Nesta sexta-feira (6), às 22 horas, a Seleção Brasileira de futebol enfrentará o Equador, no Estádio Couto Pereira, em Curitiba, com expectativa de até 40 mil pessoas nas arquibancadas. A partida válida pelas eliminatórias da próxima Copa do Mundo, com transmissão da TV Globo, terá a concorrência de um outro evento esportivo que começa 45 minutos antes, na cidade de São Paulo.
Às 21h15, na Neo Química Arena, o estádio do Corinthians no bairro de Itaquera, será dado o pontapé inicial para a primeira partida na América do Sul da liga mais valiosa do mundo: a National Football League (NFL), o grande campeonato de futebol americano dos Estados Unidos. A expectativa de público é de quase 50 mil pessoas. A partida, que terá um show da cantora Anitta no intervalo, será transmitida na tevê aberta pela RedeTV!, na tevê a cabo pela ESPN e no YouTube pelo canal CazéTV.
É uma boa oportunidade para evocar o termo “briga de gigantes”, usada normalmente para embates que acontecem dentro do campo. O fato de o jogo oficial entre os times Philadelphia Eagles e Green Bay Packers, válido pela rodada de abertura da maior liga de futebol americano do planeta, ser realizado em território brasileiro para um público ainda maior que a partida da seleção de Vinicius Junior, Endrick e outras estrelas, é o auge de um trabalho de catequização que começou há mais de uma década, e que envolveu diversos entusiastas do esporte – a começar pela própria liga, que é paradigma global em organização de entretenimento.
Hoje são pelo menos 41 milhões de brasileiros interessados no futebol americano, de acordo com a pesquisa Ibope Repucom. Há dez anos, eram pouco mais de 3 milhões. O que mudou nesse meio-tempo? Esqueça o casal Gisele Bündchen e Tom Brady, ou até mais recentemente o efeito Taylor Swift, que namora um jogador da liga. Se ontem os jogos da NFL foram tratados pelo mercado brasileiro apenas como um enlatado, hoje eles encontram um público bem mais conectado ao que acontece no resto do mundo, afeito aos estrangeirismos e em busca de melhores opções de diversão.
A primeira vez que um jogo de futebol americano foi exibido no Brasil foi no longínquo ano de 1969, pela extinta TV Tupi. A emissora americana CBS ofereceu de graça ao canal de Assis Chateaubriand partidas gravadas da NFL para exibir em sua programação na esperança que uma base de interessados se criasse em solo nacional. Não houve grande entusiasmo. Anos mais tarde, foi a vez de o narrador Luciano do Valle tentar a introdução do football por aqui: a Rede Bandeirantes exibiu entre 1994 e 1998 partidas da liga, entre elas o Super Bowl, o grande e decisivo jogo da temporada. A paridade do dólar com o real e a abertura do país para as importações fizeram com que uma semente fosse plantada em solo nacional e surgisse público aqui e ali.
Ao mesmo tempo, com o surgimento das primeiras empresas de tevê a cabo, os jogos da NFL também chegavam por aqui através do canal ESPN, que passou a investir em transmissões em língua portuguesa, geradas de sua matriz americana, a cidade de Bristol, em Connecticut. Dois nomes foram importantes no processo, um deles um ramo nascido daquela semente fincada por Luciano do Valle nos anos 1990, outro fruto da expatriação para os Estados Unidos.
O paulistano Everaldo Marques sempre sonhou em trabalhar com esportes. Já tinha atuado na Rádio Jovem Pan e na TV Cultura quando recebeu o convite para um teste na ESPN Brasil. Os diretores do canal a cabo haviam determinado que as transmissões em português antes feitas dos Estados Unidos deveriam ser “tropicalizadas”, ou narradas por vozes aqui do Brasil. Coube a Everaldo e ao comentarista Paulo Antunes, um paulista expatriado que morou durante praticamente toda a infância e adolescência na Flórida, tocar as transmissões dos jogos da NFL para o público brasileiro.
A dupla mostrou boa sintonia. Everaldo disponibilizava aos telespectadores que o procuravam por e-mail uma apostila com as regras do jogo. Um público foi sendo criado na ESPN. Quando o locutor deixou a emissora, em 2020, havia ao menos quatro equipes de narrador e comentarista da modalidade no canal.
