Ao som da melodia de Festa de Arromba executada pela banda, Erasmo Carlos fez um breve discurso ao centro do palco do lotado Teatro Guaíra, em Curitiba. Pausadamente, falou sobre a importância de a sociedade zelar pelas novas gerações. “O futuro pertence… à jovem guarda!”, gritou, fazendo um trocadilho com o movimento que o revelou e com o título de seu último álbum. Saiu do proscênio impávido, como se tivesse o vigor de um garoto, e aplaudido por 2,1 mil pessoas. Nos bastidores, no entanto, o artista de 81 anos deixou transparecer a exaustão física. Foi levado de cadeira de rodas até o carro que o conduziu ao Hotel Bourbon, onde estava hospedado.
Realizada em 16 de setembro, aquela foi uma das últimas apresentações – a última em um grande teatro – de Erasmo Carlos, que morreu na última terça-feira (22). Depois de Curitiba, Erasmo ainda se apresentou em Caeté (MG), Vila Velha (ES) e São Paulo. Mesmo antes do show em Curitiba, a preocupação do cantor de passar uma imagem altiva tinha chamado a atenção do produtor artístico Ramon Bentivenha, da Cult! Produções. No dia anterior, após desembarcar no Aeroporto Internacional de Curitiba, Erasmo também tinha sido conduzido em cadeira de rodas por áreas restritas do terminal. Antes de chegar aos setores abertos ao público, se levantou e foi caminhando.
“Quem o visse antes de subir ao palco poderia supor que ele não iria conseguir manter um show de quase duas horas. Mas ele crescia! Parece que ele entregava acima do que, fisicamente, ele tinha condições de entregar. No palco, ele era o ‘Tremendão’, o Erasmo Carlos. Quando descia do palco, a gente via a pessoa de carne e osso, o Erasmo Esteves”, disse Bentivenha.
Sem ser perfeita do ponto de vista técnico – o cantor estava com a voz nitidamente enfraquecida –, a apresentação celebrou o período em que Erasmo e Roberto Carlos eram dois dos artistas mais populares do país. No teatro, era possível ver de universitários roqueiros a quarentões românticos, passando por senhorinhas contemporâneas da Jovem Guarda dançando sentadas nas poltronas aveludadas do Guaíra – uma delas disse ter viajado 380 km de Jandaia do Sul a Curitiba para ver o “Tremendão”. Antes de subir o pano, o próprio Erasmo acompanhou as minúcias dos preparativos do show – da montagem do palco à passagem de som.
“Ele era extremamente preocupado com os detalhes, tinha uma preocupação em entregar um grande espetáculo”, contou Bentivenha. “E tinha uma preocupação com todos. Quando o encontrei pela primeira vez, assim que ele desceu do carro, demonstrou uma gentileza, um bom-trato impressionante. Parece uma coisa pequena, mas é muito significativo. Entendi porque ele era chamado de Gigante Gentil”, acrescentou o produtor.
Erasmo Esteves nasceu na Tijuca, Zona Norte do Rio de Janeiro, de família simples – foi criado só pela mãe. Na adolescência, aprendeu os primeiros acordes de violão com o amigo Sebastião Rodrigues Maia – que viria a usar o nome artístico Tim Maia – e chegou a tocar com ele em dois conjuntos, inclusive acompanhando o jovem e então desconhecido Roberto Carlos. Um pouco adiante, começou a se aproximar de um estilo que começava a chegar ao Brasil – o rock’n’roll – e chegou a fazer parte do conjunto Renato e Seus Blue Caps. Foi nessa época que o produtor Jairo Pires, da CBS, o conheceu, nos estúdios localizados na Rua Visconde do Rio Branco, no Rio de Janeiro.
“Ele ainda não tinha acontecido como artista naquela época. Já tinha saído do Renato e Seus Blue Caps, mas andava sempre junto com a turma. E passamos a andar todos juntos. Me chamou a atenção que ele sempre foi uma pessoa cordata, muito de fino-trato, muito carinhoso, se preocupava muito com as pessoas. Engraçado, que o rock tinha aquela coisa de passar agressividade… e fora do palco o Erasmo era uma pessoa doce. E ainda era um artista à procura do sucesso”, contou Pires.
