel, de 2013, era quase infantil. O neurologista Renato Anghinah me fez entender depois que a parábola geométrica da simplificação das linhas, de adultas a pueris, poderia ser resultado do cérebro atingido de Éder. Utiliza-se o lobo parietal para habilidades visuoconstrutivas; o hipocampo para o resgate das memórias que servem de inspiração; e o lobo frontal para planejar e executar o desenho com requinte. Nas palavras de Anghinah, naqueles dias de revelação: “Éder ainda consegue desenhar, pois seu lobo parietal não está danificado. Os traços estão menos elaborados, porém, porque há perda das funções executivas, área do lobo frontal.” Mas ele insistia, gostava de manter o lápis na mão esquerda. Fiquei observando, e logo lembrei do Neno, dos dedos do Neno. Como eles eram mesmo?

No documentário Quebrando a Cara, de 1977, média-metragem de Ugo Giorgetti, obra-prima para quem gosta de boxe e de vida, da macarrônica prosódia paulistana, “ôrra, meu”, uma celebração da Zona Norte da cidade, do Parque Peruche e da Casa Verde, Éder está sentado numa mesa de escritório, de calça grená e casaco. Ele entrevista o Neno, que está de terno e colete. O Neno gesticula. A câmera, a certa altura, sai dos rostos e fecha nos dedos do Neno, em close. Giorgetti logo percebeu que os dedos falavam. Fazia frio, é o que as imagens informam. Eu estava lá, no dia da gravação, tinha pouco mais de 14 anos. A filmagem foi marcada na academia de boxe então dirigida pelo Neno, um ginásio ao lado do Parque da Água Branca, em São Paulo, dentro das instalações do Defe, o Departamento de Educação Física e Esportes do Estado de São Paulo. Ficava a 200 metros da minha casa, e todos os dias, invariavelmente, o Neno vinha nos visitar para um café com cigarro. E como ele fumava. Acendia um no outro. Mesmo depois de nos mudarmos para outro endereço, por hábito, por costume, ele tocava a campainha dos novos moradores, que viraram amigos de infância. 

Rua Dona Germaine Burchard, 557. Telefone: 620659. Cinquenta anos depois, ainda sei os números de cor. O Neno atravessava o portão de ferro que dava para a calçada. Abria o segundo portão, envidraçado, e chegava a uma outra área, coberta, o chão de caquinhos de cerâmica vermelha, típica dos anos 1960 e 1970. Ali, de vez em quando, meu pai estacionava o Opala bege. Havia também um piano de armário, mas em muitas noites de sábado virava um ringue de boxe. Era o Luna Park dos três netos, o nosso Madison Square Garden, o quintal de Mococa dos primórdios do boxe. Pegávamos quatro cadeiras da cozinha, brancas, de plástico, e colocávamos uma em cada canto. O barbante a rodeá-las garantia o quadrilátero imperfeito. O Neno era o treinador e o juiz. Com agilidade e carinho inigualáveis, como uma bailarina que prepara a sapatilha para o palco, passava entre os nossos dedos a bandagem branca antes de nos calçar as luvas de 12 onças. Éramos os campeões do mundo diante de uma única pessoa na plateia, com um pote de pipoca no colo: a Fró, nossa avó. Ela não sabia para quem torcer naquele campeonato de araque. Não sabia nem mesmo se devia olhar, mas o que fazer? A Fró nunca assistiu a uma luta sequer do Neno no tempo em que ele foi pugilista, nos anos 1930, em mais de duzentos combates, alguns disputados debaixo da lona do circo Piolim – era o que ele contava. Mas como a ideia era agradar os netos, enquanto os pais saíam para ir ao cinema e jantar, a Fró dava um jeito de aguentar a cena que a incomodava e a orgulhava. Aqui e ali escapava um soco mais forte, que o Neno tratava de condenar. A Fró virava o rosto. O Neno interrompia as lutas dos netos quando percebia o jogo de pernas torto e desritmado. Reclamava da postura errada na proteção contra os golpes do adversário. Não havia, no mundo, sábados à noite como os da Germaine Burchard. Um slide colorido conta um pouco daquele tempo. À direita está o Breno, com calça de tergal, sapato social e o agasalho azul da escola onde estudávamos, o Ginásio Israelita Scholem Aleichem, no Bom Retiro. À esquerda, eu, de shorts, tênis Bamba de cadarço vermelho e camiseta. Ambos com a guarda devidamente erguida, atentos, como o Neno nos ensinava. Em 2014, naqueles dias em que estive com Éder Jofre no hospital e em sua casa, postei a foto numa rede social com a seguinte legenda: “A luta continua.” Nas ruas do Brasil desmemoriado, com o cérebro pior que o do Éder, alimentado por conservadores de direita, crescia o movimento que em 2016 resultaria no golpe contra a presidente Dilma Rousseff. A luta continua. É isso o que continua a me dizer aquela fotografia de dois irmãos (suponho que o Rogério é quem tenha feito o registro), ainda que nunca tenhamos deixado de quebrar a cara. O Neno, naquele Brasil, daquele jeito, não pararia de movimentar as mãos, os dedos indicador e médio encostados no polegar, para cima, ma che vuoi?, em gesto de indignação. 

