Depois de um turbulento governo Bolsonaro, a vitória de Lula nas eleições do ano passado trouxe expectativas de uma normalização nas relações entre Executivo e Legislativo. Experiente no trato com o Congresso e como gestor de coalizões depois de dois mandatos presidenciais, esperava-se que Lula desse a devida atenção à composição partidária de seus ministérios para que o governo tivesse ao menos uma maioria simples nas duas casas. Nesse aspecto, Lula não desapontou. Seus ministros representam dez partidos de variados matizes ideológicos com representação no Congresso. Em tese, com essa composição Lula teria confortáveis 269 votos na Câmara. Porém, no meio do caminho tinha um Lira.
Desde sua eleição para presidente da Câmara em 2021, o deputado alagoano Arthur Lira (PP-AL) teve uma ascensão avassaladora na constelação dos expoentes da República. Aproveitando-se da inaptidão do ex-presidente Bolsonaro e de seus auxiliares próximos em formar base legislativa, Lira tomou as rédeas do presidencialismo de coalizão para consolidar um processo histórico de fortalecimento do poder Legislativo face ao Executivo. Principal artífice do famigerado “orçamento secreto”, Lira transferiu para o cargo de presidente da Câmara a função de gestor da coalizão.
Obviamente, tanto Lula quanto Lira sabiam que a dinâmica entre os dois poderes mudaria. Tomando a iniciativa para a acomodação, Lira foi um dos primeiros a reconhecer a vitória de Lula e se disponibilizou a aprovar a “PEC da Transição” antes mesmo de Lula assumir. Ao mesmo tempo, apesar de enfraquecido com a decisão do STF em dezembro do ano passado de considerar o orçamento secreto inconstitucional, Lira contava com o apoio de líderes do Centrão para negociar alternativas que mantivessem partes do orçamento sobre a discricionariedade da Câmara. Nesse esforço de acomodação, Lula apoiou a recondução de Lira à presidência da Câmara, fazendo com que o deputado alagoano fosse reeleito com 464 votos, a maior votação já atingida por um candidato ao cargo.
Passados seis meses da posse, a relação entre Lula e Lira azedou. A recente tensão em relação à aprovação da medida provisória definindo os ministérios do governo Lula marcou a mudança de tom. Aprovada na Câmara um dia antes de caducar e com exíguo tempo para ser apreciada pelo Senado, o episódio foi visto como uma demonstração de força de Lira. A Câmara, com aval de Lira, impôs alterações importantes na organização ministerial, como o enfraquecimento do Ministério do Meio Ambiente, além de obter a liberação de R$ 1,7 bilhão em emendas parlamentares. Além disso, Lira pautou e aprovou projetos de lei contrários à agenda ambiental do governo, como a definição do marco temporal para terras indígenas e o relaxamento do código florestal. Com declarações criticando a falta de articulação política do governo, o presidente da Câmara mostrou que, sem o seu apoio, qualquer votação sairá cara.
Parte da atenção dada ao caso veio da intenção explícita de Lira em usar a votação para exigir que Lula “dê mais atenção ao trato com o Congresso”. Um recado direto para que o arranjo alternativo ao “orçamento secreto” agora via emendas para ministérios (as chamadas RP2) fossem executadas com maior celeridade. Além disso, lideranças partidárias estariam insatisfeitas com o atropelo do governo ao tentar negociar individualmente com parlamentares a liberação das emendas. No esforço de manter suas hierarquias internas, líderes partidários do Centrão cerraram fileiras com Lira.
Para além do protagonismo recente de Lira, o fato de que presidentes da Câmara em geral têm sido nomes marcantes da política nacional nos últimos dez anos é um sinal das mudanças estruturais do presidencialismo brasileiro. Afinal, no tipo ideal de nosso presidencialismo de coalizão, presidentes teriam uma série de prerrogativas orçamentárias e legislativas para formar e gerir sua coalizão. Não por acaso, os governos FHC I e II, Lula I e II podem ser considerados os anos de ouro desse modelo. Mesmo sendo eleitos por partidos minoritários no Congresso, Fernando Henrique e Lula usaram as prerrogativas presidenciais para formar bases legislativas estáveis e grandes o suficiente para aprovar importantes reformas constitucionais.
Em um texto anterior, havia procurado resumir três das principais prerrogativas presidenciais que se enfraqueceram desde a promulgação da Constituição de 1988. A regulação do trâmite legislativo das medidas provisórias, o caráter impositivo de emendas parlamentares ao orçamento e a consolidação do heterodoxo uso das emendas do relator para distribuição de recursos via ministérios retiraram do Executivo federal instrumentos importantes para a gestão de coalizões, fortalecendo a figura do presidente da Câmara nesse papel.
Esse novo cenário ficou claro para Lula com a incapacidade de sua composição ministerial diversificada se materializar em votos na Câmara. O controle da agenda legislativa pelo presidente da Câmara, somada à possibilidade de gerenciar detalhadamente a destinação de verbas orçamentárias volumosas, diminui consideravelmente o valor de face de cargos de ministro. Com o presidente da Câmara fortalecido institucionalmente, líderes partidários não só aumentaram seu poder de barganha como passaram a ter um bedel para cobrar suas faturas. Além disso, obtiveram a possibilidade de controlar recursos sem a necessidade de participar formalmente do governo.