O sucesso veio a partir de 1965: ao lado de Roberto Carlos e Wanderléa, Erasmo estrelou o programa Jovem Guarda, que ficou no ar por três anos e foi o embrião de um movimento de massa, que influenciou a juventude, em uma versão brasileira do rock americano. A Jovem Guarda sacramentou aquela que talvez seja a dupla de compositores – Roberto e Erasmo – mais profícua da música popular brasileira, com produção estimada em mais de quinhentas canções. Foi quando Erasmo ganhou o eterno apelido de Tremendão.
A Jovem Guarda e a parceria com Roberto grudaram feito um rótulo em Erasmo. A reinvenção da carreira se deu na virada da década de 1970 para 1980, a partir do reencontro com Jairo Pires, que estava, então, na Polydor – um selo da Philips – e que já era um dos mais respeitados produtores do país: tinha feito trabalhos destacados com Tim Maia, Julio Iglesias, Roberto Carlos, Wanderléa e Zé Ramalho, entre tantos outros. Sob a batuta de Pires, o cantor gravou “Erasmo Carlos Convida”, de 1980, um álbum com participações especiais que reuniam dos velhos companheiros de Tijuca (como Tim Maia e Jorge Ben, mais tarde Ben Jor) a grandes nomes da MPB, como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa e Maria Bethânia.
Na avaliação de Pires, a virada na carreira se sedimentou nos dois discos seguintes: Mulher (1981) e Amar pra viver, ou morrer de amor (1982). Erasmo deixou para trás os trejeitos da Jovem Guarda e encontrou um caminho próprio, distante da sombra de Roberto. Emplacou a música Pega na mentira, um dos grandes hits do início dos anos 1980. Erasmo se tornou ainda mais aberto a experimentações, sem medo de errar. O produtor passou a acumular a função de empresário e rodar o país com o Tremendão, fazendo shows que chegavam a lotar ginásios de esportes ou estádios de futebol.
“A fase desses três discos foi um marco na carreira do Erasmo. Até então, ele era respeitado, mas tinha aquela coisa de ficar na cola do Roberto e de não ser um grande vendedor de discos, nem de fazer muito show. A partir dali, a vida do Erasmo muda. Ele pôde ousar mais. Tanto que ele sempre experimentou mais que o Roberto, por exemplo, que manteve aquela linha romântica”, disse Pires. “Em um coquetel na gravadora para entregar disco de platina ao Erasmo – não me lembro qual –, ele estava radiante. Ele veio a mim e falou: ‘Nós conseguimos.’ Ele sabia reconhecer. E, mesmo com todo o sucesso, nunca se atrasou para show ou gravação, nunca destratou ninguém. Era de uma gentileza fora de série. Ele tinha muita humanidade”, contou.
O cantor e compositor Juca Novaes teve mostras dessa face gentil de Erasmo Carlos em 2003, em Avaré, no interior de São Paulo. Idealizador e produtor da Feira Avareense da Música Popular (Fampop) – um dos mais importantes festivais do país –, Novaes havia convidado o Tremendão para se apresentar como patrono do evento. Ainda no hotel, ele testemunhou quando um morador da cidade – Mário Bastos Cruz, o Marinho – chegou para falar com o cantor. Apresentou-se como irmão de Rubinho, que fora baterista do grupo “Os Tremendões”, antiga banda de Erasmo, e morrera prematuramente. A notícia sensibilizou o artista, que, no palco, dedicou o show a Rubinho.
“O Erasmo ficou muito abalado, muito sensibilizado com essa visita do irmão do Rubinho, por se lembrar do amigo. Foi uma coisa que me marcou positivamente, porque mostrou como o Erasmo era em essência. O Rubinho tinha morrido havia um tempão, aos quarenta e poucos anos, mas o Erasmo ficou sentido pelas recordações. Isso reforçou a imagem que se tinha dele, como um cara boa-praça, afável, solícito”, contou Novaes.
Na entrevista coletiva, uma declaração de Erasmo chamou a atenção do produtor. O Tremendão estava havia alguns anos sem apresentar novas composições em parceria com Roberto Carlos. Na ocasião, o Rei andava em um semi-isolamento voluntário, em razão do falecimento de sua mulher Maria Rita, morta quatro anos antes.
