A ideia parece ter nascido naquelas reuniões convocadas de emergência, quando o núcleo duro do governo – perdido, pressionado e parecendo omisso – necessita urgentemente dar uma explicação minimamente crível para um assunto maximamente complexo. Aí vem um assessor com um palpite que na hora parece a solução, mas que à medida que o tempo passa só engrossa o pesadelo. E aquele era o caso. Dias antes, policiais armados invadiram parte do Centro de São Paulo, conhecido como Cracolândia, numa ação já conhecida: usando violência, expulsaram usuários de drogas, avançaram contra moradores, destruíram prédios, inviabilizaram residências. Usaram bombas e tiros de bala de borracha com o objetivo de fazer uma faxina no quarteirão mais desolado da cidade. Houve feridos, desabrigados, inclusive crianças. A repercussão foi devastadora e a moral do governo ficou da altura de uma calçada.
Três dias depois da desastrosa operação, o núcleo duro do governo inventou um evento reunindo o prefeito João Doria e o governador Geraldo Alckmin, ambos do PSDB, para uma entrevista coletiva in loco com o objetivo de minimizar a ação violenta. Ainda estava viva na memória dos telespectadores e moradores a cena de uma retroescavadeira derrubando paredes de uma casa habitada, o que feriu três pessoas.
A conversa com os jornalistas ocorreria na esquina da rua Helvétia com a alameda Cleveland, na porta do centro de atendimento do mais recente projeto de saúde e assistência social anunciado pela prefeitura, o Redenção. Antes de saírem do Comando Geral da Guarda Civil Metropolitana, a cerca de 600 metros dali, no entanto, Doria e Alckmin foram recepcionados por um exército de manifestantes que propalavam uma chuva de insultos.
As emissoras de tevê estavam presentes e registraram tudo desde o primeiro momento em que um jovem de camiseta rosa de mangas compridas e jeans claro parou em frente ao carro do governador: “Vai pra Brasília! Deixa que a gente fica aqui!” Tomando as dores do chefe, o subsecretário de Comunicação do governo estadual, Carlos Graieb, respondeu ao manifestante: “vai pra casa cuidar dos seus problemas”. Transtornado, o jovem passou a seguir Graieb durante toda a transmissão, que durou cerca de dez minutos, batendo pé, apontando o dedo e retrucando a postura de Graieb. “O senhor conhece essas pessoas? O senhor conhece esse território? Vem aqui ficar uns dias pra entender o problema! Vem falar com povo!”, gritou o jovem. Quem assistia à cena pela tevê – sem som –, tinha só o gestual da eloquência de ambos e imaginava que o próximo round seria os dois rolando no asfalto aos tapas. Cercado por repórteres, ele não quis se identificar. Aproveitando uma distração, sumiu. Graieb abotoou o blazer, passou a mão no cabelo e entrou num carro preto.
O sujeito de camisa rosa era o ator e diretor teatral Lucas Bêda, 31 anos, um dos diretores da Cia. Mungunzá, instalada desde 2016 em um teatro feito de contêineres na rua dos Gusmões, próximo da Cracolândia. O terreno tem cerca de 1 000 metros quadrados e conta com uma horta hidropônica comunitária, bancos, grama ao ar livre, um bar e um local de espetáculos com capacidade para até oitenta pessoas. O refúgio da companhia de dramaturgia de Bêda – vencedora de um Prêmio Shell de melhor direção em 2011 – também é ponto de encontro de movimentos de defesa dos moradores da Cracolândia, entre eles o A Craco Resiste, cujos ativistas foram responsáveis pelo protesto que espantou em velocidade de bala o prefeito e o governador do local.
Bêda, um apoiador da Craco – como o movimento é conhecido –, não se titula membro do grupo, mas cede o espaço como “QG informal” para reuniões, debates, festas de arrecadação, depósito de roupas doadas para os dependentes químicos, mantimentos e água, um problema aparentemente insolúvel para o poder público e moradores da capital paulista há quase trinta anos. E, como mostraram as emissoras de tevê, costuma ser efusivo nas discussões pela turma. “Eu acredito na causa da Craco. As políticas de redução de danos devem ser preservadas”, disse o ator. “Achei um disparate o governo vir anunciar moradia um dia depois de derrubar um prédio em cima das pessoas e bater em todo mundo”, desabafou Bêda, que contou frequentar a Cracolândia, como ativista, desde os 17 anos de idade. Ele, como os outros do grupo, negam ser usuários da droga.
Criado no final de 2016 para coibir ações violentas da Polícia Militar contra os dependentes químicos e moradores da Cracolândia, a Craco Resiste usa a tática de vigílias noturnas e promoção de eventos culturais e esportivos diários nas ruas tomadas por usuários. Um relatório do grupo, publicado no dia 13 de maio, uma semana antes da operação policial, denunciava pelo menos seis conflitos generalizados entre policiais e usuários nos últimos anos. Nesse período, foram disparadas, sem necessidade, balas de borracha e bombas de gás lacrimogêneo, resultando em diversos feridos. O mais violento deles, no dia 17 de janeiro, culminou numa troca de tiros com traficantes em plena rua.
