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    A Perestroika cobra mais de 2 mil reais para que alunos aprendam técnicas de escrita com escritores consagrados como Daniel Galera FOTO: DIVULGAÇÃO

questões contemporâneas

Nunca fomos tão cool

Como os cursos de escrita criativa (e a internet) estão transformando potenciais escritores em emuladores profissionais

Mateus Baldi | 20 jul 2017_14h53
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Para escrever é necessário desejar
que algo sobreviva a você.
Elena Ferrante

Um.
Superbacana

Em 2012 eu estava numa livraria quando vi uma pilha de livros sobre a bancada de madeira. O que chamou atenção não foi apenas o título brutal – Barba Ensopada de Sangue –, mas todo o projeto gráfico: capas variantes, tipografia retorcida, elogios intensos na quarta capa, e o fato de ser um escritor brasileiro. Cinco anos depois, quando conheci Daniel Galera pessoalmente, tomei um susto. Sereno, em nada parecia com o escritor enérgico que é frequentemente citado como um dos maiores nomes da atual literatura brasileira contemporânea.

Naquela terça-feira de julho ele estava no Rio de Janeiro para dar uma aula de escrita criativa no curso .TXT, oferecido pela Perestroika. Era sua primeira aula em terras cariocas, a terceira no .TXT.

Por conflito de agenda com a sede da escola, em Botafogo, o curso precisou ser alocado no alto da Glória, em um casarão do século XVIII.

Por volta das oito horas, no salão principal, pouco mais de uma dúzia de pessoas observavam a decoração e conversavam enquanto caixas de som tocavam Liniker, o cantor da moda. Velas davam um clima intimista ao lugar: estavam espalhadas sobre o velho piano, nas mesinhas com frutas em cestos de vime e na grande mesa com bandeja de brigadeiros gourmet e opções de minipizzas a 12 reais.

Erguida por volta de 1770, a Casa da Glória já foi templo Hare Krishna e sede da ONG Viva Rio. Há alguns anos, o atual proprietário resolveu alugar alguns espaços da construção para diversos eventos. No verão, é comum que festas com temática vintage abriguem jovens pulando em sua piscina, os corpos cheios de glitter e adereços de sereias.

Naquela terça de inverno, a gigantesca área externa era sombreada por pequenas lâmpadas e o símbolo da Perestroika – um pentagrama incompleto – aceso sob uma planta. No salão, mais gente começava a chegar. Na parede branca, de frente para as cadeiras dispostas num retângulo, a projeção da loga da Perestroika. Quem estava muito cansado do trabalho aproveitou os sofás largos decorados com tecidos berrantes – azul, amarelo, laranja.

Daniel Galera conversava com Reginaldo Pujol Filho, um dos organizadores do curso. Alto e magro, no começo da década Reginaldo foi convidado pela Perestroika a criar o .TXT. Em parceria com os também escritores Cristiano Baldi (nenhum parentesco com o autor deste texto) e Rodrigo Rosp, estruturou um curso que teve algumas edições em Porto Alegre e se espalhou para as outras cidades em que a Perestroika está presente. À primeira vista, a dinâmica é simples: pessoas se inscrevem, pagam mais de 2 mil reais e aprendem a escrever criativamente sob a orientação do trio-organizador. Durante o percurso, escritores consagrados ministram aulas sobre aspectos específicos do fazer literário. A edição de julho, no Rio de Janeiro, contou com aulas de Marcelino Freire, José Luis Peixoto e Marília Garcia, além do próprio Daniel Galera, que escolheu tratar das descrições.

Lentamente, as luzes se apagaram, o salão ficou numa penumbra aconchegante e Pujol Filho apresentou o professor da noite.

Silêncio.

Daniel Galera pousou a cerveja numa cadeira ao seu lado, agradeceu e passou ao primeiro slide: neurolinguística.

Dois.
O mundo explode longe

A sensação inicial é de assombro. O curso é sobre escrita criativa, a aula fala de descrição e o professor aparece falando de neurolinguística. Com cadernos estilizados, dados pela própria Perestroika no início do curso, os alunos anotam atentamente cada conceito descrito – homeostasia, consciência central, consciência ampliada. O objetivo é ligar as teorias do neurocientista português António Damásio às consequências práticas de fazer uma boa descrição.

– Descrições aparentemente banais que apelam aos sentidos podem implantar emoções no leitor – explica Galera. Aos poucos, ele vai deixando a timidez de lado e começa a contextualizar as explicações com seus próprios romances. Barba Ensopada de Sangue, obviamente, é o centro das perguntas.

– Nos cursos de escrita criativa os professores costumam falar muito em cortar, que tudo deve ser enxuto. Comecei a pensar na minha escrita, em como a descrição poderia ser usada para ativar o sentido do leitor de uma maneira gratuita. Escrever de uma maneira inútil ou supostamente desnecessária estaria trabalhando com os sentidos do nosso corpo – e se eu estimular esses sentidos no meu leitor, em descrições evidentemente desnecessárias, mas na esperança de que a consciência desse leitor fosse estimulada como se estivesse diante daquela pessoa? Acho que funcionou.

