Ao comentar o documentário Godard, Truffaut e a Nouvelle Vague, na piauí deste mês, não mencionei a amizade como um dos fatores de identificação entre os diferentes movimentos de renovação do cinema, contemporâneos à nouvelle vague – caso do Cinema Novo, por exemplo.
De fato, além da juventude e ambição, o grupo de realizadores que começou a fazer filmes no Brasil, no início da década de 1960, teve relação fraterna, ao menos até por volta de 1968. Havia divergências, é claro; às vezes, levavam amigos às vias de fato. E muitas brigas terminavam em abraços e lágrimas.
Houve rupturas sérias, também. Algumas para marcar diferenças de projeto estético e político. Outras por razões pessoais. Mas passadas algumas décadas, os remascentes talvez ainda tenham dificuldade de entender a verdadeira razão desses conflitos. E, em alguns casos, até de saber se tinham mesmo algum sentido.
François Truffaut e Jean-Luc Godard romperam onze anos antes da morte prematura de Truffaut, aos 52 anos, em 1984. Nesse período, não se cumprimentaram na única vez que se cruzaram, em Nova Iorque. “Nos encontramos na mesma calçada, esperando um táxi, e ele fingiu não me ver”, Godard declarou aos biógrafos Antoine De Baecque e Serge Toubiana. Foi uma ruptura que guarda certo paralelismo com as que separaram integrantes do Cinema Novo, algumas envolvendo Glauber Rocha, que também teve morte prematura, aos 42 anos, em 1981. Quantas desavenças como essas não ficaram sem resolução? A glória do futuro ainda não tinha tramado o luto da felicidade.
No prefácio da correspondência de Truffaut, publicada em 1988, Godard começa lembrando que na época da apresentação de Os Incompreendidos, no Festival de Cannes, ainda existia “mágica”, e a exibição foi considerada uma vitória coletiva. “Por que briguei com François?”, ele pergunta. “Nada a ver com Genet ou Fassbinder. Outra coisa, que felizmente ficou sem nome. Idiota. Assim permaneceu. […] O que nos unia como dentes e lábios […] – o que nos acorrentava com mais força que o falso beijo de Interlúdio, era a tela, e apenas a tela. Era o muro que precisávamos erguer para escapar das nossas vidas, e só esse muro, que iria se diluir por trás da glória, das condecorações, e das declarações raivosas, com as quais o saturávamos com demasiada inocência. Saturno nos devorou. E nos destroçamos, pouco a pouco, para não sermos devorados primeiro. O cinema nos havia ensinado a vida. Ela se vingou como Glenn Ford no filme de Fritz Lang. […] François talvez esteja morto. Eu talvez esteja vivo. Não há diferença, não é.”
Unidos pela tela, por um muro que os protegia da vida, teriam se destroçado para sobreviver. Mas a vingança da vida não tardou. Como sempre, os textos de Godard dão o que pensar. Seus volteios intelectuais, porém, muitas vezes parecem apenas elocubrações vazias. Tendo continuado sistematicamente a ofender Truffaut depois da ruptura, tentou retomar a amizade, em 1980. Na carta em que rechaça Godard, Truffaut termina dizendo que “acredita saber o título do próximo filme autobiográfico dele: Uma merda é uma merda.” Na entrevista dada pouco depois ao Cahiers du Cinéma, Truffaut declara: “Era sempre preciso ajudá-lo, serví-lo e esperar de volta um golpe baixo.”
É longa a lista de integrantes do Cinema Novo que morreram ainda moços. Aos poucos sobreviventes, o fardo das desavenças ocorridas em vida e das oportunidades de reconciliação perdidas.
Há uma frase de Godard sem aspas no texto acima. É uma apropriação deliberada, sem crédito, como as que ele faz nos seus filmes. Tomo essa liberdade para me vingar por ele ter roubado uma revista minha. Foi no final de 1969.