Em Quebrando a Cara, o documentário de Giorgetti gravado em parte do lado da minha casa, no ginásio de boxe, revejo as mãos do Neno. Eram assim, então, os dedos dele, empolgados com o que o professor vai contando ao sobrinho que o entrevista. Éder: “Como é que você começou a lutar boxe, a família começou a lutar boxe?”

O Neno, com os braços cortando o ar: “Isso por volta de 1925, 1926, lá em Mococa. Passou no cinema uma fita em série, chamada Vivo ou Morto, e trabalhava nela, como galã, o Jack Dempsey. A fita era muito bonita, muito boxe, havia mais boxe do que outra coisa na fita. O enredo era boxe. Então a gente achou, puxa, bonito. Negócio formidável. Então, no fundo do quintal da nossa casa, entre duas goiabeiras e duas laranjeiras, nós armamos um ringue, pusemos uma corda, duas cordas, no chão mesmo, com as luvas, e a gente brincava.”

Revejo, sem som, uma, duas, três vezes, aquele trecho de Quebrando a Cara. Quero saber como as mãos do Neno decolam, que gramática pronunciam no silêncio. Sem som, o filme de Ugo Giorgetti me remete ao tempo do cinema mudo, quando os meninos de Mococa começaram a se entusiasmar pelos punhos de um campeão, o Jack Dempsey. E como é bonito imaginar que a aventura do boxe no Brasil tenha nascido do cinema. Tem atividade mais cinematográfica que o boxe? Uma vez o Neno foi convidado a comentar ao vivo, antes e depois da exibição, um filme que seria levado pela TV Cultura, de São Paulo – a ideia era muito boa, chamar especialistas para comentar fitas de destaque. Punhos de Campeão, de 1949, dirigido pelo americano Robert Wise, tem uma especificidade extraordinária: a história contada na tela tem a exata duração do longa, uma hora e dez minutos de uma noite dramática. A trama é simples e poderosa: Stoker Thompson (Robert Ryan), boxeador em fim de carreira, tem luta marcada com um novato agenciado por um gângster. O agente de Stoker vende a derrota no combate sem avisá-lo, descrente da possibilidade de o lutador aguentar muito tempo em pé. Seria dinheiro fácil, não fosse a motivação do pugilista, já veterano, de vencer naquela noite, ele que se acostumara a perder. Ele vai para o desafio incentivado pela mulher, pretende não decepcioná-la uma outra vez, e então pendurar as luvas. É lindo e incômodo, e Martin Scorsese nunca escondeu ter se inspirado em Wise para as primeiras ideias de Touro Indomável. Não me lembro exatamente o que disse o Neno antes e depois de Punhos de Campeão, mas é certo que condenou a canalhice dos managers. O Neno sabia o que era estar no lugar de Stoker, porque passara por episódio semelhante, no tempo em que se escondia da polícia do Estado Novo, e aqui tomo emprestado de novo O Galo de Ouro, porque Henrique Matteucci sabia como ninguém transformar histórias reais em tramas comoventes, e porque aquele livro é também um tesouro guardado pela família, porque estamos lá, um objeto como o elefante forjado. 

