À medida que o uso das ferramentas de interação da internet se difunde entre os pesquisadores, as narrativas sobre a ciência começam a ganhar novos contornos. Um bom exemplo disso foi dado no início do ano aos usuários do Twitter, que puderam assistir de camarote a um debate acalorado, no qual dois renomados planetólogos discutiram em tom civilizado sobre a primazia de descobertas sobre Titã, a maior das luas de Saturno.
O ponto de partida da polêmica foi um modelo computacional desenvolvido por pesquisadores do Instituto de Tecnologia da Califórnia, o Caltech, para descrever a dinâmica de formação dos lagos e tempestades de Titã. Um dos autores do estudo era o planetólogo Mike Brown, cujas pesquisas foram determinantes para o ‘rebaixamento’ de Plutão para a categoria de planeta-anão em 2006 – por isso, o codinome usado por ele no Twitter é @plutokiller.
A forma como o desenvolvimento do modelo computacional foi divulgada num comunicado de imprensa do Caltech não agradou à planetóloga Carolyn Porco, líder da equipe responsável pela análise das imagens de Saturno e seus satélites obtidas pela sonda espacial Cassini. No Twitter, rede em que é conhecida como @carolynporco, ela reclamou da atribuição indevida do crédito de uma descoberta: “Está ERRADO o comunicado do Caltech”, alegou. “Foram cientistas da Cassini, e não do Caltech, que acharam as concentrações de lagos nos polos em 2007 e nuvens de tempestades nas regiões do equador e de latitudes médias de Titã. Sejamos justos!”
Seguiu-se uma longa troca de tuítes entre os dois especialistas, tendo como objeto a primazia na descoberta da ocorrência de nuvens e chuvas em Titã, bem como da distribuição dos lagos naquele satélite. Carolyn Porco admitiu ceder em relação às nuvens de chuva, mas bateu o pé quanto à distribuição dos lagos Titã. Nesse ponto, Mike Brown recuou e ponderou que sua descoberta foi feita a partir das imagens de um radar situado na Terra, e não das fotos obtidas pela sonda Cassini (“É difícil ver no escuro”, disse ele, numa alusão irônica à visibilidade do polo norte do satélite, onde ocorrem lagos).
O debate envolveu também a natureza das provas consideradas válidas na disputa – artigos científicos, comunicados de imprensa e outras informações de domínio público. Os pesquisadores souberam manter a discussão em nível educado, embora não poupassem alfinetadas eventuais (quando Porco pediu a Brown que referenciasse uma de suas alegações, ele saiu-se com esta: “Você terá de ler o artigo que indiquei ontem. Nada mau para um bando de pessoas presas na Terra, de fato” – outra ironia sobre as limitações de se fazer observações a partir do nosso planeta.)
O debate esfriou dois dias depois, sem que se chegasse a um consenso. Foi Porco quem propôs a trégua: “Vamos deixar para lá. Seja cuidadoso no futuro com o que sua equipe diz nos comunicados de imprensa, por favor.” Brown aceitou interromper a disputa: “Noto sua discordância, mas ainda acho que o comunicado de imprensa não estava errado. Suponho que você ainda discorde. O que está ótimo.”
As disputas entre pesquisadores para determinar a paternidade das alegações científicas são tão velhas quanto a própria ciência. O que esse episódio traz de novo e interessante é o deslocamento do debate para uma esfera bem mais aberta e transparente que os fóruns em que esse tipo de controvérsia costuma se desenrolar – periódicos técnicos, corredores de congressos ou centros de pesquisa.
Ao se envolver numa disputa pública e de alto nível sobre a atribuição de alegações científicas numa rede social, os dois pesquisadores – nomes de ponta de sua área, vale reiterar – estão contribuindo para construir um novo gênero de narrativa sobre a ciência, apropriando-se das ferramentas da internet para conferir à prática científica mais abertura e diálogo com a sociedade. No fim das contas, Carolyn Porco tinha razão no tuíte que encerrou a contenda de modo amistoso, endereçado a Mike Brown: “Acho que oferecemos um verdadeiro espetáculo a todos.”
Já que o assunto é narrativa, merece aplausos a iniciativa da jornalista de ciência Nadia Drake, que cobre astronomia para o Science News. Ela montou um relato dessa disputa com a ferramenta Spotify, que permite reunir tuítes, links, documentos e demais recursos mobilizados numa narrativa para apresentá-los de forma simples e intuitiva – uma ferramenta a ser incorporada aos relatos do blog no futuro.