O livro ficou em terceiro lugar no prêmio Jabuti e venceu o prestigiado prêmio São Paulo de Literatura. Saudada por nomes como Ricardo Piglia e Gonçalo M. Tavares, a história fala de um professor de educação física que tem uma doença neurológica que o impede de reconhecer rostos. Após a morte do pai, o sujeito sem nome parte para Garopaba, no litoral catarinense, em busca de respostas – lá, décadas atrás, seu avô foi assassinado. Espécie de tour de force linguístico calcado justamente nas descrições, Barba Ensopada de Sangue já é considerado pela crítica um dos romances mais importantes da década, e alçou seu autor definitivamente ao posto expoente da geração surgida no começo dos anos 2000.

Nascido em São Paulo e criado em Porto Alegre, Daniel Galera começou escrevendo no famoso CardosOnline, e-zine que ferveu a web brasileira no final dos anos 90 e do qual despontam nomes como Clara Averbuck e Daniel Pellizzari. Pellizzari, aliás, fundou com o xará a cultuada editora Livros do Mal. Dentes Guardados, primeiro livro de Galera, saiu por lá; Até o Dia Em que o Cão Morreu, o primeiro romance, também.

A parceria se estendeu para além da edição e virou uma respeitada dupla de tradutores. Juntos, verteram Irvine Welsh e David Foster Wallace. O último é uma das maiores influências de Galera.

– David Foster Wallace me despertou para a possibilidade da descrição maluca, mil vezes mais radical que qualquer coisa que eu tenha escrito. Já o Cormac McCarthy tem um estilo descritivo mais aproximado do Barba. Do Brasil, eu li muito Luiz Vilela e Sergio Faraco. Essa coisa do diálogo, sabe? No início eu procurava nos autores quem conseguia fazer diálogos. Depois vieram João Gilberto Noll e Hilda Hilst; os dois fizeram minha cabeça violentamente. O que pode existir de beleza na descrição, na poesia dos meus romances, veio dos dois.

A aula chega à primeira metade com a turma embasbacada. Para muitos, experientes ou não nos cursos de escrita criativa, Galera conseguiu ser o ponto fora da curva – não é todo dia que se vê um escritor falando sobre neurolinguística como forma de criação literária. Uma das figuras que mais se destacavam naquela turma era o Simas. Alto, com crachá da empresa ao redor do pescoço, ele disse que não tinha nada a ver com o meio literário.

– Eu queria criar um blog corporativo, dou aula de geopolítica do petróleo, e precisava aprender algumas técnicas. Um título chamativo, por exemplo. Isso já me ajuda a dar uma noção das coisas e a criar uma interação legal com a comunidade corporativa onde eu trabalho. Pesquisei na internet sobre essas coisas de criação literária e vim fazer o curso para me ajudar no trabalho.

Um advogado, que usava um conjunto azul sem gravata e já havia feito o curso .TXT em 2016, comentou:

– A mesma galera plural, classe média, sabe, até pela questão do preço. Ano passado tinha muito pessoal de tevê, vários roteiristas, galera de criação mesmo. Mas eu não. Gosto é do storytelling. Trabalho numa emissora de tevê, essa coisa de contrato, aí comecei a falar pro pessoal que era legal a gente pegar os contratos e deixar menos engessados, fazer uma coisa bonitinha. O storytelling é fundamental.


Três.
Parque eletrônico

Criada há dez anos, a Perestroika surgiu da mente de quatro publicitários que buscavam “uma atividade paralela para se envolver”. Inicialmente, Perestroika era só o nome do curso, mas acabou virando todo um sistema voltado para tornar as pessoas mais cool: apresentações criativas, gestão de projetos, receitas veganas e ser escritor. Não há nada que a Perestroika não ofereça por preços que frequentemente ultrapassam os 2 mil reais, e, sendo assim, também não é difícil perceber que a aura cool de 2017 é a criatividade e a possibilidade de ser o que quiser, independentemente de ter ou não nascido para isso. Trata-se de um modelo importado, no caso da literatura, dos Estados Unidos. Na terra do Tio Sam, dezenas de escritores saíram de cursos de escrita criativa, tão tradicionais quanto profissionais. Por aqui, o mais famoso é o de Porto Alegre, comandado por Assis Brasil, de onde saíram nomes como Michel Laub, Luisa Geisler, Carol Bensimon e, logicamente, Daniel Galera.