Desde 2018, o Brasil é o segundo maior público interessado em futebol americano fora dos Estados Unidos, perdendo apenas para o México, segundo as estimativas da liga. De olho nesse mercado potencial, a NFL primeiro colocou o pé aqui pelas redes sociais.
O ex-nadador carioca Pedro Monteiro, medalhista de bronze nos Jogos Pan-Americanos de 2003 nos 200 metros borboleta, já havia fundado sua agência de marketing e eventos esportivos, a Effect, quando em 2015 compareceu ao seu primeiro Super Bowl, um jogaço entre New England Patriots (na época o time de Tom Brady) e o Seattle Seahawks. Saiu de lá impressionado com o que viu, não só no campo. “A NFL é a maior organização esportiva dos Estados Unidos, disparada. Apesar de continuar crescendo, ela tem um teto dentro do próprio mercado americano. E esse teto está cada vez mais baixo. Por isso a internacionalização se faz necessária para manter sua taxa de crescimento absoluto”, disse Monteiro à piauí.
A Effect conquistou o direito de tocar as contas da NFL nas principais redes sociais (o perfil NFL Brasil no Instagram se aproxima de 1 milhão de seguidores) e, posteriormente, as contas de duas das equipes mais populares por aqui: os Patriots e o Miami Dolphins. Mas o plano foi sempre tentar trazer um jogo da liga para o Brasil. Havia o exemplo da NBA, a liga americana de basquete, que já havia realizado no país, em 2014, uma série de amistosos e jogos de pré-temporada com algumas de suas equipes – os chamados Global Games. Com o futebol americano havia outros complicadores, como a ausência de times competitivos de football por aqui (embora existam mais de duas centenas de equipes amadoras espalhadas pelo território nacional).
A ideia quase saiu do papel em 2017, quando a NFL buscava uma sede alternativa ao Havaí para o chamado Pro Bowl, jogo festivo que reúne os melhores jogadores da temporada e que não avançaram ao mata-mata. A ideia era realizar o jogo no Maracanã e houve uma série de visitas de representantes da liga ao Rio de Janeiro, mas as tratativas foram encerradas quando o governo do estado, à época governado por Luiz Fernando Pezão, disse que não investiria dinheiro na atração, ainda que garantisse apoio de segurança e de logística. A NFL esqueceu a cidade e seguiu para outros destinos. Promoveu partidas oficiais em cidades europeias como Londres, Frankfurt e Munique. Na América Latina, escolheu o estádio Azteca, no México, por cinco ocasiões.
Como o Azteca está em reforma para a Copa do Mundo de 2026, a liga voltou a pensar no Brasil como destino internacional da vez, e a cidade de São Paulo levantou a mão. À frente das tratativas estava o paulistano Gustavo Pires, presidente da SPTuris, companhia de capital misto ligada ao governo municipal, que já havia feito uma reunião com os executivos da liga um ano antes, quando revelou o interesse da capital paulista em receber uma partida de futebol americano profissional em seus domínios – em 2025, a NFL pretende aumentar de quatro para oito o número de jogos fora dos Estados Unidos.
São Paulo concorreu, então, com outras três grandes metrópoles: Rio, Madri e Barcelona. A prefeitura paulistana levou a melhor, garantindo um aporte de 5 milhões de reais. “Com base em eventos anteriores e em estudos internacionais, estimamos que em média cada turista gasta cerca de 1 mil dólares na cidade, o que pelo câmbio da semana daria algo como 5,8 mil reais. Na Fórmula 1 do ano passado, para fazermos um paralelo, o gasto foi de 4,7 mil reais. Essa média pode variar de acordo com a permanência dos turistas na cidade”, diz Pires.
