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    ILUSTRAÇÃO: JOÃO BRIZZI

questões semânticas

A palavra que virou palavrão

Novinha já é o principal sinônimo de mulher jovem no Brasil: dispara nas buscas no Google, lidera em sites pornô e é código para pedofilia

Fernando Molica | 05 mar 2018_07h53
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Ela é uma velha conhecida de todos que falam português, palavra que, graças ao diminutivo, ganhou ao longo de décadas séculos, talvez  a função de reforçar a juventude de mulheres e também de objetos como casas, roupas, aparelhos de tevê. Adjetivo que desfilava de forma garbosa e inocente, passava de boca em boca de maneira elogiosa, aqui e ali invejosa, quase sem malícia. Mas, embalada pelo batidão do funk e incentivada pelo coro de plateia e ouvintes, a palavra novinha ganhou corpo, hormônios e alta carga erótica, deixou de lado a leveza e subjetividade características para incorporar a rigidez de um substantivo.

Como diziam professoras do antigo curso primário, substantivo é algo concreto, que se pode pegar. Uma definição precária, mas que, no caso, se encaixa com perfeição dialoga com buscas em sites pornô e com a popularização de um novo sentido do verbo pegar. Novinha virou substantivo para lá de concreto, estrela de sucessos musicais, objeto direto de desejo e alvo de preocupação dos que veem na popularização da palavra um atalho que, amenizado pelo carinhoso sufixo inha, potencializa a pedofilia e a exploração sexual de crianças e adolescentes.

A transformação do adjetivo novinha em substantivo que define criança ou adolescente bonita, sexualizada e disponível é recente, como indica o Google Trends, ferramenta que compara o grau de interesse por palavras e expressões ao longo do tempo. Esses dados mostram que a presença relativa de novinha nas buscas era discreta até 2006 – perdia de goleada para palavras mais neutras, como garota e menina, e estava menos presente que ninfeta e lolita, há muito tempo associadas à representação da criança ou jovem capaz de despertar desejo sexual.

No Brasil, em dezembro de 2006, no índice de zero a 100 que marca a proporção de buscas realizadas num determinado período, garota marcou dez pontos; menina, nove. Ninfeta comparecia com cinco; lolita, com dois. Nesta comparação, a popularidade de novinha era inferior a um ponto – nos meses seguintes, o novo substantivo começaria a dar sinais de vida e, em fevereiro de 2009, empataria com ninfeta – três pontos cada. A ascensão seria constante e, em dezembro de 2013, novinha aplicaria uma goleada de 50 a 42 em menina (a popularidade de garota ficou em 22; a de ninfeta, quatro; a de lolita, um). Em janeiro passado, novinha liderava a comparação com 67 pontos contra 45 de menina, 15 de garota, três de ninfeta e um de lolita. Novinha dava goleada até em Neymar, tradicional campeão de audiência na rede – no mesmo mês, o já nem tão novinho craque do PSG amargava 23 pontos.

O detalhamento dos dados de janeiro passado expõe a diferença entre os significados associados a novinha e a menina. Em suas primeiras 25 citações mais relevantes, a primeira palavra é associada à atividade sexual: “novinha sexo”, “novinha pornô” e “comendo novinha” são as três expressões mais populares. No caso de menina não há, nas 25 primeiras referências, qualquer relação com sexo. Curiosidade: a primeira citação à palavra lolita decepcionaria Vladimir Nabokov, autor do romance que trata da relação entre um homem maduro e uma adolescente – a campeã no Google Trends é a veterana apresentadora de tevê Lolita Rodrigues, que completará 89 anos em 10 de março.

A relação entre novinha e sexualidade foi consolidada em 2016, quando as buscas pela palavra no Google passaram a indicar sites de sexo explícito, entre eles, o maior do gênero, o Xvideos. Em 2014, novinha alcançava, entre internautas brasileiros, o topo do ranking de procura de um dos maiores fornecedores internacionais de pornografia da internet, o PornHub – fenômeno semelhante ao ocorrido em países como Canadá, Alemanha, México e Argentina, onde a preferência é pela palavra teen (norte-americanos e britânicos optaram por lésbica; japoneses e indianos foram de esposa; espanhóis, poloneses e egípcios buscaram por mãe).