– Foi o único curso de escrita criativa que eu fiz – conta. – Mas era ótimo, um ano escrevendo sem parar, toda semana uma porrada diferente. Essa coisa da revisão, do retorno, é fundamental. Na Livros do Mal, eu lia as coisas do Pellizzari, e ele as minhas. E é ótimo, porque às vezes você acha que escreveu um trecho incrível e a pessoa te destrói, aponta um monte de erros, diz que você repetiu seis vezes em uma página a palavra “quente”. Você nunca vai notar essas coisas sozinho. E o Pellizzari é exigente, rígido. É necessário ter alguém com olhar bom.

Em nenhum momento, Galera passou a ilusão de que seus alunos sairão do curso como escritores formados. De braços cruzados no quintal da Casa da Glória, Reginaldo Pujol Filho comentou:

– Na quinta-feira esses alunos tiveram uma puta aula com o Marcelino Freire e, provavelmente, saíram daqui pensando – É isso, é assim que se faz. Aí chega hoje, terça-feira, e eles têm essa aula com o Galera, que é muito mais técnico e com uma visão bastante diferente. A gente entrega os caminhos, a pessoa é que escolhe se vai nesse ou aquele. Aqui na Perestroika são três aulas por semana, sendo uma delas um encontro com esses escritores. Ao final, eu, Cristiano e Rodrigo lemos os textos produzidos pelos alunos e mostramos de forma anônima os melhores trechos. Aí a turma lê e debate.

A práxis do mercado de aulas livres de escrita criativa é analisar trechos de autores como Clarice Lispector, Machado de Assis e Ernest Hemingway, explicar conceitos como o Iceberg, de Hemingway, e pedir para os alunos produzirem algum conto. Esse algum conto é debatido pela classe e todos saem do curso prontos para escrever. Ao contrário dos Estados Unidos, quase nenhum aluno é aceito pelas grandes editoras ou agentes literários – as ressalvas são justamente os que frequentaram as aulas de Assis Brasil, ou aqueles que, de tanto persistirem, acabam se aprimorando e entrando para os contratados das grandes agências. Normalmente isso pode levar anos. Quem deseja se embrenhar no mercado editorial urgentemente costuma ouvir os tradicionais conselhos – Leia muito e escreva todo dia.

Escritor e professor de escrita criativa há sete anos, Ronaldo Bressane já está acostumado às desistências dos alunos. Sem nenhuma dose de constrangimento, ele explica que muitos chegam às aulas achando que já escrevem como profissionais.

– Eu dou logo um banho de água fria. Sou muito crítico com meus alunos, pego pesado. Já tive curso que começou com 40 alunos e terminou com doze. Chego a passar 100 livros como referência em seis aulas. Dia desses passei Cortázar e percebi que ninguém havia lido. Eu aviso a eles que vão ter que escrever todo dia se quiserem escrever algo que preste, que pra escrever é preciso ter bunda, e não preguiça nem medo de tomar ovada e tomate. Eu não vou dar moleza, vou ser sempre o advogado do diabo procurando problemas mesmo em um texto ótimo. Se não lerem os livros que citei em aula, ameaço-os com uma surra de rato morto. É sério. Eu levo o rato na classe e o deixo em cima da mesa. O nome do rato é Dyonélio [referência ao livro Os Ratos, do escritor Dyonélio Machado]. O cara que não tiver um grande volume de referências não vai escrever nada que preste: é preciso ler tudo, de todos. O legal é que nem sempre eu formo escritores, mas certamente formo leitores melhores.

Ainda mais crítico que Bressane, o paulistano Santiago Nazarian não vê sentido nas aulas de escrita criativa. Autor de romances classificados como “existencialismo bizarro”, Nazarian se prepara para lançar pela Companhia das Letras um livro de terror, o Neve Negra.

– Se escrever não é inevitável, se não é algo que a pessoa não consegue deixar de fazer, por que insistir? Vá procurar uma ocupação mais rentável, um passatempo mais divertido. Entendo que os escritores precisem encontrar formas de sobreviver, e dar essas oficinas é uma maneira, mas eu, pessoalmente, me sentiria uma fraude, por isso não dou. Você vê por aí gente dando oficina de microcontos ou “como publicar seu livro na internet”. Tem muito autor que mal consegue escrever um romance e já está metido a ensinar os outros.

Assustada com as dificuldades do meio editorial, a maioria dos candidatos a escritor descarta os conselhos e acaba migrando para grupos de escritores no Facebook, onde acumulam-se divulgações excessivas de obras autopublicadas e links para plataformas como o Wattpad. Muitos membros reclamam que quase ninguém os lê, não entendem por quê.

Para alguns nomes consagrados, a resposta está nos próprios candidatos: viram emuladores profissionais e não os potenciais escritores com domínio de uma linguagem e bagagem próprias – sobrevivem de criar dúvidas banais em cima de questões banais que distanciam sua arte-final da verdadeira intenção. E não há nada que aulas fora da curva, como as de Daniel Galera, possam fazer quanto a isso – mas, nunca fomos tão cool dentro dos casarões.

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