36 horas. Essa foi a duração da estadia de Russell Crowe no Rio, vindo de Roma, onde foi recebido em audiência pública pelo papa. Tempo suficiente para ir à academia e à sessão de pré-estreia de , razão da sua passagem pela cidade, além de passear de bicicleta, conhecer o mirante Dona Marta, dar uma entrevista coletiva e outra, exclusiva, ao Fantástico que durou 1’40” quando foi ao ar. Ao partir, exasperou-se no trânsito. Na sua página do Twitter escreveu ter levado duas horas e vinte minutos de Ipanema ao aeroporto.
Crowe desembarcou de um jatinho no Aeroporto Tom Jobim, na quarta-feira, 19 de março, por volta das dez da noite. Pouco depois, foi visto fumando na sacada de um hotel, em Ipanema, fato considerado digno de registro por um site que acompanhou sua viagem promocional. Na manhã seguinte, Crowe “postou uma foto no Twitter em que aparecem a Pedra da Gávea e o Morro Dois Irmãos. ‘Na rua, às 6h01’, legendou. Ainda pela manhã, escreveu no microblog: ‘Então… Alô, Brasil… Minha primeira vez neste lugar fascinante.’” – todas informações altamente relevantes, sem as quais seus seguidores não poderiam chegar ao fim do dia.
À noite, o acesso ao cinema Lagoon estava cenografado, na tentativa de parecer a entrada de uma arca, à espera de Crowe e dos convidados, que incluiam vencedores de uma promoção, todos de camiseta vermelha e dando declarações de admiração pelos filmes do astro. Não faltaram selfies e autógrafos. Crowe parecia mais resignado do que satisfeito. Diante da afirmação de um entrevistador de que “Noé é um cara muito religioso”, ele o corrigiu: “Eu não acredito que isso seja correto, por que não creio que, na verdade, existisse religião naquela época. Acho que é mais correto dizer que Noé era um cara muito espiritual. Um homem muito espiritual, muito conectado. Mas não acho que religião seja a palavra correta. Talvez essa seja apenas uma barreira de linguagem.”
O passeio turístico, feito de bicicleta, atrasou uma hora e meia a coletiva de imprensa, na qual, segundo um repórter, Crowe teria dado “um show de antipatia”. Depois de ouvir a primeira pergunta, teria respondido que iria “esperar o povo daqui da frente parar de falar para poder responder”. Feito silêncio, retrucou com um “não” seco à pergunta se sua religiosidade teria mudado por ter feito um filme bíblico. “Algumas perguntas merecem resposta curta”, disse em tom de brincadeira. E completou: “Espero que a próxima pergunta seja mais interessante.” Suas respostas teriam causado certo constrangimento, o que o levou a tentar desconstrair o ambiente dizendo: “Vocês são sempre quietos assim?”
“Estou muito feliz por estar aqui”, Crowe declarou – frase protocolar, que nem por isso deixou de ser noticiada. O que ele mais gostou do Rio foi a temperatura. Não tendo feito frio, nem chovido, achou “muito bom estar em um lugar” onde pode usar bermuda, short e sandálias. Descreveu o passeio de bicicleta como um caos: “Sempre tento andar de bike em todo lugar que vou. As pessoas aqui se comunicam muito com as outras. Parece que tem uma surpresa a cada esquina. Eu adorei esse primeiro dia.” Crowe não hesitou em dar um conselho “de amigo” aos brasileiros. “Falando de coração” recomendou melhorar “essa merda de trânsito, antes de tudo. É horroroso!”
Crowe cumpriu a contento seu papel de batedor, preparando, com duas semanas de antecedência, a estreia avassaladora no Brasil, em 3 de abril, quando Noé ocupou 1015 salas, 40% das telas do País. No dia seguinte, Crowe estava em Londres, onde participou do Graham Norton Show, transmitido pela BBC HD. Segundo a NET, o programa “apresenta convidados incríveis, histórias divertidas e muitas personalidades. Tudo isso… e Graham Norton, é claro. O mundo de Graham Norton é pura diversão!”.
Mistura de Hebe Camargo e Chacrinha, o comediante irlandês Graham Norton recebe celebridades num longo sofá vermelho, fazendo perguntas bizarras. Para terminar, pessoas do auditório tentam contar algo tão inusitado quanto engraçado, sentadas em uma poltrona também vermelha. Para chegar ao final das suas histórias não podem ser entediantes. O castigo é ser ejetado da poltrona, graças à manivela acionada pelo próprio Norton ou, em ocasiões especiais, por um dos seus convidados. Nesse dia, Russell Crowe deixou claro que o privilégio seria dele e não hesitou em ser impiedoso com uma moça que mal começara a falar, coroando dessa maneira sua missão de promover a estreia de Noé mundo a fora, filme pelo qual teria recebido salário de $ 13 milhões de dólares.
