A pré-estreia mundial de acontecerá esta semana, no Brasil, uma semana antes do lançamento, dia 28, nos Estados Unidos. O que teremos feito para merecer tamanho privilégio? Talvez seja uma recompensa por mantermos nosso mercado exibidor escancarado para o cinema estrangeiro, além de aceitarmos passivamente a posição subalterna de meros consumidores de um gênero de filme que está fora do nosso alcance produzir, e com o qual não temos como competir. Na arca de Noé da Paramount Pictures, dirigida por Darren Aronofsky, não há lugar para nós. Só animais e gente grande podem entrar.
Mesmo sem ter visto o filme, e antes de ser conhecido seu resultado comercial, a dimensão dos meios financeiros e técnicos investidos na produção situa Noé em outra esfera, uma categoria à parte, na qual fora suas tarefas habituais, o diretor enfrenta o poder dos produtores para preservar sua concepção do filme – essa é uma briga de cachorro grande na qual autores sensíveis não devem se meter.
Credenciado pelo inesperado sucesso comercial de Cisne negro, de 2010, produzido por 13 milhões de dólares e que rendeu 330 milhões de dólares no mercado mundial, Aronofsky pôde dispor de um orçamento de 130 milhões de dólares para fazer Noé, no qual estão sendo gastos outros 120 milhões de dólares em promoção e publicidade (são cerca de 600 milhões de reais investidos no filme). Isso, apesar dos seus dois traços de personalidade que deixam o estúdio em pânico, segundo o perfil publicado na New Yorker (“Heavy Weather”, Tad Friend, 17 de março de 2014). Além de Aronofsky ser agressivo, é “impossível convencê-lo que o filme deve ter um final feliz.”
Conforme relatado no perfil da New Yorker, depois de verem a versão de 2h46min de Noé, exibida por Aronofsky, em março de 2013, os executivos da Paramount e da New Regency Productions, financiadora do projeto, manifestaram apenas algumas preocupações. Rob Moore, presidente da Paramount, disse “não terem dúvida que esse é um filme persuasivo”. E Arnon Milcan, diretor-presidente da Regency, disse que o filme o “tinha feito chorar”. Mesmo assim, depois da reação “ambígua” dos espectadores da primeira sessão de sondagem de opinião, a Paramount “pediu algumas mudanças radicais”.
A Paramount, que detém o direito ao corte final, editou, então, sua própria versão do filme e programou outra projeção para testar a reação do público. Enquanto isso, sem saber se “emergiria desse processo como autor de Noé”, Aronofsky cortou 36 min do filme, reduzindo sua própria versão para 2h10min.
Em dezembro de 2013, a Paramount exibiu em um subúrbio de Phoenix, sua versão de 86 min (!), “a menos aronofskyana das versões do estúdio”, da qual suprimira 80 min, mas nem essa, nem as anteriores feitas pelo estúdio, foram mais bem recebidas do que a de Aronofsky. Os testes confirmaram que não se podia reinventar o filme feito por ele e a Paramount se rendeu, embora tenha adotado a estratégia de manter Noé em segredo, evitando que uma eventual reação negativa da crítica anterior ao lançamento influencie o público.
Agora, chegou a hora da verdade. Como será recebido? Qual será o resultado de bilheteria? Estão em jogo a carreira de Aronofsky e a dos executivos da Paramount que aprovaram o investimento milionário feito no projeto.
Para Godawa, Noé será rejeitado pelos leitores devotos da Bíblia por que “subverte a narrativa sacra com uma agenda política de uma religião terrena pagã que é ofensiva à Fé deles. Em um sentido bem concreto, comete o próprio pecado da história primordial no Gênesis: a negação da imagem de Deus existente no homem.”
A esse extremismo religioso foi contraposto, no site Zekefilm, outro ponto de vista católico. Aronofsky não teria se proposto a fazer uma adaptação fiel da história de Noé, “procurando fazer uma fantasia épica, fora do tempo e do espaço, inspirada pela história bíblica.” O tema principal do filme parece ser “o desrespeito do homem pela criação de Deus”, que é um assunto muito importante para Aronofsky. “Se formos honestos conosco mesmos, nós fizemos um péssimo trabalho cuidando da criação de Deus. Como raça humana não só abandonamos nossos lugares como cuidadores do mundo que Ele nos encarregou de cuidar; temos jogado contra nosso time: enchendo céus e oceanos com veneno, destruindo espécies inteiras à esquerda e à direita, arrasando florestas tropicais, derretendo as camadas de gelo […] Não creio que Aronofsky esteja errado em querer usar uma história bíblica como ponto de partida para uma fantasia épica mítica que adota o valor bíblico de cuidar da criação de Deus.”
Em alguns dias saberemos se Noé será ou não um caso raro de superprodução na qual o autor triunfa.