Na tarde do dia 22 de março, domingo, um tumulto no pavilhão 4 da penitenciária de Valparaíso, no interior paulista, com gritaria e barulhos de grades, chamou a atenção dos agentes penitenciários. Os detentos não queriam que um agente entrasse no pavilhão para fazer a contagem diária dos presos porque o servidor público estava sem luvas e sem máscara. O receio dos detentos era de que ele pudesse transmitir o novo coronavírus nas celas superlotadas – a penitenciária abriga 1.862 detentos, duas vezes mais do que sua capacidade, de 873 presos. O rebuliço foi contido com a chegada de outros agentes, mas o clima tenso diante do avanço da covid-19 permanece em todo o sistema penitenciário paulista.
Embora as visitas aos presos estejam suspensas pelo Judiciário desde o dia 20 de março, há outros fatores de risco atrás das grades. O mais evidente deles é a superlotação: 238 mil presos (um terço da população carcerária do país) se espremem em 145 mil vagas, com celas sem ventilação e condições precárias de higiene, onde atendimento médico é algo raro. Em São Paulo, de 110 unidades prisionais inspecionadas pela Defensoria Pública em 2019 (são 176 no total), 77% não tinham equipe médica mínima – o número de médicos e enfermeiros varia conforme a lotação de cada presídio. “Em muitas unidades, agentes com formação acadêmica em farmácia ou enfermagem quebram um galho no atendimento inicial do preso doente porque não há médico”, diz Fábio Cesar Ferreira, presidente do sindicato dos agentes penitenciários de São Paulo. Segundo ele, a maioria dos 23 mil agentes penitenciários paulistas não trabalha com equipamentos de proteção individual, e continua havendo movimentações de presos tanto entre as penitenciárias quanto entre as alas de um mesmo presídio. “Se um detento transferido estiver com coronavírus, leva para todos os demais.”
Até esta segunda-feira, 6, não havia caso confirmado de covid-19 entre os presos paulistas, mas cinco agentes penitenciários foram infectados e um deles morreu. “O risco de disseminação descontrolada da doença no sistema prisional é enorme”, afirma a defensora pública Juliana Belloque. No Brasil, o cenário de superlotação se repete, segundo o Departamento Penitenciário Nacional (Depen) – são 766,7 mil presos para 406,7 mil vagas. Também há déficit de médicos – há um profissional para cada mil presos, enquanto a média para a população é de 1,86. Até terça-feira, 7, não havia, oficialmente, casos confirmados de covid-19 entre presos no Brasil, segundo a assessoria do órgão federal.
Para o ex-diretor do Depen Renato de Vitto, o surgimento da doença escancarou os problemas estruturais das penitenciárias brasileiras. “É preciso aproveitar este momento crítico para se discutir a sério a aplicabilidade de penas alternativas à prisão”, argumenta.
No dia 17 de março, após o Judiciário anunciar a suspensão da saída temporária de Páscoa, houve rebelião em cinco presídios no estado de São Paulo – em Mongaguá, na Baixada Santista, quatrocentos detentos do regime semiaberto fugiram.
Em nota, a assessoria da Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) informou que cuidados com a higienização já foram adotados nos presídios do estado. A pasta cita a “intensificação da limpeza”, a aquisição de termômetros infravermelhos, álcool gel e máscaras para os agentes e também a adoção de quarentena para presos recém-chegados a uma penitenciária (não foi informado o período). Quando surge um caso suspeito, segundo a secretaria, o detento é isolado na enfermaria da unidade prisional, situação que será prolongada por duas semanas caso o diagnóstico for confirmado. A assessoria informou que as unidades prisionais “são atendidas por profissional de saúde” – a SAP não se manifestou sobre a falta de equipes médicas nas penitenciárias, nem informou quantas e quais delas possuem esse serviço.
Recentemente, a SAP encaminhou à Defensoria Pública a relação dos detentos no estado que integram grupos de risco para o novo coronavírus: são 10.538 presos com comorbidades (como HIV, tuberculose e asma), 4.911 mães gestantes e lactantes e 2.617 idosos. A Defensoria tem ingressado com pedidos de habeas corpus para cada um desses detentos, solicitando para eles prisão domiciliar com tornozeleira. “Essas pessoas precisam deixar a prisão com urgência. É uma questão de vida ou morte”, diz Belloque.
No mês passado, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) recomendou o relaxamento de algumas penas, com prisão domiciliar ou até mesmo concessão de liberdade provisória, por conta da epidemia de covid-19. Estimativa do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) aponta que pelo menos 30 mil presos foram beneficiados por decisões judiciais desse tipo.
Mas ainda há casos em que o Judiciário tem sido reticente quanto aos pedidos de relaxamento da prisão. Levantamento da piauí em decisões de primeira instância do Tribunal de Justiça de São Paulo revela que, de cada três pedidos da Defensoria ou dos advogados dos presos, dois são negados – foram 65 decisões do início de março até o último dia 3, das quais 41 foram contrárias à prisão domiciliar. “É certo que a liberdade do réu não se mostra como solução para o eventual risco de contaminação com o vírus. Ao contrário. Seria muito mais fácil para ele contrair a doença caso fosse revogada a sua prisão preventiva (saliente-se, necessária no presente caso), mormente se considerarmos o enorme número de casos já confirmados em pessoas que estão em liberdade”, escreveu o juiz Fabio Marques Dias, da Vara Criminal de Batatais, ao condenar um réu a quatro anos de prisão por uso de documento falso e receptação.
Em outra decisão, o desembargador Alberto Anderson Filho, da 7ª Câmara Criminal do TJ-SP, negou pedido de relaxamento de prisão de Pâmela Campos de Moraes, de 25 anos, condenada em 2014 por tráfico de drogas em Bragança Paulista e atualmente no regime semiaberto na penitenciária feminina de Mogi-Guaçu. Chamaram a atenção os argumentos utilizados pelo juiz para negar o pedido. “Dos cerca de 7.780.000.000 de habitantes do planeta Terra, apenas três – Andrew Morgan, Oleg Skripocka e Jessica Meir, ocupantes da estação espacial internacional […] por ora não estão sujeitos à contaminação pelo famigerado coronavírus. […] Inúmeras pessoas que vivem em situação que pode ser considerada privilegiada, tais como o Príncipe Albert de Mônaco, o Príncipe Charles da Inglaterra, primeiro da ordem de sucessão ao trono, o presidente do Senado Federal Davi Alcolumbre etc. foram contaminados e estão em tratamento. […] Portanto, o argumento do risco de contaminação pela covid-19 é de todo improcedente e irrelevante”, escreveu Anderson Filho. Em nota, a assessoria do TJ-SP disse que magistrados não podem se manifestar sobre suas próprias decisões, conforme prevê a Lei Orgânica da Magistratura.
“No momento em que há preocupação com a vida dentro e fora do sistema prisional, não cabem argumentos desse tipo”, diz a defensora pública Juliana Belloque. O CNJ pediu explicações ao desembargador sobre os termos de sua decisão. A Defensoria Pública, que atua em nome de Moraes, vai recorrer ao Superior Tribunal de Justiça (STJ).