A consagração, no suposto sigilo da internet, das imagens de sexo com crianças e adolescentes foi seguida, um ano depois, por outro tipo de postura, manifestada publicamente. Depois de vários protestos de grupos conservadores, uma exposição de arte seria fechada em Porto Alegre, acusada de incentivar a pedofilia. A imagem, registrada no Museu de Arte Moderna de São Paulo, da menina que tocava mãos e pés de um artista que se apresentava nu também seria motivo de polêmica que se arrastaria por muitas semanas. A mãe da criança – que acompanhava a filha –, o ator e o museu foram apresentados como incentivadores de uma perversão. No dia 10 de setembro, quando a exposição Queermuseu foi cancelada na capital do Rio Grande do Sul, na internet as novinhas continuavam populares, muito buscadas na privacidade do computador. A palavra alcançou, no estado, segundo o Google Trends, 74 pontos de popularidade – por lá, a expressão relacionada ao substantivo que teve maior procura foi “novinha dando”. As buscas por garota bateram nove pontos, por guria, zero ponto.

Em entrevista por e-mail, Clayton Nunes, dono do site Brasileirinhas – especializado em vídeos pornô –, afirma que chegou a resistir ao uso da palavra novinha na descrição de suas produções, achou que o termo “remeteria à pedofilia”. Mas, argumenta, com o passar do tempo, depois de ouvir tantas músicas que tratavam do tema, percebeu “que o termo estava totalmente popularizado” e que não havia uma “repulsa popular” ao seu uso. Na época, novinha já ganhava de lolita e ninfeta nas buscas do site pornô: “Tivemos que aceitá-la”, justifica. Segundo ele, a procura começou em 2014 e foi consolidada dois anos depois. Um processo que não chegou a abalar o prestígio de outra palavra que remete ao mesmo universo de desejo: estudantes. Nos últimos doze meses, porém, o filme campeão de visualizações pelos assinantes do site tem como estrela a cantora Gretchen, de 58 anos.

Das músicas citadas por Nunes, as nascidas do funk carioca foram as que mais contribuíram para a popularização deste novo jeito de perceber uma palavra que está aí há tempos. Uma das canções pioneiras é Vai novinha, de Mc Frank e Bonde dos Magrinhos:

Vai novinha
uh vai novinha
vou deixar você maluca tu vai ficar suadinha
Eu vou te pegar de jeito
Gata para de gracinha

Outro trecho deixa tudo mais explícito:

Aqui a chapa é quente é várias linguadinha
na xotinha
na bundinha
no peitinho
e na boquinha
uh vai novinha

MC Loscar foi outro que apostou no filão e que, a exemplo de outros colegas, não deixou a norma culta da língua interromper a narração do desejo. Como roupas que atrapalhavam o desfrute de um prazer, regras de concordância voltaram a ser jogadas para o alto em mais uma louvação agressiva ao sexo adolescente. Ele lançou sucessos como Ela é novinha, mas já é piranha – o título resume o conteúdo – e Novinha de 17, este, um funk que alerta para eventuais problemas em manter relações sexuais com menores de 14 anos, crime previsto em lei.

Elas são tão gostosinhas…
Mas, é “chave de cadeia”!

A letra cita o artigo 214 do Código Penal, que classificava como crime as relações sexuais com menores de 14 anos. Por conta do uso de heranças retrógradas como a valorização da virgindade e de expressões como “mulher honesta”, o artigo acabou revogado e substituído pelo de número 217-A, que trata do estupro de vulnerável e pune relações sexuais e atos libidinosos com menores de 14 anos.

 

Filólogo e lexicógrafo, diretor do Instituto Antônio Houaiss, Mauro Villar diz que ainda é cedo para pensar em levar a novinha – tão popular no funk e nos sites pornô – para as páginas do sisudo Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa – ele é coautor da publicação. Diz que sequer conhecia a acepção erótica da palavra. “Os dicionários andam sempre a reboque, os dicionaristas são paquidermes, vão muito lentamente”, explica. Uma lentidão justificável pela dinâmica da língua, já que palavras envelhecem com rapidez – daí a preferência pelas adotadas pela literatura e que têm uma sobrevida garantida.

Mas novinha, a palavra, parece pouco se importar com sua ausência em compilações que registram e tentam eternizar a língua. Está viva, e, além de excitar, assusta muita gente. Coordenadora do Núcleo de Defesa de Direitos da Mulher da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, Arlanza Rebello cita que o funk não é o único gênero a propagar a violência contra mulheres – o samba está na lista. Ela não vê qualquer graça no processo de popularização da palavra e de sua forte ligação com a sexualidade.

