A disputa pela revogação ou revisão do Novo Ensino Médio vai muito além de um debate técnico sobre quantas e quais disciplinas os estudantes secundaristas deverão cursar. Envolve também uma disputa de contornos políticos em torno dos rumos da educação no país. Mas é decisiva também para o destino de 7,9 milhões de jovens – e isso não é pouca coisa.
O último episódio relacionado ao assunto ajuda a entender por quê: na segunda (3/4), circulou a notícia, dada pelo próprio ministro da Educação, Camilo Santana, sobre a intenção de suspender a portaria 521, que define o calendário das etapas de implementação do Novo Ensino Médio, o que inclui a adequação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) em 2024 ao novo formato do secundário.
Sem confirmação do Ministério da Educação, a notícia ganhou a mídia e circulou no ritmo dos compartilhamentos de mensagem no WhatsApp, gerando atropelo e equívocos de interpretação: não foram poucos os que chegaram a comemorar a revogação do Novo Ensino Médio.
No dia seguinte, depois de uma sequência de reuniões inclusive com o presidente Lula e muitas dúvidas sobre o que realmente iria acontecer, Camilo Santana confirmou a suspensão da portaria.
Mas por que a suspensão do calendário não significa a suspensão da implementação do Novo Ensino Médio? Realmente, não é muito fácil de entender.
Um primeiro ponto é que a reforma do ensino médio foi instituída por uma lei (13.415/2017), que foi incorporada à Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). E uma portaria não pode se sobrepor a uma lei; então, mesmo com a suspensão do calendário de implementação, o Novo Ensino Médio continua em pleno funcionamento nas escolas.
O que muda, eventualmente, é que os estados (responsáveis pela oferta de ensino médio), não precisam concluir a implementação do Novo Ensino Médio nas três séries em 2024, como previa a portaria. Mas o processo está avançado em boa parte do país e, como o ano letivo já começou, os gestores não têm como, simplesmente, mudar o currículo.
A decisão também mexe com o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) de 2024, pois, de acordo com a portaria 521, o exame precisaria se adaptar ao novo currículo. Com a suspensão do calendário, isso não é mais necessário. Mesmo assim, gera um descompasso que não é irrelevante, já que os estudantes vão fazer um Enem de 2024 num formato que não corresponde ao que eles estudaram na escola.
Para que o Novo Ensino Médio deixasse de existir, seria necessário alterar novamente a LDB, o que passa pelo Congresso Nacional – além do Conselho Nacional de Educação (CNE) e dos conselhos estaduais, que são os responsáveis pela definição e aprovação dos currículos. Tudo isso requer tempo, debate e negociação.
Debate e negociação, justamente, são dois aspectos em falta desde a raiz do Novo Ensino Médio. Vale lembrar que a Medida Provisória que originou a reforma foi promulgada pelo presidente Michel Temer em 2016, pouco tempo depois do impeachment de Dilma Rousseff e em meio às ocupações de escolas em várias partes do país por estudantes secundaristas.
No ano seguinte, a MP foi convertida em lei. Ainda assim, a reforma já era vista com a marca do autoritarismo pela ala do debate educacional que hoje defende a revogação – estudantes, sindicatos de professores e entidades científicas.
A implementação, iniciada em plena pandemia e em meio à ausência de coordenação política e aos escândalos que marcaram o MEC do governo Bolsonaro, mobilizou os estados, responsáveis legais pela oferta de ensino médio. Foram eles que assumiram a frente do processo, cada um com suas condições e possibilidades.
Há muito recurso público e trabalho de toda uma cadeia de técnicos e profissionais da educação envolvidos na implementação. No entanto, mais uma vez, por conta das circunstâncias, o diálogo e a escuta saíram prejudicados – até porque, com as escolas fechadas, ficou difícil ouvir estudantes e professores.
Nesse sentido, procede o argumento do ministro da Educação de que é preciso um grande debate, envolvendo todos os segmentos, para definir os rumos do ensino médio brasileiro.
A pergunta que surge, no entanto, é se os 90 dias previstos para a consulta pública – na verdade, o tempo já caiu para cerca de 60 dias, pois começou a contar em março – serão suficientes para equacionar tantos pontos de vista e demandas distintas.
Nenhum dos lados nega a existência de problemas no velho nem no Novo Ensino Médio. Porém, eles divergem quanto à natureza deles.
Para os defensores das mudanças, os ajustes são necessários e inerentes à implementação de uma reforma do porte da que está em andamento. Eles concordam que é preciso mais recursos, repensar os itinerários, contratar mais professores e melhorar a formação docente. Mas está fora de cogitação descartar o percurso dos últimos anos.
Para quem quer a revogação, o problema está no desenho do Novo Ensino Médio. O entendimento é que o modelo fragmenta e precariza uma formação que, principalmente na escola pública, já deixava a desejar antes da reforma. Além disso, a formatação do novo ensino médio reforça as desigualdades, visto que há muita diferença em termos de infraestrutura, quantidade e tipos de itinerários oferecidos Brasil afora. São discrepâncias entre redes de ensino de diferentes regiões e entre escolas de uma mesma rede, sem contar as clássicas desigualdades entre escolas públicas e particulares.
Essa disputa envolve, no fundo, uma tensão inerente ao governo Lula, que se equilibra entre a lógica de uma frente ampla e uma base de esquerda. E o ministro Camilo Santana parece querer tentar equacionar essa tensão, ora declarando ser contra a revogação, ora anunciando a suspensão da portaria – medida que integra a lista de reivindicações dos defensores da revogação e está sendo interpretada como um possível avanço nessa direção. Se optar pela revogação, porém, o ministro poderá abrir uma crise com os estados, que já começaram a implementar as mudanças. Por outro lado, ignorar a campanha pela revogação e propor apenas mudanças periféricas abre caminho para uma crise com professores e estudantes, que estão articulados e ganhando espaço no debate. E o risco maior é uma greve na educação.
O cenário ainda está confuso e não será simples chegar a um consenso, porque nenhum dos lados parece estar disposto a ceder. Vale lembrar que o debate sobre o ensino médio não começou com a reforma de 2017; ele já vinha desde a virada da década, sem jamais se ter chegado a uma conclusão.
Em contrapartida, é alentador ver, depois de quatro anos de desmonte das políticas educacionais e falta de interlocução do governo federal com a sociedade, pessoas com visões divergentes se reunindo para debater os problemas da educação.
Só que, enquanto isso, uma geração de jovens convive com um horizonte nebuloso à sua frente. O sonho de entrar na faculdade continua sendo um sonho para a maioria, e as oportunidades entre ricos e pobres, negros e brancos continuam escandalosamente desiguais. O MEC terá de levar tudo isso em conta na hora de decidir.