Desde julho, cerca de cem músicos, fabricantes de instrumentos e artesãos trocam mensagens em um grupo público de WhatsApp para discutir um tema espinhoso: as tentativas do governo brasileiro de dificultar a exportação de pau-brasil baseada nas operações do Ibama e da Polícia Federal, que pintam um cenário de ilegalidade descarada em todo o setor de fabricação e comércio dos arcos. Essas ações têm se intensificado desde 2018, desde que o Ibama deu início a uma ofensiva contra os infratores. A Operação Dó-Ré-Mi já atingiu renomados artesãos e empresários responsáveis por exportar arcos para todo o mundo, conforme revelou investigação realizada por uma parceria entre a piauí, a agência Fiquem Sabendo, o consórcio OCCRP e o projeto Data Fixers.
Do grupo participam pessoas que já foram alvo dessas operações do Ibama e da Polícia Federal para apurar irregularidades na extração e na comercialização da madeira. Entre elas, o empresário Marco Raposo, preso em maio no Aeroporto de Guarulhos após ser flagrado tentando exportar varetas e arcos sem autorização; Júlio Cesar Batista, pai do proprietário da JB Atelier, empresa autuada pelo Ibama em 2018, 2021 e 2022 por, segundo o instituto, possuir varetas de pau-brasil sem origem legal; o archetier (fabricante de arcos) Anelin Nardi, a quem o Ibama acusou, em 2018, de tentar burlar a fiscalização e esconder produtos de origem ilegal – ele não havia respondido ao pedido de entrevista até a conclusão deste texto; e Manoel Francisco, também multado depois de ter arcos apreendidos no Aeroporto de Guarulhos. Procurado, Francisco não quis se manifestar. Raposo e Batista, ouvidos, disseram que não tiveram intenção de cometer irregularidades.
No grupo, os participantes expressam uma sensação generalizada de injustiça por terem seus nomes envolvidos em acusações que consideram exageradas ou infundadas e que prejudicariam a imagem de suas empresas. Há consenso, no entanto, quanto à ideia de que o setor precisa melhorar suas práticas. Alguns admitem práticas ilegais, mas dizem querer agir de acordo com as regras para poder sobreviver.
No dia 5 de dezembro, parte dos membros desse grupo de WhatsApp participou de uma reunião online, registrada em um canal no YouTube. Um deles, o archetier Carlos Brasil, admitiu que há sim ilegalidade no setor. “Nós, artesãos, precisamos estar unidos. Nós que estamos nesse ramo de confecção de arcos sabemos que existem dois negócios: um negócio é vender arco e o outro é vender madeira; vamos ser sinceros, vender pau-brasil in natura mesmo, vender vareta. Então, aos olhos do Ibama somos todos traficantes, quadrilheiros, seja por atividade ou conivência. De uma forma ou de outra todos nós compramos madeira ilegal de certa forma. Se a gente quer sobreviver, precisamos nos unir com o Ibama no sentido de extinguir os traficantes de madeira, porque eles é que minam o nosso negócio, seja o negócio de quem é indústria e tem produção grande ou de nós pequenos, que temos uma pequena produção. Aos olhos do Ibama somos todos quadrilheiros. E vou falar a real mesmo, na verdade eles estão certos. Somos uma classe desunida e vamos morrer desunidos se continuarmos assim.” Ninguém questionou o que ele disse.
O archetier afirmou que todos conhecem quem vende a madeira ilegal e que deveriam denunciá-los ao Ibama. “O cortador de madeira, que vende a madeira bruta, não é artesão. Ele não está nem aí pra arte, ele quer ganhar dinheiro com a extração predatória. Quanto mais quantidade, melhor. Eu penso que a gente realmente precisa estar junto. Nós, que estamos mais em contato com a madeira, nós conhecemos quem são, a gente sabe quem é que corta a madeira, quem é que vende, e pegar pesado é com essa turma, porque aí o Ibama vai nos apoiar. O Ibama vai parar de olhar para nós como quadrilheiros.” Ele não respondeu ao contato da reportagem até o fechamento da edição.