A eleição de 2022 também cristalizou mudanças importantes no sistema partidário brasileiro. Em primeiro lugar, as regras eleitorais visando enxugar o número de partidos, como o fim das coligações eleitorais para eleições proporcionais e o estabelecimento de cláusulas de barreiras com percentuais mínimos de votação e obtenção de cadeiras, surtiram efeito. Enquanto em 2018, 30 partidos conseguiram eleger ao menos um deputado, em 2022 esse número cai para 19, se contarmos as federações partidárias, sendo que somente 12 atingiram as cláusulas de barreira. Em paralelo, essa concentração partidária avançou mais à direita do espectro ideológico brasileiro com o PL de Bolsonaro elegendo 99 deputados, e o Centrão, com suas cinco principais legendas (União Brasil, PP, MDB, PSD e Republicanos) somando 231 deputados. Enquanto um menor número de partidos com efetivo peso parlamentar facilita a negociação entre governo e líderes partidários, o efeito dessa concentração é o aumento do preço para que esses partidos, de fato, entreguem seus votos.
Uma segunda dinâmica é a clara consolidação ideológica do Centrão à direita no espectro político brasileiro. Divergindo do mote “nem de esquerda, nem de direita ou centro” criado por Gilberto Kassab, presidente do PSD e um dos líderes do Centrão, Arthur Lira não só tem defendido publicamente a manutenção de reformas liberalizantes implementadas durante os governos Temer e Bolsonaro, como avançado no desmantelamento da regulação ambiental. As recentes votações impondo derrotas claras à agenda do governo nesses temas mostram que a discussão não se trata somente de cargos e recursos. Para Lula, portanto, os custos para formar sua coalizão não só aumentam pelo atravessador Lira, mas por genuínas diferenças ideológicas sobre os rumos do país. Com Lula e Lira, o Brasil atual vive o seu momento de coabitação – fenômeno típico de sistemas semipresidencialistas em que presidente e primeiro-ministro ocupam posições antagônicas no espectro político. A diferença é que Lira não é primeiro-ministro.
Na cartilha do presidencialismo de coalizão brasileiro, podemos vislumbrar duas saídas para esse impasse. Uma alternativa é Lula assumir o caráter minoritário de sua coalizão, visto o poder aglutinador do presidente da Câmara, e tratar cada votação como uma negociação em si. A história brasileira mostra que essa estratégia é custosa para os cofres públicos, além de altamente instável, com constante potencial de choque e impasses entre os poderes. Porém, há aqui um elemento novo, com o qual políticos e analistas ainda estão aprendendo a lidar: a ascensão do Supremo Tribunal Federal. A crescente atuação do tribunal nos conflitos entre Executivo e Legislativo pode tornar essa estratégia mais viável. Se a judicialização da política é o novo normal, um presidente minoritário, contudo mais ideologicamente alinhado ou mais capaz de dialogar com o STF, pode fazer com que a balança de Brasília pese mais a seu favor em momentos críticos. Contudo, as condições nas quais o Supremo pode funcionar para resolver impasses, em vez de criar suas próprias tensões, ainda não estão totalmente claras.
A segunda saída é incorporar efetivamente partidos do Centrão no governo, dando ministérios de maior prestígio e recursos em troca de votos. Em 2021, Bolsonaro fez esse movimento com o próprio Lira, ao promover uma reforma ministerial na qual o PP assumiu posições centrais no governo. O desafio, porém, é saber como Lula poderia equacionar posicionamentos políticos tão distintos. Uma solução é seguir o exemplo de sistemas parlamentaristas multipartidários no qual partidos estabelecem uma pauta mínima comum para a formação do governo. Assim, os atores concordam prévia e publicamente sobre quais discussões e votações serão priorizadas ao longo do governo. Apesar de um recurso relativamente simples de formalização das preferências para sinalizar a eleitores o que cada partido deseja priorizar em um contexto de coalizão, essa não é uma tradição na formação de coalizões de nosso presidencialismo. Mas não é completamente estranha. O próprio Lula mencionava publicamente a necessidade de estabelecer uma “agenda mínima de coalizão” durante as negociações com Michel Temer para incluir o então PMDB como parceiro formal na coalizão governista.
A sabedoria popular diz que o “papel aceita tudo”. Seria ingênuo pensar que um mero documento formalizando os objetivos da coalizão governista ajudaria a dar mais estabilidade ao sistema político brasileiro. Porém, a experiência de países parlamentaristas mostra que essa formalização dá mais legitimidade para a distribuição de cargos e recursos, visto que ela passa a ser feita como parte de um plano mais abrangente. Além disso, essa discussão força os membros da coalizão a alinhar suas preferências em prol de objetivos comuns e coloca um compromisso público ao qual eleitores podem fazer referência quando decidirem a quem atribuir responsabilidades pelo sucesso ou fracasso de um governo. No caso do Brasil, tal compromisso também teria a função de retirar legitimidade do presidente da Câmara para negociações com o governo ao dar um papel mais relevante aos líderes partidários como efetivos negociadores em nome de seus partidos. Já que Lula e Lira estão fadados a dividir o poder pelos próximos dois anos, talvez a formalização dos objetivos do governo entre o presidente e membros de sua coalizão torne a coabitação mais aprazível.