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questões religiosas

Nunca fui santa

Às vésperas da canonização de Irmã Dulce, quase 80% dos santos reconhecidos pela Igreja Católica ainda são homens

Edison Veiga | 21 ago 2019_18h06
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Quando, em 13 de outubro, numa cerimônia do Vaticano, o papa Francisco conferir o título de santa a quatro mulheres – entre elas, a brasileira Maria Rita de Sousa Brito Lopes Pontes (1914-1992), a irmã Dulce –, estará ajudando a reduzir o desequilíbrio de uma estatística desigual ao longo dos séculos: a de mulheres canonizadas pela Igreja Católica. Levantamento realizado pela piauí com base nos registros disponibilizados pela Congregação das Causas do Santos, instância do Vaticano responsável pelos processos de canonização, demonstra que apenas 21% dos santos oficialmente aceitos pela Igreja são mulheres.

Para a pesquisa, foram consideradas as canonizações ocorridas a partir de 1588. Foi nesse ano que o papa Sisto V (1521-1590) determinou a criação da congregação, conferindo uniformidade criteriosa aos processos de canonização. Desde então, foram reconhecidos como santos 835 homens e 226 mulheres de identidade conhecida – também constam dos arquivos outros 812 santos de identidade desconhecida, homens e mulheres chamados de “mártires de Otranto”, habitantes da cidade do Sul da Itália dizimados por tropas otomanas em 14 de agosto de 1480 e acabaram canonizados em maio de 2013 pelo papa Francisco. Nos últimos séculos, ter a vida considerada “digna de inspiração” pela Igreja Católica, instituição historicamente machista e patriarcal, tem sido bem mais difícil para as mulheres. 

“A Igreja Católica não é uma instituição fora do mundo. Reflete as contradições, os problemas e o modo de pensar da sociedade onde está inserida e da época da qual faz parte”, avalia o sociólogo Francisco Borba Ribeiro Neto, coordenador do Núcleo Fé e Cultura da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). “Refletindo sobre esse cenário, eu diria até que o número de santas mulheres dentro da história da Igreja é maior do que a gente esperaria, já que estamos tratando de uma organização totalmente dominada por homens, como foi a Igreja Católica ao longo dos séculos.”

A análise é corroborada pelo teólogo e filósofo Fernando Altemeyer Júnior, chefe do Departamento de Ciência da Religião da PUC-SP. “A instituição católica no último milênio reduziu as mulheres a funções subalternas e, em muitos casos, à invisibilidade”, pontua. “Mesmo que a catequese, o tesouro da fé, as tradições familiares estivessem em mãos, corações e pensamentos das mães e mulheres, o reconhecimento público de santidade e mesmo os processos passam pelo filtro do masculino. Em alguns casos inclusive há marcas de misoginia entre bispos e clérigos, que impediram mulheres de emergir como um exemplo de vida evangélica.”

Ribeiro Neto propõe uma analogia para outras áreas: na história da humanidade, quantas personagens famosas mulheres ficaram conhecidas, quando olhamos para o passado mais antigo? Quantas cientistas mulheres? Quantas artistas mulheres estão representadas em museus de arte que contemplam períodos anteriores ao século XX? “Essa proporção de santas canonizadas pela Igreja Católica é semelhante, por exemplo, à de mulheres em cargos parlamentares hoje em dia no mundo – mesmo com todas as políticas de inclusão atuais”, compara o sociólogo. Dados recentes da União Interparlamentar (IPU, sigla em inglês), organização sediada na Suíça, apontam que apenas 24,3% dos postos em câmaras e parlamentos do mundo contemporâneo são ocupados por pessoas do sexo feminino.

De qualquer forma, afirma, um erro não pode ser utilizado para justificar o outro. “É importante reconhecer que, numa sociedade machista e patriarcal, o número de mulheres reconhecidas como santas é muito menor do que o de homens”, comenta Ribeiro Neto. “Mas isso é muito menos resultado de uma seleção ou escolha dos padres e bispos que cuidam de tais processos na Santa Sé do que resultado do problema da visibilidade da mulher na vida pública.”

Ribeiro Neto lembra que o processo de canonização depende de fatores sociais. No modelo instituído a partir de 1588, alguém só é elegível ao livro dos santos depois de ter a vida analisada tanto em sua comunidade de origem quanto, em seguida, por uma comissão instituída no Vaticano. Essa investigação é aberta quando a Igreja – normalmente um padre ou um bispo da região onde esse candidato a santo viveu – percebe que a história daquela pessoa se tornou objeto de reconhecimento popular na localidade, geralmente em decorrência de algum feito ou de sua personalidade e relevância em vida.

