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No sofá, com a crise

Desempregados passam a lavar carros em ruas do Rio e serviço conta até com sofá para os clientes. Um deles pergunta: “Prefere que eu assalte?”

Elvira Lobato | 11 ago 2018_07h00
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Um taxista tem os olhos grudados no celular, enquanto aguarda calmamente sentado em um sofá que dois jovens concluam a lavagem de seu táxi. São duas horas da tarde. É inverno no Rio de Janeiro, mas o sol e o calor são escaldantes. O cliente, porém, parece confortável sob o toldo de plástico roto que protege o sofá e a aparelhagem de som, de onde emana o novo funk do Nego do Borel: “Sabe aonde você tá?/Naquele lugar que tu ouviu falar,/aonde tu senta,/aonde tu sobe,/aonde tu desce,/aonde tu rebola…/Ai, me solta, porra!

Os lava-jatos clandestinos sempre existiram na periferia do Rio de Janeiro e nos municípios da Baixada Fluminense, como uma válvula de escape para jovens desempregados conseguirem algum dinheiro perto de suas casas. Mas, com a crise econômica do país e o colapso do setor público do Rio, o serviço se multiplicou e tomou conta de importantes rotas de acesso entre a Zona Norte e o Centro da cidade. A exemplo de sua congênere que tem abalado a política nos últimos anos, o lava-jato clandestino está fora do controle dos poderosos e nada indica que vá acabar.

A menos de 300 metros do Estádio do Maracanã, na avenida Radial Oeste – que margeia a linha do trem –, começa uma sequência de lava-jatos improvisados. Todos eles têm sofás sobre a calçada e toldos de proteção contra o sol e a chuva, o que dá a impressão de salas de visita ao ar livre. Um desavisado que passar pelo local pela primeira vez pode pensar que os móveis foram abandonados na via pública ou estão à venda, pois há vários em bom estado. Nas proximidades, fica um amontoado de barracos da antiga Favela do Trem, que vários governos tentaram remover e foram reocupados.

Lava-jatos clandestinos se instalaram também na avenida Leopoldo Bulhões – tristemente conhecida como “Faixa de Gaza”, por causa dos frequentes tiroteios entre policiais e traficantes que controlam as muitas favelas da região – e na rua Visconde de Niterói, endereço da famosa escola de samba Estação Primeira de Mangueira. Elas margeiam a linha do trem no lado oposto ao da avenida Radial Oeste.

É impossível não perceber a mudança no cenário. Além das placas com os preços dos serviços, jovens de maioria negra e oriunda das favelas dançam e agitam os braços para chamar a clientela. Por módicos 5 reais é possível lavar e secar o carro por fora. O serviço funciona 24 horas por dia, e o ritmo só diminui nos domingos e feriados. Eles se sucedem ao longo das avenidas, a perder de vista, e apesar da concorrência praticam o mesmo preço.

Hipnotizada pela profusão de placas de ofertas do serviço, estaciono em uma curva na rua Visconde de Niterói, próximo ao morro da Mangueira, para entender o novo fenômeno da cena carioca. Aprendo que, apesar de informal, há regras e padrões mínimos de qualidade a seguir, como oferecer o sofá e o toldo. A disputa por clientes é intensa naquelas imediações.

Douglas Santiago, de 23 anos, esfrega o táxi do carioca Ricardo Tadeu, de 52 anos, que espera no sofá. O taxista conta que a “epidemia” dos lava-jatos começou há cerca de um ano e que o grosso da clientela é formada pelos motoristas do Uber. Segundo ele, a empresa exige que seus associados tenham os carros limpos, o que expandiu o mercado para a lavagem informal de baixo custo.

A principal crítica feita a eles – além de transtornos ao trânsito – é que usam água e energia elétrica clandestinas, mas o taxista sai em defesa dos jovens desempregados: “Tem muito condomínio de luxo que faz gato na rede de água e luz para diminuir a conta. Se os ricos roubam, por que os pobres devem ser punidos?” Santiago interrompe o trabalho por um momento, me olha nos olhos e emenda: “O que a senhora prefere: que eu trabalhe aqui ou que eu a assalte?” “Que trabalhe!”, respondo sem hesitar.

Enquanto a indústria brasileira diminuiu o número de horas trabalhadas e só ocupou 75,9% de sua capacidade de produção em maio último, os lava-jatos funcionam em horário integral. Santiago, a mãe e a irmã trabalham no ponto das 7 às 19 horas, e outra família os substitui no turno da noite.

A Guarda Municipal aparece algumas vezes, apreende produtos e multa os clientes por estacionamento em local proibido. Mas tudo volta ao normal no dia seguinte. “É como enxugar gelo”, analisa o taxista. “Graças a Deus tem serviço para todos. Trabalho para concluir o ensino fundamental e espero colher os frutos lá na frente”, prosseguiu o rapaz.

Poucos metros adiante, encontro o “Lava Jato das Mina”, o único no trajeto a cargo apenas de mulheres. São três moradoras da Mangueira. Elas se apresentaram como Jéssica, Natacha e Andréia, mas riram quando anotei os nomes. A mais nova, de 17 anos, já é mãe. Elas trabalhavam como manicure em pequenos salões e decidiram encarar a concorrência masculina no asfalto. Quando as abordei, um motorista do Uber aguardava a limpeza do carro repousado no sofá velho que um gari da prefeitura havia recolhido no lixo e doado para elas.

As mulheres reclamaram do assédio dos homens: “Acontece o dia todo. Alguns abusados oferecem dinheiro por um programa, mas a gente esculacha e avisa que se nos encostarem a mão, a gente joga eles na linha do trem.” Apesar das duras condições de trabalho – sob sol e chuva e sem banheiro por perto – elas consideraram que a troca de ocupação foi bom negócio.

Meus entrevistados não mostraram interesse pelas eleições que se avizinham, nem pelo governo atual. Disseram que não cogitam votar e que não enxergam diferenças substanciais entre os pré-candidatos. Talvez por associação com seu trabalho, elogiaram a Operação Lava Jato e o juiz Sérgio Moro. Para Douglas Santiago, Moro é o juiz faxineiro que “deu um tapa com luva de pelica na cara da sociedade ao limpar a sujeira”.

As mulheres resumiram suas expectativas sobre a eleição com ironias ao bordão da Rede Globo sobre o país que esperam nesta eleição. “O país que eu quero é sócio da Ambev, para que nunca nos deixe sem cerveja”, afirmou Jéssica para gargalhadas das demais.

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