1. A escala é um fator fundamental do carnaval de rua. Passado de um determinado contingente numérico, os blocos tendem a se tornar descaracterizados. Os blocos gigantes que desfilam na orla de Ipanema ou nas pistas do Aterro do Flamengo (espaços neutros e, por assim dizer, “fora” da cidade) são todos parecidos. Boa parte da energia do folião fica comprometida com a mobilidade, com o enfrentamento da massa humana que se opõe ao seu deslocamento individual. Outro bom restante é absorvido por preocupações e precauções – guardar bem o dinheiro, tomar incessante cuidado com furtos, não se perder dos amigos, não se afastar muito da música, evitar o aperto desagradável da muvuca, pensar em como será a saída, etc… Nesse sentido, os blocos gigantes reproduzem em chave foliã um pouco do inferno cotidiano das grandes metrópoles. Momentos de alegria coletiva são pontuados por momentos de intenso sofrimento individual.
2. Continuando no tema da escala, é nos blocos pequenos que se revela a simbiose mágica entre carnaval e cidade. O bloco pequeno pede ruas estreitas, prédios de baixo gabarito, de onde uma vovozinha simpática pode acenar da janela; passas por debaixo de árvores, se espreme em vielas de paralelepípedo e depois repousa macio numa praça qualquer. Embalado somente pelo canto coletivo, por instrumentos acústicos da “bandinha”, sem a estridência de grandes apetrechos técnicos, o bloco pequeno acomoda confortavelmente o corpo do folião no corpo da cidade. E que cidade é essa? Evidentemente, a cidade antiga. É o momento em que o carnaval de rua nos coloca em contato direto com a substância misteriosa do passado, das tradicionais festas populares, e nos remete a uma outra vivência do espaço urbano. Num desses blocos, numa ladeira estreita na Glória, a atmosfera mágica só era quebrada quando algum carro tentava furar a pequena multidão e encontrar novamente seu caminho pelas amplas avenidas da cidade. O próprio conceito de “avenida” parece de algum modo negar a essência do carnaval de rua. Nesse sentido, os blocos pequenos reproduzem no interior da metrópole um tipo de experiência urbana que esta última tende a aniquilar. Não se trata apenas da “ocupação das ruas”, mas também da pergunta velada: que tipo de sociedade essas ruas podem criar? São duas cidades no espaço de uma; não há conciliação possível: a cidade das grandes escalas (dos automóveis, dos arranha-céus; do futuro?) tenta a todo custo eliminar a das pequenas escalas (das ruas de pedra, dos pierrôs, dos bloquinhos; do passado?), que por sua vez teima em ressurgir.
3. A pequena multidão de um bloco não chega a ser uma massa. A impressão não se estende além dos limites da percepção individual: com os olhos, do ponto de vista da própria rua, você é capaz de abarcar o conjunto do cortejo, saber onde começa e termina; com os ouvidos pode se localizar em relação às fontes sonoras; com os pés pode se locomover facilmente pelos vários pontos do organismo carnavalesco. Há um sentido exato de proporção entre o ser individual e o ser coletivo, que permite uma oscilação contínua e equilibrada entre os dois. Dito de outro modo, o “pequeno” carnaval de rua reconecta aquilo que a experiência da cidade grande tende a separar em dois pólos extremos: ou se é isoladamente individual (você diante de uma tela), ou se é indiferenciadamente massa (você, espremido e impotente no meio da multidão). Isso não quer dizer que não haja ênfases, nem que ser coletivo e ser individual se confundem totalmente. Apenas que eles nunca se alienam mutuamente. O individual mantém a consciência de sua ligação necessária com o coletivo (pulsa ao ritmo de uma só banda, uma só melodia), e o coletivo não cessa de abrir espaço para as expressões do individual (na forma de fantasias, máscaras, beijos…). Essa mesma reversibilidade marca a transição macia entre ser espectador e ser parte do espetáculo; entre ser um olho que vê e ser um corpo que participa ativamente.
4. Deve ser por isso que é tão frustrante ver cenas do carnaval de rua na televisão. Por mais que as imagens sejam bonitas, o que a televisão transmite é apenas o simulacro estéril de um acontecimento muito maior. Empacotado numa telinha, o carnaval de rua revela apenas seu caráter precário, vacilante, de alegria animal. As fantasias são toscas, as pessoas nem são bonitas, estão amarrotadas e bêbadas, dançam na lama… mal parece haver motivos para toda essa euforia. O olhar sóbrio e distante que a televisão impõe não é capaz de captar o essencial, e parece que o próprio meio técnico nutre uma antipatia natural pelo carnaval de rua. De algum modo, os dois seriam incompatíveis: a existência de um parece secretamente desejar a inexistência do outro. É o contrário do que ocorre com o carnaval da Sapucaí, onde tudo é realizado para ser consumido como imagem, como espetáculo midiático; no limite, como propaganda. Um carnaval feito para a televisão – para o pé o poltrona, e não para o pé sujo do folião.
5. O carnaval de rua só começa com o esquecimento de si. Esse esquecimento, por sua vez, começa com uma alteração voluntária da auto-imagem. É preciso, de algum modo, querer ser outro. A fantasia é o estágio inicial no qual a auto-imagem, cotidiana e cansativa, é flexibilizada; torna-se novamente maleável e lúdica. É por isso que toda fantasia nos recoloca imediatamente no universo da infância. O carnaval precisa desse ímpeto infantil, dele retira sua seiva e força. A eletricidade atmosférica dos blocos tem relação direta com a proporção de pessoas fantasiadas: quanto mais gente fantasiada maior a chance de se cavar a dimensão paralela na qual o acontecimento efetivamente se dá. Mas a fantasia é apenas o estágio inicial do processo. Ela marca aquele momento em que as pessoas tiram fotos, em que ainda são espectadoras encantadas de si mesmas. É no momento seguinte que o carnaval começa: quando você esquece que está fantasiado. No fundo, aqueles apetrechos todos que você vestiu cumprem apenas a função de transporte para um outro estado físico e mental – junto, evidentemente, de outros alteradores de consciência. Nada mais indicativo de quem não transpôs o estágio inicial do que a pessoa que passa o bloco inteiro ajeitando a fantasia, olhando-se no espelho, fazendo selfies.
6. Ao lado das tradicionais marchinhas podemos ouvir nos blocos cariocas um verdadeiro the best of do axé music. São sucessos antigos, que impregnaram nossos ouvidos em meados dos anos 1990, e que retornam hoje com nova força. Clássicos do carnaval baiano, como “Mimar você”, “Beija flor”, “Madagascar Olodum”, “Baianidade nagô”, “Depois que o Ilê passar”, “O canto da cidade”, “Requebra”, “Faraó divindade do Egito”… Que essas canções tenham voltado às ruas depois de vinte anos atesta a adequação delas ao clima festivo do carnaval. São canções com imensa capacidade de induzir estados de espírito – melodias amplas e derramadas, carregadas de positividade amorosa. Canções capazes de baianizar o ambiente. Ouvi-las nos blocos do Rio, já com o devido distanciamento histórico, é perceber o quanto esse material é rico, singular, um capítulo glorioso da música brasileira.