No grupo de WhatsApp, houve também revolta contra a cobertura midiática do caso. “Vamos aceitar ver nossas casas, empresas, estoques, fotos sendo mostradas como se fossem bandidos?”, disse um deles em novembro. “Podem esperar na tevê a luta do bem contra o mal”, disse outro, ao comentar que um dos membros do grupo tinha dado entrevista ao Fantástico, da TV Globo. “Eu entendo que muitos estão revoltados que o Ibama apreendeu tudo. Mas se há um caminho de ter paz e produzir é com o Ibama, e não contra.”
Exportação terá mais controle em 2023
O grupo de WhatsApp surgiu em resistência à proposta do governo brasileiro para restringir as regras de comercialização do pau-brasil e transferir esta espécie para a categoria de produto ameaçado de extinção, o chamado Anexo I. A ideia foi apresentada formalmente durante a 19ª Conferência das Partes da Convenção sobre o Comércio Internacional de Espécies da Fauna e Flora Selvagens em Perigo de Extinção (Cites), em novembro de 2022. Até a Cites, vigorava a regra que exigia autorização específica para retirada e a comercialização da madeira, mas não dos arcos feitos de pau-brasil. Já para varetas (que servem para fazer o arco), é preciso ter um Documento de Origem Florestal, ou DOF.
A proposta do governo brasileiro na Cites não prosperou. Mesmo assim, foi criada nova regra, exigindo que arcos de pau-brasil tenham licença da Cites para serem exportados. A mudança entrará em vigor em meados de fevereiro de 2023, segundo o Ibama. O pau-brasil consta desde 1992 na lista de espécies ameaçadas de extinção pela legislação brasileira. Uma lei de 2006 também proíbe a exploração de espécies nativas incluídas na lista de espécies ameaçadas na Mata Atlântica.
A história do pau-brasil se confunde com a do Brasil, já que a madeira foi o primeiro produto amplamente explorado pelos colonizadores portugueses. Não há dados concretos sobre a atual população de pau-brasil no país. A Mata Atlântica, área de ocorrência dessa madeira, tem hoje apenas 12,4% de sua cobertura original, sendo considerada um dos biomas mais ameaçados no mundo. “Já estamos chegando em uma situação onde não há mais pau-brasil nativo dentro das florestas do litoral do Nordeste”, diz o professor do Instituto de Biologia da Unicamp André Freitas.
O pau-brasil é usado há pelo menos dois séculos por artesãos para a confecção de arcos de violino e violoncelo. Sua madeira é considerada “incorruptível”, por não apodrecer nem ser atacada por insetos. O arco para instrumentos como é conhecido hoje foi desenvolvido no início do século XIX por François Xavier Tourte. Segundo o professor titular de violoncelo da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) Felipe Avellar de Aquino, Tourte identificou que as propriedades do pau-brasil, entre elas a durabilidade e densidade, eram ideais para a fabricação dos arcos. “Isso garante características como flexibilidade e resistência ao mesmo tempo”, diz Aquino, para quem “nada chega à qualidade do pau-brasil”.
Uma petição com quase 20 mil assinaturas foi criada contra as mudanças nas regras de exportação do pau-brasil. “Tal classificação acarretaria para nós, por um lado, constrangimentos intransponíveis – mesmo em certos casos a impossibilidade de viajar –, comprometendo assim a organização de tours e master classes internacionais, fundamentais para a propagação dessa influência musical na cultura no mundo. Por outro lado, constituiria um ataque direto ao nosso principal instrumento de trabalho, o arco, patrimônio cultural mundial há mais de trezentos anos”, diz o texto publicado pela violinista Émilie Belaud, da Ópera de París.
Para o presidente da Associação Nacional da Indústria da Música (Anafima), Daniel Neves, é preciso abrir diálogo com o Ibama. “Dizem que árvore de reflorestamento não serve para fazer arco de violino. Isto não condiz com a realidade”, diz. “Entendemos que acabar com o tráfico de madeiras é tema fundamental para os músicos que se utilizam do arco de pau-brasil como principal ferramenta do seu instrumento. Solicitamos abertura do diálogo com o Ibama para juntos elaborarmos formas viáveis de rastreamento dos arcos e dos estoques de madeiras.”