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Noé estreou no Estados Unidos em 28 de março, antecedido pela expectativa de que faria “chover na bilheteria”. Previsão confirmada pela renda obtida até 18 de maio de $ 343 milhões de dólares (2.7 vezes seu custo de produção), sendo 70.8% no mercado externo.
No Brasil, teve a maior renda de abertura (3,4,5 e 6 de abril) do ano até a data da sua estreia, arrecadando R$ 20,4 milhões e sendo visto por 1,34 milhão de espectadores apenas nesses quatro primeiros dias. Até 12 de maio, depois de seis semanas em cartaz, chegou à renda acumulada de R$ 67 milhões e 4.7 milhões de espectadores, pouco inferior a Rio 2, e pouco acima de Capitão América 2 – O soldado invernal.
Essa receita representa 12.5% da renda de no mercado externo. Participação expressiva que, além de explicar a vinda de Russell Crowe ao Brasil por 36 horas, define o lugar que o País ocupa na indústria cinematográfica internacional – o de mercado consumidor.
Além desse sucesso comercial, de forma geral Noé foi tratado com respeito e bem recebido pela crítica americana.Para A.O.Scott, no New York Times (27/3/2014), “parece ser no seu cerne um inquietante exemplo de dúvida divina sobre si mesma. Indignado com sua criação, Deus decide fazer tábula rasa e começar de novo, apenas para ceder e permitir que Noé, pai de três filhos, aos 500 e poucos anos, salve sua família e um navio carregado de animais. […] Na sua ambiciosa fusão de reverência pelo Velho Testamento com espetáculo blockbuster moderno [o filme] insiste nas implicações sombrias e perturbadoras da experiência de Noé. […] , o filme sério, desigual e por vezes poderoso de Aronofsky é um estudo de caso psicológico e uma parábola sobre arrogância e humildade. No que tem de melhor, compartilha uma parte da feroz convicção e muito da loucura do seu personagem homônimo.”
David Denby, na New Yorker (7/4/2014), considera “o mais louco grande filme feito há anos” – o que não é dizer pouco. Para ele, “Aronofsky encontra uma razão legítima para Deus matar todo mundo. […] O homem do mundo industrial avançado poluiu a terra, mas mesmo assim, de alguma maneira, nós ainda estamos nos tempos bíblicos. […] trabalhando com um orçamento de $ 130 milhões de dólares, não surpreende o vai e vem entre o visionário e o mercenário, entre clichês assustadores e reconfortantes para o público. Segundo Denby, tem aspectos emocionantes, magníficos, desiguais, sagazes, extravagantes, doidos. O filme, nas palavras dele, tenta agradar todas as facções e só poderia ter sido feito por um artista.
Também na New Yorker, Richard Brody escreve no seu blog (9/4/2014) que a “chama adolescente por trás de , longe de ser um obstáculo ou um armadilha, é determinante para suas virtudes.” A visão “da enormidade – da divindade como monstruosidade – passa no filme. […] O poder de Noé surge da compreensão assustadora de Aronofsky de que a pessoa que pensa estar em contato com Deus é capaz de qualquer coisa. O filme inverte o dictum dostoievsquiano “se Deus não existe, tudo é permitido”. Em , a noção da existência de Deus torna a ordem natural freneticamente, chacoalhantemente, miraculosamente desordenada, e concede a um verdadeiro crente um passe livre para qualquer atrocidade que ele acredite ter recebido ordem para recriar.”
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Pode-se discordar dos críticos americanos, sem dúvida. Não há por que lhes conceder a palavra final. Mas o contraste com a rejeição em bloco da crítica brasileira dá o que pensar. Na avaliação publicada pela Folha de S.Paulo, Noé é dispensado como uma estrelinha equivalente a “ruim”. Mais contundente é o post publicado no site do Instituto Moreira Salles (4/4/2104), cujo título fala por si: A barca furada de . Para o autor, José Geraldo Couto, depois de assistir ao filme de Aronofsky é difícil negar que “a indústria do cinema é a maior fábrica de lixo do mundo”.
Esses comentários não parecem fora do lugar? Deixam de levar em conta o que é inegável – trata-se de um produto comercial muito bem sucedido em escala mundial. E emitem juízos irrelevantes e considerações que devem soar patéticas para a Paramount, Darren Aronofsky e Russell Crowe.
Os dados comprovam que a crítica brasileira está em descompasso com os espectadores brasileiros, sem mencionar os estrangeiros. Os críticos pregam no vazio, ou talvez para si mesmos. Diante de , assim como de Godzilla, Capitão América 2, O espetacular homem-aranha 2 e demais filmes desse quilate, melhor fariam deixando-os de lado. Não há lugar para nós nessa arca e só nos resta refletir sobre nossa posição subalterna de consumidores do que nos é servido queiramos ou não.