Hugo Souza, goleiro do Corinthians, trocou camisas com Jaire Alexander, jogador do Green Bay Packers. O presente desagradou alguns torcedores corintianos, já que a cor verde é associada ao Palmeiras (Foto: Reprodução)
Os ingressos para o São Paulo Game, como a NFL decidiu batizar o jogo, evaporaram logo nas primeiras horas. A pré-venda online de 15 mil entradas foi exclusiva para clientes do banco de investimentos XP, que garantiu também os naming rights do jogo ao financiá-lo. “Nós já prevíamos uma alta demanda pelos ingressos para a primeira partida da NFL no Brasil, dado o caráter inédito do evento e o crescimento constante da popularidade da liga entre os brasileiros”, afirma o diretor de marketing da XP, Lisandro López. “No entanto, o volume de procura superou até as expectativas mais otimistas, com os ingressos esgotando em menos de duas horas.” A SP Turis espera algo em torno de 10 a 15 mil turistas na NeoQuímica Arena na sexta-feira, desses sendo cerca de 2 mil a 3 mil americanos (a terceira nacionalidade que mais visita a cidade regularmente, atrás apenas de chilenos e argentinos).
Fora a torcida que vai lotar o estádio em Itaquera, haverá uma série de festas, públicas e privadas, para assistir ao São Paulo Game em todo o território nacional (as chamadas watch parties, pra seguir no espírito do football). O NFL Experience, evento que geralmente é realizado apenas em jogos como o Super Bowl e cobra um valor substancial pelo ingresso, será realizado neste final de semana no Parque Villa Lobos, na Zona Oeste de São Paulo, com uma novidade: entrada gratuita. “A liga teve grande interesse em entrar no Brasil. Temos um povo consumista, seja comprando artigos dos times, seja comprando equipamentos para praticar o esporte, que ama esporte e ama participar de eventos como esse. Mas fizemos questão de fazer um evento de exibição gratuito, para que todos que não podem ou não conseguiram comprar ingressos tenham a oportunidade de ver o jogo”, diz Gustavo Pires, da SPTuris, que diz esperar 100 mil pessoas nos três dias de evento.
As franquias da NFL, como são chamadas as 32 equipes que formam o campeonato, estão entre as organizações esportivas com maior valor de mercado do mundo. O líder do ranking da revista Forbes é o Dallas Cowboys, cujo valor estima-se em 9,2 bilhões de dólares, mais que o Real Madrid (6,1 bilhões), do futebol, e o Los Angeles Lakers (5,9 bilhões), do basquete. Diante do já citado “teto” americano, é preciso crescer além das fronteiras para esse dinheiro se multiplicar.
A guerra pelos direitos de transmissão entre ESPN e Fox Sports fez a qualidade e os recursos tecnológicos usados pelas emissoras crescerem significativamente. Por iniciativa da liga, os contratos de tevê passaram a ser fragmentados. Não existe exclusividade na NFL: praticamente cada dia de jogo é cedido a uma empresa diferente. A lógica pode ainda causar estranheza no público brasileiro, mas é mais rentável para os donos do espetáculo.
Eles estão numa cruzada para tentar popularizar o esporte mundialmente. Recentemente, receberam boas notícias: a Olimpíada de Los Angeles, marcada para 2028, incluiu em seu programa o flag football, modalidade de futebol americano em que não há contato físico. No flag, a jogada é interrompida quando o adversário rouba uma das fitas presas à cintura de outro jogador.
No Brasil, a NFL tem organizado competições de flag football com alunos de escolas públicas. A última edição foi conquistada por uma equipe de Sorriso, cidade do interior do Mato Grosso. Como prêmio, os meninos viajarão aos Estados Unidos para assistir in loco às finais globais do campeonato, em 2025.
Conforme vai criando público no Brasil, é provável que a NFL estimule também o surgimento de atletas. O primeiro e único brasileiro a atuar na liga foi Cairo Santos, que hoje defende o Chicago Bears. Nascido em Limeira (SP), ele cursou o ensino médio nos Estados Unidos praticando soccer, mas por influência do ambiente acabou enveredando pelo football. Chegou à NFL em 2014 e continua sendo um dos melhores kickers (como são chamados os jogadores que entram só para chutar a bola oval, tentando acertá-la entre os postes).
Entre as jovens promessas brasileiras que podem sucedê-lo está Davi Belfort, filho do ex-lutador de MMA Vitor Belfort com a apresentadora de tevê Joana Prado (mais conhecida por sua personagem de dança, A Feitiçeira). Recrutado pela Universidade Virginia Tech, que abriga um dos melhores programas de futebol americano dos Estados Unidos, Davi sonha com a NFL. Sua carreira está sendo administrada pela Octagon Brasil, a agência de marketing esportivo de Ronaldo Fenômeno.