Considerando a estrutura do catolicismo, a hegemonia masculina na Igreja já se apresenta a partir daí: quão mais conhecido e popular costuma ser um padre da paróquia se comparado a um freira em seu claustro ou projeto social? Uma instituição que só permite homens celebrando suas missas automaticamente reduz a visibilidade das mulheres. Em seguida, o processo de canonização exige a comprovação de milagres – tanto para o título de beato quanto para o reconhecimento como santo. “Um homem ou uma mulher, para ser tornado santo, tem de ser reconhecido como tal pela sociedade. Tem de haver um processo no qual as pessoas rezam e pedem milagres para ele ou ela, e assim por diante”, explica o sociólogo Ribeiro Neto. “Como em épocas passadas as mulheres eram relegadas à margem da vida pública, mesmo que fossem muito boas era mais difícil de que adquirissem reconhecimento da sociedade.”

Pesquisadora da Universidade de São Paulo, a historiadora Maíra Rosin ressalta que o machismo está na formação histórica do cristianismo. “Santos, apóstolos e a maior parte das pessoas que estão na Bíblia são homens. Os protagonistas são homens”, exemplifica ela. “Quem são as mulheres? A prostituta, Maria Madalena, que só depois é santificada. E Maria, a mãe de Jesus, porque as mães sempre mereceram seu espaço – as demais mulheres, não.” “As santas acabam aparecendo tardiamente na religião cristã. Porque as mulheres não ocupavam papéis de destaque na sociedade”, contextualiza Rosin. A historiadora Mary Del Priore, autora de História das Mulheres no Brasil, corrobora: “Jesus não escolheu apóstolo mulher, embora as santas mulheres Madalena e Betânia estivessem aos pés da cruz. Eram chamadas discípulas. As santas escrituras são formais: não é permitido à mulher ensinar ou ter autoridade sobre o homem. Ora, a Santa Madre Igreja é instituição fundada por homens de viés patriarcal. Daí talvez ser lento o reconhecimento do papel das mulheres no passado.”

Alguns pontificados foram mais atentos à santidade de mulheres. A primeira figura feminina canonizada desde a formalização do processo eclesiástico foi Santa Francisca Romana (1384-1440), religiosa italiana fundadora da fraternidade Oblatas de Maria. Ela foi declarada santa em 9 de maio de 1608 pelo papa Paulo V (1552-1621). Durante os quinze anos à frente da Igreja Católica, o sumo pontífice fez apenas dois santos – o que o deixa bem, estatisticamente, em questões de gênero. 

Clemente IX (1600-1669) também declarou santos um homem e uma mulher – no caso, a freira carmelita Maria Madalena de Pazzi (1566-1607). Inocêncio XII (1615-1700) foi o primeiro a canonizar mais pessoas do sexo feminino do que masculino: duas santas e nenhum santo. Na sequência, Clemente XI (1649-1721) manteve a primazia feminina: quatro a três. Os papas Clemente XII (1652-1740) e Pio VII (1742-1823) fizeram meio a meio, respectivamente dois e três para cada lado. 

Altemeyer Júnior avalia que esses momentos correspondem ao empenho de freiras e monjas de diversas congregações. “Com o passar do tempo, a organização das mulheres religiosas no mundo adquiriu força pública reconhecida, o que ajuda a, simbolicamente, promover a canonização da madre fundadora ou de uma de suas abadessas ou religiosas”, comenta ele. “Isso se torna uma ação eficaz.”

O papa Bento XV (1854-1922) foi o último cujo pontificado teve uma preponderância de santas sobre santos: duas a um. Foi ele que, em 1920, inseriu no Martirológio Romano o nome de Joana d’Arc, a francesa queimada viva como herege e feiticeira em 1431. Heroína, feiticeira condenada à morte, cultuada por aqueles que a conheceram e, depois, pelos que dela ouviram falar, Joana foi reabilitada depois da morte. Uma comissão no papado de Calisto III (1378-1458) reconheceu a nulidade de seu julgamento. Joana d’Arc tornou-se alvo da devoção popular e, em 1909, o papa Pio X (1835-1914) a beatificou. Dona de uma biografia que transcende o catolicismo – personagem de literatura, do cinema, figura popular e ícone do feminismo –, Joana d’Arc integra o rol dos santos padroeiros da França. 

