Desde o último bimestre de 2019, a derrubada de árvores persiste com força na floresta amazônica. Com a chegada da estação seca, o temor dos pesquisadores do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) é que a região se torne cenário de queimadas gigantescas, ainda maiores do que as de agosto do último ano, quando uma grande nuvem de fuligem da floresta enegreceu o céu de São Paulo e ganhou as manchetes dos jornais do mundo todo. Em tempos de covid-19, a combinação do vírus com a fuligem tende a complicar o quadro clínico de pacientes e sobrecarregar ainda mais o sistema de saúde nacional, que colapsou primeiro justamente em cidades encravadas na floresta, como Manaus.
Um estudo do Ipam publicado na quarta-feira, 22, mostra que, no primeiro trimestre de 2020, o desmatamento em terras públicas na Amazônia aumentou 51% em relação ao mesmo período do ano passado, em uma curva ascendente que destoa de 2017 e 2018. “Com a decisão do governo federal de enviar o Exército para conter as queimadas no fim de agosto, após pressão da comunidade internacional, houve uma diminuição nas queimadas, mas não no desmatamento, que seguiu crescendo sem parar até o mês passado, principalmente em terras públicas, onde a grilagem é mais intensa”, diz a diretora de ciência do Ipam, Ane Alencar. Segundo ela, os grileiros aproveitam os dias mais chuvosos e nublados do verão para a derrubada da mata, porque sabem que os satélites têm mais dificuldade em captar o fenômeno. Após o desmate, eles aguardam o período seco para espalhar o fogo. E neste ano a previsão é de pouca chuva na região, especialmente no sul do Pará, segundo Paulo Barreto, pesquisador do Instituto do Homem e do Meio Ambiente da Amazônia (Imazon). “Ao sobrevoar essa região do Pará no fim de 2019, havia notado grandes áreas desmatadas, mas ainda sem fogo. É questão de semanas para as queimadas começarem com toda força”, diz.
Já em maio o céu de Manaus costuma exibir as primeiras nuvens de fumaça, segundo moradores ouvidos pela piauí. Mas é a partir de julho que o céu da capital do Amazonas escurece de vez, um fenômeno detectado ano após ano pelo Imazon. E, em 2020, a covid-19 é um agravante. O sistema de saúde do Amazonas foi o primeiro do país a entrar em colapso com o avanço da pandemia. Registrou até quinta-feira, 22, 2.888 casos confirmados do novo coronavírus e 234 mortes, o que resulta em 8,1% de mortos entre os pacientes confirmados e 58 óbitos por 1 milhão de habitantes, a pior relação no país. A taxa de ocupação de leitos oscila entre 96% e 100%, segundo a Secretaria Estadual de Saúde.
Por tudo isso, a temporada de seca na Amazônia deste ano preocupa especialistas em saúde. “A poluição do ar causa inflamação pulmonar e faz com que os mais vulneráveis fiquem mais suscetíveis ainda, com mais risco de desenvolver doenças respiratórias”, disse Paulo Saldiva, professor titular de patologia da Faculdade de Medicina da USP. “Quanto às queimadas amazônicas, a gente tem estudos com crianças na região mostrando que as partículas [de poluição] têm efeito tóxico, provocando maior taxa de atendimento por doenças respiratórias. Sobre a covid-19, ainda não há estudos, mas é provável que isso seja um fator agravante.”
Para Sandra Hacon, da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz, é “uma tragédia anunciada”. O período de queimadas, de junho a outubro, com a redução da umidade relativa do ar, registra todo ano o aumento de internações por problemas respiratórios, porque a poluição afeta a função pulmonar, disse a especialista. Uma criança que tem asma, por exemplo, costuma ajustar o medicamento no momento de agravamento das crises. Se ela depende da assistência básica, pode não encontrar o atendimento disponível, dada a superlotação das redes de saúde causada pela pandemia. O mesmo vale para idosos com alguma necessidade de cuidado pregresso.
Como a covid-19 é uma doença nova, não é possível prever com precisão como sua expansão será afetada pela poluição. “O que a gente sabe é que, sim, ela ataca o sistema imunológico. Se ele já está deficitário, vai agravar a infecção, podendo levar até a óbito. Por isso, teríamos que aplicar o princípio da precaução. Não dá para piorar a situação que estamos vivendo hoje”, alertou Hacon. De acordo com a especialista, um único dia de nuvens negras bastaria para causar um pico de internações, a depender da concentração de poluentes, sua toxicidade e o diâmetro das partículas. Por isso a precaução seria a melhor medida para evitar um colapso ainda maior nas redes hospitalares do país.
O perfil do paciente e fatores socioeconômicos vão influenciar o impacto do desmatamento na saúde pública. “O tipo de habitação, os aglomerados, o saneamento, temos uma complexidade que não está sendo analisada para os próximos meses”, ela pondera. Nos últimos três anos, Manaus registrou um total de 29,6 mil internações no SUS por problemas respiratórios, de acordo com o Ministério da Saúde – uma média de 29 internações diárias. Desde 2016 não há medição da poluição do ar na capital amazonense. Procurado, o prefeito Arthur Virgílio não retornou as ligações da piauí. De acordo com o site Poder360, já no início de maio o presidente Bolsonaro pretende enviar as Forças Armadas para combater as queimadas na Amazônia.