“Antes da operação do Doria tínhamos uns 4 mil seguidores no Facebook. Triplicamos de tamanho”, me disse na última sexta-feira à noite Raphael Escobar, um dos fundadores da Craco Resiste, um jovem de barba cerrada preta e cabelos curtos pintados de loiro, enquanto segurava um copo de pinga com limão e comia batatas fritas rodeado por cinco membros do grupo em um bar no Centro da capital paulista. O artista plástico de 29 anos comemorava com a voz rouca e os olhos cansados – resultado de uma semana agitada para o grupo que havia ganhado súbita notoriedade. O movimento comandado por Escobar e outros líderes tem cerca de cinquenta membros que atuam diretamente na Helvétia. O perfil é variado dentro de um espectro determinado: jovens de classe média, em geral atores, arquitetos, artistas, assistentes sociais, sociólogos ou jornalistas.
Vestindo calças pretas e a camiseta de cor laranja berrante com a logo da Craco Resiste – dois punhos cruzados segurando cachimbos –, Escobar acabara de voltar do fim da ocupação do prédio da Secretaria Municipal de Direitos Humanos, liderada pela Craco desde aquela quarta-feira em que Lucas Bêda enfrentou Alckmin. Após três dias de ocupação, o grupo havia protagonizado o pedido de demissão de Patrícia Bezerra, vereadora tucana licenciada e então titular da pasta de Direitos Humanos de Doria. Patrícia havia taxado como desastrosa a atual estratégia para a Cracolândia. A fala da ex-secretária, que chegou a afirmar não ter medo de perder sua cadeira pelas críticas que fez, foi filmada e reproduzida na página da Craco Resiste, marcando um ponto de virada no protagonismo do movimento.
“Éramos pequenos. No dia 26 de dezembro do ano passado convocamos uma reunião na Praça Júlio Prestes e veio cerca de trinta pessoas ligadas a diferentes movimentos”, explicou Escobar, sobre a origem da Craco Resiste. “A gente já previa uma escalada na violência por conta da campanha do Doria, prometendo acabar com a Cracolândia. E como é de costume, em janeiro sempre tem uma operação violenta e de caráter higienista na região, o que acontece de modo regular desde que o Gilberto Kassab era prefeito”, disse, ao lembrar da Operação Sufoco, de 2012, cujo objetivo era a evacuação dos dependentes químicos para reurbanização do bairro. Sem sucesso.
À mesa estava o sociólogo Marcos Vinícius Maia, 34 anos, outro membro da Craco Resiste. Ele é o responsável pela articulação política do movimento. “Foi a partir de sugestões dos usuários que a gente criou nosso nome e a nossa estratégia, como montar as vigílias noturnas para conter o abuso da polícia, a distribuição de água e roupas e uma agenda com rodas de capoeira e samba, oficinas de arte e exibição de filmes”, contou. “A ideia é atrair diferentes pessoas para conhecer a região, gerar uma atenção maior para as suas carências.” De físico compacto e rosto barbado, Maia, dificilmente avistado sem uma boina italiana na cabeça, é também um dos coordenadores do antigo programa De Braços Abertos, da gestão do ex-prefeito de São Paulo, o petista Fernando Haddad, substituído agora pelo projeto Redenção. “Um repórter me perguntou na cara dura se eu faço apologia ao uso do crack. Eu respondi que faço apologia aos direitos humanos”, disse. Maia contou ter dado mais de quinze entrevistas a diversos veículos de comunicação horas antes de nos encontrarmos – resultado da exposição midiática do grupo naquela semana, sobretudo num ato que ocorria em paralelo à ocupação da Secretaria Municipal de Direitos Humanos. A manifestação tinha reunido cerca de 400 pessoas de diversas organizações, saindo da rua Helvétia na direção do ainda ocupado prédio da Secretaria.
Aos gritos de “Doria, vai segurando! Vai segurando porque a Craco tá chegando!” e “Ô Sabará, pode descer! A gente quer trocar ideia com você”, em referência ao secretário de Assistência e Desenvolvimento, Filipe Sabará, a caminhada passou pelos novos pontos de consumo de crack, na Avenida Duque de Caxias, a poucos metros da Cracolândia, e foi ganhando corpo entre os moradores do fluxo dispersos pelo Centro, que dançaram passinhos e improvisaram funks para falar de resistência – e, claro, sobre fumar pedras de crack. Na frente deles ia o “cachimbão”, uma espécie de estandarte dos militantes, ideia do pessoal que os apoia de dentro do fluxo, segundo Maia. Feito com um cano de PVC e um balde preto, o cachimbo é alvo de críticas e apontado como uma apologia ao crack e ao tráfico de drogas. Tráfico que, segundo detratores, estaria financiando a Craco Resiste, juntamente com partidos de esquerda e ONGs.