De 1920 para cá, o predomínio masculino entre as “vidas consideradas dignas de inspiração” segue longe de ser alterado, e nem a emancipação feminina ao longo do século XX mudou muito essa conta. Nos três últimos pontificados, as mulheres foram melhor representadas do que a média histórica. Grande fazedor de santos, João Paulo II (1920-2005) canonizou 357 homens e 125 mulheres em seu longo papado de 26 anos. As mulheres representaram 26% do total, portanto. Seu sucessor, Bento XVI, inscreveu 26 homens e 19 mulheres no Martirológio Romano – 42% do sexo feminino. Na avaliação da historiadora Rosin, merece destaque o aumento da representatividade feminina entre os canonizados pelos últimos três papados. “Desde os anos 1950 e 1960 a mulher passou a ter um destaque social mais importante. A Igreja não tem como ignorar essa emancipação social da mulher”, afirma a historiadora.

Observador atento dos movimentos políticos do Vaticano, Altemeyer vê um estilo próprio de Bento XVI que pode justificar essa atenção às mulheres santas. “Creio que podemos dizer que sua sensibilidade ao feminino advém de sua criação, influenciado por sua mãe, Maria.” Entre as canonizadas por Bento XVI, está uma figura importante para a história do feminismo: a monja beneditina Hildegarda de Bingen (1098-1179), uma intelectual que trafegou por áreas que vão da medicina à dramaturgia. “Certamente uma feminista muito antes de Simone de Beauvoir”, pontua Altemeyer. “Ela inventou um idioma artificial com alfabeto específico e letras distintas, que seria como código secreto para comunicação das monjas na presença de estranho ou autoridades eclesiásticas masculinas.” O sociólogo Ribeiro Neto acrescenta que a monja foi “um modelo de feminista em uma época na qual as mulheres costumavam ter uma posição muito subalterna”.

Com a canonização de quatro mulheres e um homem no próximo outubro, o papa Francisco terá em seu pontificado 60 santos e 25 santas, levando as mulheres a responderem por 29% do total. Dentre os santos brasileiros, madre Paulina (1865-1942) – nascida na Itália, mas que viveu e deixou sua obra no país – era o único exemplo feminino. Foi canonizada em 2002, por João Paulo II. Além da já anunciada irmã Dulce, há uma lista de mulheres que despontam como fortes candidatas ao altar. Entre elas, a médica Zilda Arns (1934-2010), a “santa de Baependi” Nhá Chica (1810-1895) e a religiosa ítalo-brasileira Alberta Girardi (1921-2018). 

Doutora em ciências da religião pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), professora do Museu de Arte Sacra de São Paulo e integrante da Sociedade de Teologia e Ciências da Religião, a pesquisadora Wilma Steagall De Tommaso diz que é preciso tempo para que a proporção entre homens e mulheres seja mais equilibrada nos altares. “Em dois mil anos e com as mudanças culturais e de mentalidade, houve progressivamente um maior envolvimento do povo leigo, homens e mulheres”, contextualiza. De Tommaso enfatiza que, a despeito da discrepância nas canonizações, as mulheres sempre tiveram papel importante no cristianismo – desde o início, com Maria Madalena, primeira testemunha da ressurreição de Cristo, pontua, citando a passagem do Evangelho Segundo Mateus. “No início do cristianismo, só os mártires eram santos. E houve mulheres martirizadas, como Santa Luzia, Santa Águeda, Santa Cecília, e outras.”

Entre as mulheres canonizadas recentemente, De Tommaso destacou a religiosa de origem albanesa Madre Teresa de Calcutá (1910-1997), canonizada em 4 de setembro de 2016 pelo papa Francisco, e Santa Teresa Benedita da Cruz, nome religioso da filósofa e teóloga alemã Edith Stein (1891-1942), tornada santa em 11 de outubro de 1998, pelo papa João Paulo II. “Estão entre as mais conhecidas, sem dúvida”, comenta a pesquisadora. De Tommaso afirma que, com o avanço do papel da mulher na sociedade, esta visibilidade também deve seguir se refletindo nas canonizações. “Desde o início, os cristãos eram homens e mulheres, indistintamente. E a história da Igreja destaca mulheres que fizeram a diferença como exemplo para a santidade”, avalia.

Dentro do catolicismo, as correntes mais progressistas veem como fundamental que o número de mulheres canonizadas cresça. “A revolução feminista, emergente de forma pujante desde os anos 1950, é um sinal dos tempos que a Igreja deve ouvir, acompanhar e assumir. Ficar atento ao fenômeno é a pedra de toque da Igreja: saberá se converter e reconhecer a força da mulher? Saberá mirar para as lutas e testemunhos de santidade no cotidiano das mulheres?”, provoca Altemeyer. De Tommaso acrescenta: “A Igreja Católica é a instituição mais antiga da Terra, brinco que é o CNPJ mais longevo que se conhece”, comenta. “Não é uma organização que se moderniza, mas, como previsto no Concílio Vaticano II, há o aggiornamento, ou seja, ela acompanha o tempo com a inspiração do Espírito Santo.”

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