“Foi a primeira vez que eu vi ele falar: ‘Eu e Roberto não escrevemos mais músicas juntos. Eu gostaria de voltar a escrever com ele, mas, infelizmente, não estamos mais compondo juntos.’ Na hora, eu pensei: ‘Se tivesse alguém da Globo aqui, isso seria manchete do Jornal Nacional.’ Nem ele nem Roberto tinham comentado isso antes”, relembrou Novaes. “Ele não falou isso em tom de lamento. Falou como quem diz: ‘Puxa, eu gostaria de voltar a fazer música com o Roberto’”, disse.
Antes do show, Novaes e Erasmo conversaram longamente – sobre música, é claro. “Ele falou da relação dele com a MPB, que achava meio malucas as coisas da Tropicália. O fato é que era um cara gentil, que curtia a conversa”, observou o produtor. Na apresentação que lotou um ginásio com capacidade para 3 mil pessoas, Erasmo contou com participações especiais de Wanderléa – dos tempos da Jovem Guarda – e de Leila Pinheiro – mais ligada à MPB e à Bossa Nova. Para Novaes, convidadas de matizes tão diferentes ilustravam a liberdade de Erasmo, que conseguiu se livrar de rótulos.
“Erasmo teve uma ousadia que o Roberto não teve. Enquanto o Roberto entronizou aquele modelo à la Julio Iglesias e Tony Bennett, do cantor de canções românticas, o Erasmo foi para outro lado. Como ele não tinha que se adequar a esse perfil, ele foi bem mais experimental, tanto que fez parcerias com caras como Arnaldo Antunes e Frejat, e até mais contemporâneos, como o Emicida”, analisou. “O que não minimiza a importância da dupla Roberto e Erasmo, que certamente é a mais bem-sucedida da música brasileira, seja pela longevidade, seja pelo número de canções”, ponderou.
Em outubro deste ano se espalharam rumores sobre a morte de Erasmo Carlos. Na verdade, o cantor estava internado no Hospital Barra D’Or, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, já doente. Em 17 de novembro, veio o anúncio de que Erasmo ganhou o Grammy Latino pelo “melhor álbum de rock ou de música alternativa em Língua Portuguesa”. Na manhã do último dia 22, Pires foi surpreendido pela morte do amigo.
“Quando vi a notícia, foi um baque. Desde a internação anterior, eu estava preocupado, sabia que ele estava fragilizado… eu fiquei sentindo uma coisa esquisita no peito, como se esperasse. Mas a gente nunca está preparado para uma coisa dessas, para aceitar a partida de uma pessoa querida. É demais pra mim”, disse Pires, que hoje mora em Ribeirão Preto, interior de São Paulo.
Na capital paulista, quando soube do falecimento de Erasmo, Juca Novaes revisitou uma de suas recordações mais remotas: ainda muito criança, ele estava num carro com a avó, quando o rádio começou a tocar Quero que vá tudo pro inferno, de Roberto e Erasmo. Quando ouviu o refrão, em um ímpeto, a avó desligou o rádio.
“Ela falou: ‘Não! Essa música não pode! Não é de Deus!’ Uma coisa assim… Aquilo me marcou muito. É uma das lembranças mais ancestrais que tenho”, disse. “Aquilo também mostra como essas músicas atravessaram gerações. E leva a pensar também no quanto o Erasmo produziu. Em 2022, aos 81 anos, ele morreu produzindo”, acrescentou.
Ramon Bentivenha estava no banco quando recebeu uma mensagem da namorada informando que o Tremendão estava internado. Na hora o produtor começou a recordar a última apresentação de Erasmo em Curitiba e concluiu que tinha sido uma noite feliz. Meia hora depois, veio a confirmação: o artista tinha morrido.
“Eu fiquei esperando uma outra mensagem, dizendo que era mentira, que tinham se enganado. Eu não queria acreditar”, disse. Desde então, tem pensado na forma como Erasmo, em sua última grande apresentação, tratava todos com gentileza. Estava debilitado, cansado, mas feliz no palco, se apresentando. E se lembrou do momento do show que mais o emocionou: a canção É preciso saber viver. “Eu conversei com ele sobre essa música. Ele disse que era a composição que mais o representa, que tinha a essência dele. Que o importante é como se leva a vida. E ele levou a vida fazendo o que gosta.” Sabia mesmo viver.
A produtora Cult! divulgou em suas redes este vídeo com um extrato do show de Erasmo Carlos no Teatro Guaíra: