Ato I: o nascimento do apelido e do cabelo “chanelzinho”
“Eu cortava o cabelinho do Gabriel no estilo asa delta quando ele era pequeno”, conta Márcia de Souza, de 51 anos. Ela se refere ao tipo de cabelo raspado nas laterais e com um corte reto no topo da cabeça, como o adotado pelos militares. “Mas quando o Gabriel completou 9 anos, deixou o cabelinho crescer e nunca mais cortou curtinho.”
Ao entrar na adolescência, o menino viu a mãe fazer reflexo em si mesma. Gostou do resultado e quis fazer também, para pular o Carnaval. Reflexo é uma técnica capilar que tinge somente algumas mechas, em geral de louro. “Eu fiz no cabelinho do Gabriel, e ele amou. Só que ficou todo ressecado. Teve chacota na escola, mas o Gabriel não ligava. Eu dizia: ‘Não liga para apelido, não! Se você ligar, vai pegar.’ Meu filho é muito forte. Não esquentava a cabeça de jeito nenhum.”
Hoje, Gabriel Luiz de Souza Andrade, de 17 anos, é reconhecido nas redes sociais justamente pelos cabelos castanhos claros, fartos e repletos de mechas louras. O corte arredondado de agora se parece com o dos surfistas na década de 1970. Ou, segundo um usuário do Twitter, lembra o “corte de um europeu medieval”. O adolescente – que tem o rosto ovalado, as bochechas meio avermelhadas, os olhos verdes sobressaltados e a pele branca queimada de sol – prefere definir o estilo como “chanelzinho”.
Assim que o filho caçula deixou a juba crescer, Márcia de Souza temeu que o garoto sofresse agressões na escola ou na rua. “Você sabe, ele é homem, né? E com aquele cabelo grande… As pessoas têm preconceito. Podiam agarrar o Gabriel para cortar o cabelão à força.”
O rapaz também se destaca por ser magro e alto (mede 1m82). Seu sorriso fácil e largo revela os elásticos verdes de um aparelho ortodôntico. Ele puxou os olhos e os cabelos da mãe. Do pai, herdou a altura. O casal, que continua junto, teve somente dois filhos. Márcia de Souza vende salgadinhos. O marido é segurança.
Em fevereiro do ano passado, Gabriel pediu um celular de presente para os pais, que não hesitaram em comprá-lo. “Ele merece. É um bom menino”, elogia a mãe. O jovem logo abriu uma conta no aplicativo TikTok e a batizou de Xurrasco 021 – a mistura de seu apelido com o DDD dos crias do Rio de Janeiro. Muito usada nas periferias cariocas, a gíria “cria” indica a comunidade onde alguém nasceu e se criou. Xurrasco é cria do Sapo de Camará, favela do bairro Senador Camará, na Zona Oeste da cidade.
O apelido surgiu no início da adolescência, mais ou menos na mesma época do cabelo com reflexo. O menino sonhava em ser jogador de futebol e já havia treinado na escolinha do Flamengo. Num campeonato amador de que ele participou, um vendedor de churrasquinho tinha o hábito de se posicionar à beira do campo. Certo dia, um torcedor gritou para Gabriel: “Se você fizer um gol, te pago um churrasco.” Sempre que o rapaz se aproximava da grande área, a torcida repetia: “Churrasco! Churrasco!” Gabriel goleou, faturou um espetinho e assumiu o nome que o consagraria na internet. Mas com X, à moda dos crias.
Ao longo de 2022, enquanto cursava o segundo ano do ensino médio, Xurrasco costumava levar o celular para a escola, onde fazia as coreografias que acabaram viralizando no TikTok. Ele dava um tempero muito pessoal às dancinhas. Movia-se de um jeito malemolente, mas com alguma graça. Os colegas não perdoavam: passavam na frente da câmera, tiravam sarro das performances e, claro, zoavam o cabelo dele. “Eu sofria bullying direto. Por isso, passei a fazer as danças trancado no banheiro da escola.”
De repente, a influencer Luna (@crvgluna_), que tem 3,9 milhões de seguidores no TikTok, começou a comentar os vídeos de Xurrasco. A partir daí, tudo mudou. “Minha primeira trend (conteúdo que viraliza) foi uma jogadinha de lado. Ficou conhecida como Xurras da Jogada”, recorda o jovem.
Em dezembro do ano passado, já de férias, Xurrasco viralizou inúmeras vezes e resolveu mostrar para a mãe que estava sendo reconhecido na internet. Márcia de Souza tomou um susto. “Desde quando você dança?”, indagou quando viu o filho rebolar nos vídeos. “Me surpreendi demais! O Gabriel sempre foi tão tímido… Ele deve ter aprendido a dançar com o primo ou os amigos. Também estranhei o Xurrasco com X. Perguntei: ‘Menino, você não sabe como se escreve churrasco?’ O Gabriel, então, me esclareceu: ‘É Xurrasco com X de sextou.’”
Em janeiro de 2023, o rapaz se consolidou como fenômeno da internet – atualmente, soma 2,8 milhões de seguidores no TikTok e 1,5 milhão no Instagram. Para ele, o sucesso não se deve apenas às dancinhas. “Meu tamanho e minha magreza chamam a atenção, mas também o meu rosto, o meu cabelo, as minhas jogadinhas e as minhas caretas, que nasceram do nada, sem nenhum planejamento.” A assessora de imprensa Carol Martins sintetiza o triunfo de seu novo cliente numa única frase: “Xurrasco é o povo.” Um garoto da periferia que domina e exalta os códigos locais, ainda que seja branco de olhos verdes.
Embora muito popular, Xurrasco quase não tem haters. Boa parte dos internautas se refere ao jovem com carinho, e seu visual é classificado de cool, original, maneiro. Recentemente, uma foto do adolescente apareceu num porta-retrato durante um quadro do humorista Paulo Vieira, no programa Big Brother Brasil, da Globo. “Meu filho é mesmo muito cativante. Falar do Gabriel me emociona, dá vontade de chorar. Até existem pessoas aí fora que o consideram feio, mas ele é lindo”, diz a mãe coruja.
Ato II: o segredo das coreografias
“Eu não posso botar a cara na rua que aparece alguém pedindo: ‘Manda aquela dancinha do seu corpo suado e você por cima de mim’”, resmunga Xurrasco enquanto estica as pernas e os braços muito compridos. “É toda hora, mané!” O funk melódico Lovezinho, de Treyce, estourou no Carnaval principalmente por causa dos quinze segundos de uma dancinha malemolente que o jovem mandou no TikTok.
“Xurras, bora gravar a publi!”, chama a assessora de imprensa. “Já é”, responde o adolescente, levantando-se do sofá com morosidade. Na tarde de 14 de fevereiro, às vésperas do Carnaval, Xurrasco usa o figurino que se tornou sua marca registrada: short curto, camisa branca bem apertada, chinelos slide e um par de óculos com detalhes dourados, pendurado no topo da cabeça. “É Versace”, avisa o rapaz.
Ele está no CPX dos Crias, mansão em Vargem Grande, na Zona Oeste do Rio, onde diversos influenciadores dispõem de toda a estrutura para gravar, divulgar e comercializar seus vídeos. CPX significa complexo, termo com o qual os cariocas se referem a certas favelas da cidade. Uma produtora de conteúdo sediada em Cuiabá, a Tylty Company, mantém o casarão com piscina. A assessora de imprensa passa o briefing da marca de chicletes que patrocinará o post (ou a publi) de Xurrasco: “Você pega o chiclete, bota na boca e toma um copo d’água.” O jovem arrisca uma sugestão: “E se eu fizer aquela cara de tremilique? Vai ficar legal.”
O adolescente caminha até uma sacada e se debruça no parapeito. Diante de um cinegrafista, pega o chiclete, bebe um gole d’água e faz a tal cara de tremilique (como se estivesse chupando limão). “Boa!”, incentivam os que assistem à performance. “Vamos gravar mais uma para garantir”, pede o cinegrafista. Cada sequência de vídeos dura cerca de trinta segundos. Em um minuto e meio, a publi está pronta para ser disparada nas redes sociais. “Não vai ter música, uma dancinha?”, pergunta Xurrasco. Não, era só aquilo mesmo.
Logo após a sessão, o rapaz e a assessora de imprensa entram numa videochamada para negociar outra publi. O contratante agora é a Netflix, que pretende divulgar a série Outer Banks. “Põe o Xurrasco para fazer uma dancinha daquele jeito espontâneo dele. Podemos gravar amanhã? A gente quer disparar o vídeo no Carnaval”, diz o representante da plataforma de streaming. “Amanhã o Xurrasco não pode. Vai ter um dia corrido. Mas, na quinta, ele grava. O Xurrasco é muito ligeiro e profissional. Num instante, dá conta de tudo”, garante a assessora.
Depois dos compromissos comerciais, o adolescente inicia a gravação de seus conteúdos orgânicos, aqueles que não são pagos. “A revista do senhor é de São Paulo? Tem problema se eu fizer um vídeo com palavrão?”, me pergunta enquanto seleciona músicas na biblioteca do TikTok. Respondo que a piauí é do Rio e não se incomoda com palavrão. Ele escolhe o funk Mó Marrinha de Metedor, que diz: “Mó marrinha de mete-mete-metedor. Mó marrinha de fude-fude-fudedor.”
Xurrasco se dirige à beira da piscina com os influenciadores DG e Bryan Sant. “Como vai ser? Fala aí”, pede Sant, que bombou na internet ao relatar de maneira bem-humorada sua rotina de motoboy e hoje faz propaganda para marcas famosas. Em quinze segundos, Xurrasco esboça a coreografia. Seus companheiros pegam os passos rapidamente. Xurrasco, então, apoia o celular sobre uma mesinha de plástico, no deck da piscina. Descalços, Sant e DG ensaiam mais três vezes em frente à câmera desligada. “Vamos tentar uma coisa diferente”, propõe Xurrasco. “Quando a batida da música mudar, a gente dá uma quebrada de corpo tipo quadradinho e vai girando.” Os dois parceiros concordam. “Muitas de minhas coreografias se inspiram no game Fortnite. Os personagens do jogo costumam dançar”, explica Xurrasco. Depois de ligar a câmera, os três bailam por menos de trinta segundos. Checam a performance e concluem que não precisam repeti-la. Acertaram de primeira.
No dia 8 de fevereiro, a usuária do Twitter @mcbobeirinha escreveu: “As coreografias do TikTok têm o padrão de ser contidas e minimalistas pra entrar no enquadramento do celular. O Xurrasco simplesmente brinca com o enquadramento em vez de se limitar a ele. Isso é cinema pra mim.”
O rapaz chega a gravar vídeos com cinco ou seis parceiros, que se alternam no primeiro plano da tela estreita. A mise-en-scène acaba transmitindo a sensação de profundidade. O espaço registrado pela câmera parece se expandir. Em algumas performances, um dançarino desponta na lateral esquerda do vídeo, cruza a cena, desaparece pela lateral direita e ressurge por outros ângulos. “Tudo que você falou é maneiro. Faz sentido, mas, sei lá, nunca imaginei isso, não”, diz Xurrasco quando lhe pergunto sobre a técnica de ampliação do espaço. “Uma cabeça pensando é bom. Duas ou três é melhor ainda. A gente vai juntando as ideias e o negócio acontece”, acrescenta DG, um menino negro de pele clara. Ele define os crias como “a galera que veio de baixo”: “Queremos mostrar para a sociedade que da favela não saem apenas coisas ruins. Ser cria é brincar, rir, andar descalço, soltar pipa, jogar bola.”
Ato III: o futuro
No casarão de Vargem Grande, a maioria dos influenciadores enxerga a produção de conteúdo para as redes sociais como um ofício. Xurrasco não é diferente, mas afirma com muita convicção que ainda deseja se tornar jogador de futebol e conhecer Gabigol, atacante do Flamengo. “Um dia, cheguei para minha mãe e disse: ‘Bati 1 milhão de seguidores no Tiktok e 200 mil no Instagram. Estou achando que isso vai virar profissão…’”, relembra o jovem.
Em março, Xurrasco voltará à escola. O adolescente que se escondia no banheiro para fugir do bullying agora entrará na sala de aula como um dos reis da internet. Lovezinho, o funk melódico que ele ajudou a alavancar, conquistou a primeira posição no Top 50 Viral do Spotify Brasil. Durante o Carnaval, o garoto visitou camarotes no Sambódromo e engrossou o bloco de Ludmilla, um dos maiores do Rio. “Por enquanto, só penso em dar uma casa para minha mãe”, diz Xurrasco. “Ele não tem que se preocupar comigo. Eu quero apenas que o Gabriel seja feliz”, rebate Márcia de Souza, com os olhos marejados. “Outro dia, ele me falou: ‘Mãe, não estou preparado para o que vem acontecendo.’ O Gabriel tem medo de dizer alguma coisinha errada e atrair confusão. O mundo das redes sociais é muito covarde, e meu filho é um menino sem maldade.”
A mãe entrega que Xurrasco ainda não tem namorada. “Mas as meninas da escola gostam de mexer no cabelinho dele. Eu aconselho: ‘Presta atenção! Alguma menina pode estar namorando, e você vai arrumar encrenca à toa.” A vendedora de salgadinhos também se preocupa com o alistamento militar do filho. “Daqui a pouco, o Gabriel faz 18 anos. Imagina se o Exército convocar o garoto. Será que vão cortar o cabelinho dele?”
Entre uma coreografia e uma publi, Xurrasco se distrai jogando sinuca no CPX dos Crias. Quando o adolescente está prestes a encaçapar uma bola, a assessora se aproxima dele e cochicha: “Fechamos mais um contrato.” Nenhum dos dois topa dar detalhes sobre o negócio, que parece expressivo. Xurrasco escuta a notícia com serenidade. Não grita nem pula de alegria. Apenas diz: “Nóis é mídia!” E continua a jogar.