Para Rebello, a palavra novinha passou a definir um produto, objeto de prazer para homens, uma espécie de boneca sem personalidade ou sentimentos. Um processo de aceitação que facilitaria crimes como os estupros coletivos – adolescentes são vítimas frequentes desse tipo de ataque. Ressaltou que, no rastro da novinha e do culto à juventude, mulheres passam a usar um tipo de depilação que remete à infância e há até produtos de higiene íntima com cheiros que lembram os utilizados em bebês.

A defensora frisa que novinha contribui para um processo de banalização da violência contra mulheres: “A palavra é mais palatável que cachorra, vagabunda”, detalhou. Mas o problema vai além da disseminação do termo, algo facilitado por uma certa tolerância social – os funks fizeram sucesso. Ela cita um processo de sexualização da infância que reforça o fetiche relacionado a mulheres mais jovens e  que se manifesta há algumas décadas entre nós, na maquiagem usada por crianças, nas roupas cavadas usadas por apresentadoras como Xuxa, nas danças e músicas – quem tem mais de 40 deve lembrar de programas de tevê que promoviam concursos em que crianças rebolavam na boquinha da garrafa ao som do sucesso do grupo Companhia do Pagode. “O resultado de tanta erotização é que as meninas estão menstruando cada vez mais cedo”, comentou.

Ex-professora de escola da rede estadual, Rebello afirma ter detectado a aceleração do processo que leva meninas a uma iniciação sexual precoce. Segundo ela, a sociedade e, em particular, os pais têm dificuldades em lidar com o tema, o que facilitaria a naturalização de situações como o início da vida sexual aos 13 anos. “Há garotas de 14 anos que têm vergonha da própria virgindade”, contou. Para ela, houve um relaxamento em torno de certos tabus, como o de relações entre professores e alunas. A pobreza, disse, contribui para estimular um processo de busca de reconhecimento de meninas e adolescentes – nesse contexto, ser chamada de novinha pode representar a conquista de um determinado lugar social.

O que a defensora classifica de “coisificação” do corpo da mulher tem como face mais cruel os abusos, crimes de difícil punição. Ela enumera resistências da polícia, do Ministério Público e do Judiciário – há casos de advogados que pedem para que a vítima descreva o pênis do acusado, que detalhe a relação sexual. Fundadora da Rede Feminista de Juristas, a advogada Marina Ganzarolli afirmou que há juízes que ignoram o Código Penal, adotam a tese de consentimento e, assim, descaracterizam o estupro em relações com menores de 14 anos. “A condenação em casos de crime sexual é muito difícil, fica a palavra da vítima contra a do agressor. Não se valoriza o que diz a vítima, a Justiça prefere ficar com a versão do homem”, relatou. De acordo com ela, é quase impossível conseguir a condenação por estupro de uma mulher adulta – no caso de adolescentes, depende do juiz.

“As coisas que a gente ouve… Perguntam se a mulher gozou, se ela gemeu, se o homem gozou dentro ou fora. Além disso, falta maior sensibilização dos médicos responsáveis pelo atendimento às mulheres estupradas”, reclama.

Dados do Tribunal de Justiça do Estado do Rio ilustram a dificuldade de punir crimes sexuais contra adolescentes. Ao longo de 2017 foram julgados onze processos relacionados à exploração sexual de menores de idade ou vulneráveis. No mesmo ano, apenas 49 ações relacionadas a esses crimes foram protocoladas no fórum.

De acordo com a advogada, a predominância da palavra novinha em caixas de procura de sites pornô só surpreende quem desconhece estatísticas de crimes contra mulheres: afirma que em 70% dos casos de estupro no Brasil as vítimas têm até 17 anos; 50% de todas as ocorrências envolvem meninas com menos de 13 anos. Uma violência que tem como palco a casa da jovem ou outros lugares por ela frequentados. “Na maioria dos casos, a vítima conhece o estuprador, os casos de ataques em terrenos baldios não chegam a 5%”, disse. Ganzarolli ressaltou também a prática de outro crime, a pornografia de vingança – casos em que ex-parceiros expõem na internet fotos íntimas de mulheres. Na mesma linha, delegacias estão entulhadas de casos de abusadores que chantageiam jovens com a ameaça de divulgação de imagens em que aparecem nuas ou praticando sexo.

Para Ganzarolli, a popularização do substantivo novinha reforça a desigualdade da educação para meninas e meninos e a lógica de que o desenvolvimento da sexualidade da mulher tem que ser conduzida por um homem. As músicas que tanto ajudaram a disseminar a palavra são vistas pela advogada como a “ponta do iceberg”. “Reflete uma construção estrutural, enraizada no imaginário coletivo, de que o corpo feminino está no mundo para servir ao prazer masculino.”

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