Eles seriam os beneficiários da miséria da Cracolândia, de acordo com suspeitas levantadas por vozes opositoras lideradas pelo vereador Fernando Holiday, do Democratas, o mais ativo adversário do movimento nas redes sociais. “O nome já é um problema, passa a impressão justamente de um movimento que defende aquela área da Cracolândia, um local de submundo, onde as pessoas habitavam em situação degradante”, me disse Holiday. “A Craco Resiste incentiva o uso de crack. Já vi cartazes de pessoas defendendo o direito das pessoas de usarem crack em qualquer lugar da cidade”, reiterou o vereador eleito pela primeira vez nas últimas eleições com forte discurso conservador. Para ele, a política de redução de danos do programa De Braços Abertos, defendida pelos ativistas da Craco Resiste, teve como principal resultado o aumento no consumo de drogas.
O De Braços Abertos oferecia moradia e auxílio de 15 reais por dia para quem trabalhasse, sem necessidade de abstinência. Eram cerca de 500 beneficiários. Um levantamento da organização Open Society realizado em 2016 mostrou que 67% deles reduziram o consumo de drogas e 95% acreditam que o programa teve impacto positivo em suas vidas.
Novo alvo da pressão dos ativistas da Cracolândia, o secretário Sabará, filiado ao Partido Novo, é um dos principais articuladores do Redenção, projeto substituto do De Braços Abertos, que já nasce criticado pela truculência e falta de entendimento prévio com órgãos como a Defensoria e o Ministério Público, que durante a última semana impuseram sucessivas derrotas ao governo municipal, a exemplo de uma liminar impedindo novas demolições sem o devido encaminhamento de moradores aos programas de habitação.
“Não vamos parar. A ocupação só terminou após a promessa de uma audiência pública com o secretário para explicar os próximos passos do projeto, que até agora não passou de marketing. Se é um projeto para pessoas e não para os prédios, como eles dizem, deveriam ter escutado as pessoas antes”, criticou a antropóloga Roberta Costa, 31 anos, usando chinelos de dedo e vestindo uma saia xadrez comprida enquanto tomava uma cerveja sentada em um banco na Praça Júlio Prestes no último domingo. Ela também é uma das criadoras da Craco Resiste. Cerca de três horas antes de nos encontrarmos, o Tribunal de Justiça havia derrubado, por liminar, decisão que autorizava equipes da administração municipal a apreenderem usuários para avaliação médica e, em último caso, interná-los compulsoriamente, motivo de grande temor entre a população do fluxo, segundo Costa. “Para elas, de certa forma, isso seria como perder uma família”, comparou. “Na rua eles têm também essa coisa da diversão, do afeto e da construção de relações. Na literatura antropológica já se disse que a Cracolândia é um território ambulante, ela não é delimitada por um conjunto de prédios, como faz crer o prefeito João Doria, mas por um conjunto de pessoas. É nisso que a política dele tem errado”, explicou ela.
Formada pela Universidade de São Paulo, ela trabalhou com iniciativas de redução de danos na organização É de Lei, que, entre outras coisas, distribui piteiras de silicone e protetores labiais para evitar o compartilhamento de cachimbos e o aumento de exposição dos usuários a doenças como hepatite e Aids. Costa deveria estar trabalhando em seu mestrado, mas a situação atual da Cracolândia vem tomando seus dias. Moradora do Butantã, ela viveu durante uma semana entre os usuários de crack no fluxo acompanhada do amigo Raphael Escobar, em dezembro do ano passado, alguns dias antes de criarem a Craco Resiste. “Foi um intensivão no fluxo”, disse. “Rola um carinho genuíno deles, eles protegeram a gente e dividiram o pouco de comida que tinham. E tinha que seguir as regras deles, como não fumar crack e não tirar fotos, pois alguns são foragidos da polícia e outros vêm de famílias desestruturadas e não querem ser achados”, explicou.
Costa afirma estar surpresa com a forma orgânica que a Craco Resiste cresceu. “As coisas vão acontecendo de acordo com as pernas e com as condições disponíveis, muito como um exército de Brancaleone. O movimento é autônomo e horizontal, que vem muito dessa cultura de junho de 2013 e busca força na coletividade. Isso é muito potente e tem atraído as pessoas”, teorizou. “O objetivo é acabar com a violência policial. Como vamos chegar lá, nós não sabemos, mas vamos dando passos conforme a coisa vai ganhando forma.” Escobar arrematou: “O prefeito playboy declarou extinta a Cracolândia, mas ela não acaba porque ela não é um território, é uma comunidade. A craco resistirá.”