Foi assim que o Mateucci relatou a aventura do Neno, a vida como roteiro em tempo real:

“Neno discutia, revoltava-se, e no fim acabava aceitando o escasso dinheiro oferecido pelos promotores. Só não podia concordar com as marmeladas, como aconteceu em Santos, no encontro com Massuda.

– Eu, perder de propósito? Vocês estão malucos!

Sentiu gana de esmurrar o empresário. Pois não era o boxe um ideal? Jamais poderia trair sua bandeira de luta.

– Se for para perder assim, eu não luto.

– Nós não lhe pagamos? Você é nosso empregado e tem que fazer o que ordenamos.

Neno esmurrou a mesa.

– Não sou empregado de ninguém. E não recebo ordens de vigaristas. Vão pro inferno!

Os promotores imploraram, ameaçaram e ele permaneceu inflexível.

– Esqueçam isso. O Massuda é bom e pode vencer-me normalmente.

– Você não quer entender, Waldemar, ele se chama Massuda, compreende? Nós temos que promover seu nome para agradar à colônia japonesa.

O argumento provocou-lhe um riso sarcástico.

– Ah, é isso? E por que vocês não procuram agradar à colônia brasileira?

Durante um instante o homem encarou-o em silêncio.

Depois sorriu:

– Pois é, Frank Éder… Você parece que está querendo encrencar sua vida, não é?

A insinuação fê-lo refletir: “Esses chantagistas ainda acabam me denunciando. Só tenho uma saída e vou usá-la”. “Está bem”, disse, “eu perco.” Um dos promotores bateu carinhosamente em seu ombro:

– Obrigado, Waldemar. Você será gratificado.

Neno não respondeu. Começou a trocar de roupa e desejou mentalmente que ele fizesse da tal gratificação um outro uso. Massuda era-lhe inferior, porém resistiu muito ao castigo. De pescoço curto e grosso, assimilou bem os golpes e permaneceu de pé mesmo quando um curto de direito pegou firme seu mento. Waldemar bateu com raiva, fez tudo para derrubá-lo antes que a luta chegasse ao fim. O japonês gemeu, cambaleou, abaixou a guarda, sempre de pé. Ao fim do sexto round, seu rosto estava coberto de sangue e ele precisou de auxílio para voltar ao corner. Waldemar voltou sorrindo para o canto e Aristides recebeu-o com um abraço:

– Muito bem, Neno. Você ganhou os seis assaltos. Que japonês macho, hein.

Os promotores tinham os olhos fuzilando de raiva. Mas eram homens práticos e apressaram-se a salvar seus planos com a ajuda dos jurados, que votaram pelo empate.

O veredicto não surpreendeu Waldemar. Já sabia, há muito, que nem todos tinham o boxe como um ideal.

Criados num ambiente simples, sonhando muito, lutando duro para alcançar seus objetivos, os Zumbano-Jofre adotaram desde cedo o lema do “boxe limpo a qualquer preço” e juraram jamais prevaricar no ringue, por mais tentadoras que fossem as propostas. 

O caso Massuda trouxe complicações a Waldemar. Congelado pelos promotores, viu-se obrigado a voltar ao interior e aos circos para garantir o hospital a Higino. Mas o sacrifício valia a pena. Tonico e Erasmo, também irmãos de Waldemar, sentiam-se orgulhosos dele. Tonico exteriorizou sua reação agitando no ar o punho cerrado:

– Arrebento a boca do primeiro bunda-suja que me propuser uma marmelada!

Assine nossa newsletter

Toda sexta-feira enviaremos uma seleção de conteúdos em destaque na piauí