Sem consenso
A reportagem entrevistou artesãos, músicos, professores e ambientalistas, e não houve consenso entre eles sobre a necessidade de uso do pau-brasil para fabricação dos arcos.
“Não é um mito. Essa madeira realmente oferece condições técnicas excelentes para se fazer um arco. É ponto pacífico no mundo inteiro, e essa é a madeira mais buscada”, diz Esdras Rodrigues Silva, que foi professor de violino do Departamento de Música do Instituto de Artes da Unicamp. “Não é possível a substituição. Qualquer orquestra ou músico profissional se utiliza de arco feito de pau-brasil. Há trezentos anos isso ocorre”, diz o presidente da Associação Nacional da Indústria da Música (Anafima) Daniel Neves. “A ideia de que o pau-brasil é a melhor madeira é dita e repetida no mundo da música clássica”, diz o professor de violino do Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul Camilo Simões. “A tradição é essa, e dizem que não tem como fazer de outra maneira.”
Para o professor Daniel Tápia, do Departamento de Teoria da Arte e Música da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), a dificuldade em abandonar o pau-brasil como matéria-prima dos arcos vem da tradição centenária no ensino do violino. “Cria-se um padrão, e as pessoas seguem esse padrão. Como as pessoas são treinadas por décadas para tocar naquele estilo, fica aquela sensação de que, se não for pau-brasil, não funciona. Mas hoje em dia os archetiers modernos, a maioria esmagadora, procura outras madeiras. Não é insubstituível.”
O archetier Daniel Lombardi defendeu, em uma série de vídeos no YouTube, alternativas ao pau-brasil, como arcos feitos de ipê ou itaúba, por exemplo. “Nós temos de preservar as nossas florestas de pau-brasil”, disse ele no canal. “Eu tenho trinta e poucas madeiras que pesquisei e meia dúzia delas substituem plenamente o pau-brasil.” Procurado, disse que, por motivos de saúde, não poderia dar entrevista.
O professor do instituto de biologia da Unicamp André Freitas ressalta que a responsabilização no uso de um arco feito com madeira contrabandeada deveria cair também sobre quem compra. “Se existe comprador, ainda mais em euro ou dólar, vai haver quem facilite essa venda. O preço que se paga é a extinção de uma espécie. Precisa haver um limite ético.”
O pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) Pedro Galveas, que atua com silvicultura de espécies florestais de produção comercial, como o pau-brasil, acredita que o aumento nas restrições de exportação não vai impedir o contrabando. “Se for proibido aqui, no mundo vai continuar. O tráfico de madeira dessas pessoas mal intencionadas daqui vai continuar, e a madeira vai estar muito mais valorizada no mercado. Se não conseguimos coibir o envio de cocaína, imagine proibir o envio de pau-brasil de madeira clandestina. Acredito em trabalho pelo plantio de pau-brasil.”
O professor Henrique Dias, do Departamento de Ciências Florestais e da Madeira da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), lembra que o pau-brasil resultante de reflorestamento pode levar mais de trinta anos para render um corte e que, mesmo assim, a densidade da madeira não é semelhante à da nativa. “Por isso o valor do pau-brasil no mercado paralelo é muito alto. Não compensa criar florestas artificiais em função do tempo e da incerteza na qualidade da madeira. O que existem hoje são apenas plantios experimentais.”
Para o especialista, o pau-brasil deveria deixar de ser usado na fabricação dos arcos. “Não deveria mais ter exploração de pau-brasil, mesmo em plantio. O Brasil possui uma biodiversidade gigantesca, com várias outras espécies que estão sendo estudadas. Aqui na universidade temos cursos em que avaliamos resistência, elasticidade (das madeiras), justamente para poder encontrar alternativas que substituam a exploração do pau-brasil. Já evoluímos muito em conhecimento para manter uma prática tão antiga. Se extinguirmos a espécie que deu nome ao país, o que queremos em termos de conservação?”